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Opinião
Texto em que o autor defende ideias e chega a conclusões basadas na sua interpretação dos fatos e dados ao seu dispor

Por que romper o silêncio?

Na nação judaica sempre houve muitos valentes dispostos a denunciar as distorções sociais e as injustiças

Simón Peres (esquerda) e Ariel Sharon visitam o Egito em 1975.
Simón Peres (esquerda) e Ariel Sharon visitam o Egito em 1975.Hulton Archive (Getty Images)
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Com frequência me pergunto por que organizações [israelitas] como Rompendo o Silêncio, B’Teselem e Paz Agora suscitam sentimentos de medo, raiva e hostilidade em tantas pessoas. Não só pessoas de extrema direita, mas também em outras que se consideram no centro do espectro político. Essa hostilidade não pode ser explicada apenas com a justificativa de que todos que se opõem ao Rompendo o Silêncio são racistas. Nem que estão tentando calar nossas vozes; a grande maioria de nossos adversários não o faz. Sequer podemos dizer que todos os nossos oponentes odeiam os árabes, porque, em sua maioria, não é isso.

Qual é o problema então? Muito simples: as pessoas querem se sentir à vontade consigo mesmas, e o Rompendo o Silêncio não deixa. As pessoas querem que o Estado de Israel tenha uma boa imagem e, no julgamento delas, Rompendo o Silêncio e B’Tselem fazem com que tenha uma imagem ruim. É algo completamente humano. Não temos por que desprezar a necessidade natural do ser humano de se sentir bem.

É muito compreensível que a maioria dos israelenses fique constrangida e incomodada quando o Estado de Israel não tem uma boa imagem. Acreditam, equivocadamente, que os que promovem essa má imagem são os que denunciam as distorções morais do país, do Governo e do Exército. Custa a eles aceitar que o Estado de Israel, às vezes, tem uma imagem muito ruim, não por culpa de quem denuncia essas distorções morais, mas por culpa de quem as comete.

Uma das maravilhas secretas da tradição judaica, uma das razões por que o povo judeu não foi erradicado depois de milhares de anos, enquanto outras nações maiores desapareceram, é que na nação judaica sempre houve muitos valentes dispostos a romper o silêncio e a lutar para curar a degeneração moral e denunciar as distorções sociais e as injustiças.

Amo Israel por sua longa tradição de debates internos acalorados e busca pela justiça

Podemos começar falando do profeta Natan, o exemplo por antonomásia do que é romper o silêncio, e de como maculou o nome do rei Davi, o autor dos Salmos, o antepassado do futuro Messias. Aquele pequeno profeta se levantou e disse ao mundo —e às gerações futuras— que Davi tinha assassinado com artimanhas e subterfúgios um homem inocente, só porque queria se deitar com sua mulher.

O profeta Jeremias, o profeta Amos e outros profetas também censuraram sem piedade a família real, os ministros, os grandes de sua época, e muitas vezes o povo em geral, e toda a nação: difamaram nosso país, sem a menor dúvida.

Não tiveram medo de chamar a injustiça de injustiça, o derramamento de sangue inocente de derramamento de sangue inocente. Nunca pararam para se perguntar se estavam dando desculpas a quem odiava Israel.

Em seus poemas, Chaim Nachman Bialik ateou fogo e enxofre sobre os dirigentes, os funcionários e toda a nação judaica. Também Nathan Alterman e S. Yizhar romperam o silêncio e nunca vacilaram na hora de condenar a injustiça e os assassinatos cometidos pelos soldados das Forças Armadas israelenses, sequer durante as comemorações e a euforia que se seguiram à grande vitória na guerra dos Seis Dias. Assim como A. B. Yehoshua, Hanoch Levin, David Grossman, Yitzhak Laor, Meir Shalev e uma longa lista.

Todos que odeiam o Rompendo o Silêncio deveriam refletir sobre uma coisa, pelo menos por um instante: que a fortaleza moral não é um luxo, sequer um mero adorno. A fortaleza moral é necessária para a sobrevivência de uma nação, uma sociedade e uma pessoa. A fortaleza moral não é uma espécie de joia que guardamos em uma caixa forte e que colocamos apenas em dias bons para ter uma aparência melhor. A fortaleza moral não é uma mercadoria produzida para exportação, que se guarda em uma gaveta, pelo menos até que a guerra termine, até que volte a normalidade e o país viva 40 anos de paz, de forma que só então poderemos brandir nossa reluzente grandeza moral, exibi-la no peito e revelar ao mundo quão maravilhosos somos.

Não. A fortaleza moral, especialmente em tempos de guerra, é tão urgente quanto os primeiros socorros em um campo de batalha. O papel de acusador, às vezes, é semelhante ao do médico ou enfermeiro: seu trabalho é como o do médico que abre um abcesso e extrai o pus, para que não se espalhe nem contamine todo o corpo.

A fortaleza moral é necessária para a sobrevivência de uma nação, uma sociedade e uma pessoa

Não devemos menosprezar quem deseja se sentir bem. Mas talvez fosse conveniente familiarizá-los com algo que quase o mundo todo sabe, exceto os que querem calar a crítica aqui em Israel: que uma das poucas razões por que os israelenses podem continuar se sentindo mais ou menos bem consigo mesmos e diante de outros países é que temos Rompendo o Silêncio, B’Tselem e Paz Agora, que há uma luta permanente para alcançar a justiça social e que continuamos tendo uma imprensa mais ou menos livre, cada vez mais ameaçada, mas que continua existindo. É isso que garante uma boa imagem a Israel. É isso que permite a Israel continuar tendo defensores em todo o mundo, gente que ainda nos olha com esperança e até admiração.

Apesar da feiura e da injustiça, apesar da ocupação e da exploração dos pobres e desfavorecidos da sociedade israelense, continuo amando Israel. Amo inclusive nos momentos em que não consigo suportá-lo. Amo por sua longa tradição de acalorados debates internos e busca pela justiça. É uma tradição que agora está em perigo, é verdade, mas que se mantém viva.

Quantas pessoas dizem: “Muito bem, mas por que não podemos resolver nossas diferenças discretamente? Por que temos de fazê-lo diante dos olhos de todo esse mundo hostil?”. Pois bem, porque os tempos mudaram e os “olhos do mundo” já não são. Ficaram para trás os dias em que se podia sussurrar algo na cozinha sem que todo o mundo soubesse de tudo no dia seguinte. Ao contrário: qualquer esforço para enterrar a vergonha, dissimular o crime e ocultar a injustiça acabará acumulando pus, cedo ou tarde, e explodirá na cara dos ocultadores com o dobro ou o triplo da intensidade.

É benéfico abrir as feridas o quanto antes, diante da nação e do mundo, não só pelas vítimas, mas pelo bem de todos. Pelo bem da sociedade israelense. Inclusive pelo bem da imagem de Israel na comunidade internacional.

Às vezes —nem sempre, mas às vezes—, na história, alguns a quem a maioria de seu povo qualificava de traidores, acabaram, com o passar dos anos, sendo considerados mestres. Nem sempre; nem todos que já foram chamados de traidores podem estar seguros de que depois de um ou dois séculos serão agradecidos e aplaudidos. Mas houve ocasiões em que as futuras gerações se colocaram ao lado dos acusadores e de quem rompia o silêncio.

É muito compreensível que a maioria dos israelenses fique constrangida e incomodada quando o Estado de Israel não tem uma boa imagem

Colocaram-se ao lado do profeta Jeremias, que disse aos filhos de Jerusalém, fossem reis ou plebeus: “Não creiais que vosso eterno aliado é verdadeiramente vosso eterno aliado, porque em pouco tempo pode não ser digno de confiança. Cuidais deles e não os embriagai de poder”.

Os contemporâneos de Jeremias o desprezavam. Chamaram-no de “esquerdista” e “traidor”, e as autoridades o jogaram em um poço. No entanto, hoje, o povo de Israel se lembra com afeto de Jeremias, não de seus acusadores.

A história da aventura sionista começa com Benjamin Ze’ev Herzl, o visionário que concebeu o Estado judaico, o homem que inclusive o movimento de extrema direita Im Tirtzu —cujos membros criticam os integrantes do Rompendo o Silêncio— honrou, ao utilizar algumas famosas palavras deles como nome (Im Tirtzu significa “se você quer”). Talvez se esqueçam de que foi Herzl quem, em determinado momento, desesperado, pensou em Uganda como alternativa a Israel para acolher a pátria judaica, e suportou que muitos de seus contemporâneos o chamassem de traidor por isso.

David Ben-Gurion, fundador do Estado judaico, o homem que, ainda que cerrando os dentes, concordou em dividir a terra de Israel em duas nações e criar dois Estados, foi um traidor para alguns.

Menahem Begin, que se retirou do Sinai em troca de que houvesse paz, foi um traidor para os membros de seu movimento, que o acusaram de trair as ideias do partido e do próprio sionismo.

Simon Peres e Yitzhak Rabin, que deram a mão a Yasser Arafat e tentaram obter um acordo para acabar com o conflito entre Israel e os palestinos, foram qualificados de traidores por muitos. Foram pintados usando a kufiya [o lenço típico palestino], o derramamento de seu sangue foi autorizado, o assassinato de Rabin foi decretado e esse assassinato foi santificado.

Anwar Sadat, por sua vez, que foi a Jerusalém, falou diante da Knesset e assinou a paz com Israel, foi e é considerado um traidor por milhões de árabes, e também foi assassinado apenas por ter se atrevido a romper o consenso daquele momento.

Ariel Sharon, cujas escavadeiras arrasaram os assentamentos judeus de Gaza que ele mesmo tinha aprovado, também foi representado de kufiya e chamado de traidor.

A lista de pessoas qualificadas de traidoras por seu próprio povo é interminável. Se for comparada com a lista de políticos, líderes e intelectuais a quem os seus nunca chamaram de traidores, não há a menor dúvida de que é mais respeitável a primeira do que a segunda.

É evidente que os cidadãos têm uma dívida muito maior com aqueles que romperam o silêncio do que com todos que calaram, que se mantiveram na linha oficial e borrifaram perfume por cima.

Romper o silêncio não é necessariamente um assunto de esquerda ou de direita. Ao contrário. Também na esquerda israelense continua havendo silêncios que deveriam ser rompidos de uma vez por todas.

Quase qualquer afirmação nova e desafiadora é uma forma de romper o silêncio. O legado judaico, desde a época dos profetas, passou de geração em geração sobre os ombros dos valentes que se atreveram a romper o silêncio. Os judeus têm uma longa tradição que nos ensinou que todo o mundo tem o direito e até o dever de censurar o povo e seus dirigentes, os ricos e os sacerdotes, e todos que derramam sangue inocente.

Nossa tradição nos permite até falar mal de Deus. Existem acusações contra Deus desde os tempos da Bíblia.

E então? O Exército israelense é o único que tem imunidade eterna e absoluta? Por acaso é mais sagrado que Deus? O que aconteceu conosco?

Não estou dizendo que, um dia, a história verá os ativistas do Rompendo o Silêncio como descendentes dos profetas: pode ser que sim, pode ser que não. O tempo dirá. Mas o que podemos garantir atualmente é que quem atira pedras são os descendentes de quem atirou pedras contra os profetas de Israel.

Amos Oz (Jerusalém, 1939) é escritor israelense, autor de ‘De amor e trevas’ e ‘Como curar um fanático’ (ambos da Companhia das Letras), entre outras obras.

Adaptado de um discurso pronunciado durante uma conferência do Rompendo o Silêncio.

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