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PEDRA DE TOQUE
Coluna
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A caixa dos trovões

Não são os palestinos que representam o maior perigo para o futuro de Israel, e sim Netanyahu e seus capangas e o sangue que derramam

Mario Vargas Llosa
FERNANDO VICENTE

Enquanto Ivanka Trump, envolta em um vaporoso vestido que dava o que falar entre os presentes, descerrava a placa inaugurando a chamativa embaixada dos Estados Unidos em Jerusalém, o Exército israelense matava a bala 60 palestinos e feria 1.700 que, lançando pedras, tentavam se aproximar das cercas que separam Gaza do território de Israel. Os dois acontecimentos não coincidiram por acaso, o segundo foi consequência do primeiro.

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A decisão do presidente Trump de reconhecer Jerusalém como a capital de Israel, anunciada em sua campanha eleitoral, rompe setenta anos de neutralidade dos Estados Unidos. Estes, assim como seus aliados no Ocidente, sustentavam até agora que o status de Jerusalém, reivindicada como capital tanto por palestinos como por israelenses, deveria ser decidido em um acordo entre as duas partes que definisse a criação de dois Estados coexistentes na região. Embora a teoria dos dois Estados ainda apareça às vezes na boca de dirigentes das duas nações, ninguém acredita mais que essa fórmula ainda seja factível, dada a política expansionista de Israel, cujos assentamentos na Cisjordânia continuam devorando territórios e isolando cada dia mais os povoados e cidades que conformariam o Estado palestino. Se existisse, este seria atualmente pouco menos que uma caricatura dos bantustões da África do Sul nos tempos do apartheid.

O presidente Trump afirmou que sua decisão de reconhecer Jerusalém como capital de Israel é “realista” e que, em vez de dificultar um acordo, vai facilitá-lo. É possível que não só tenha dito, como também que, em sua formidável ignorância dos assuntos internacionais sobre os quais opina diariamente de maneira tão pouco responsável, acredite nisso. Mas duvido que acreditem muitos mais além dele e do punhado de fanáticos que aplaudiram entusiasmados quando Ivanka descerrou aquela placa e Bibi Netanyahu, com lágrimas nos olhos, exclamou: “Que dia glorioso!”. Na verdade, Trump abriu a caixa de Pandora com essa medida e, além da confusão e do desconcerto em que mergulhou seus aliados, provocou em grande parte a cruel e estúpida matança que veio se somar ao suplício que é, há muito tempo, a vida para os desventurados habitantes de Gaza.

A criação de dois Estados que convivessem em paz era a fórmula mais sensata para pôr fim a esse conflito que existe há setenta anos no Oriente Médio, e nisso acreditaram muitos israelenses durante muito tempo. Infelizmente, na época de Arafat, os palestinos rejeitaram um plano de paz no qual Israel fazia concessões notáveis, como devolver boa parte dos territórios ocupados e aceitar que Jerusalém fosse compartilhada como capital de Israel e da Palestina.

Desde então, aquele enorme movimento de opinião pública israelense que queria a paz foi encolhendo, enquanto cresceu o número de quem, como Sharon, considerava que a negociação era impossível e a única solução viria apenas de Israel, imposta pela força aos palestinos. E há muita gente no mundo, como Trump, que pensa assim e está disposta a apoiar essa política insensata que nunca resolverá o problema e continuará enchendo de tensão, sangue e cadáveres o Oriente Médio.

Esse processo é que tornou possível um Governo como o de Netanyahu, o mais reacionário e prepotente que Israel já teve, e certamente o menos democrático, pois, convencido de sua superioridade militar absoluta em toda a região, persegue sem trégua seus adversários, rouba-lhes cada dia um pouco mais de territórios e, acusando-os de serem terroristas e de pôr em perigo a existência do pequeno Israel, abre fogo e os fere e assassina à vontade sob o menor pretexto.

Queria citar aqui um artigo de Michelle Goldberg que apareceu no The New York Times de 15 de maio sobre o que ocorreu no Oriente Médio, intitulado Um grotesco espetáculo em Jerusalém. Descreve com detalhes a extraordinária concentração de extremistas israelenses e fanáticos evangélicos norte-americanos que festejaram a abertura da nova embaixada, e a bofetada que foi para o povo palestino essa nova afronta infligida pela Casa Branca. A autora não esquece a intransigência do Hamas, nem o terrorismo palestino, mas também recorda a condição indescritível em que estão condenados a viver os habitantes de Gaza. Vi com meus próprios olhos e sei o grau de degradação em que sobrevive com muita dificuldade essa população sem trabalho, sem comida, sem remédios, com hospitais e escolas em ruínas, com edifícios desmoronados, sem água, sem esperança, submetida a bombardeios cegos cada vez que há um atentado.

Goldberg explica que o sionismo sofreu na opinião pública mundial com a direitização extrema dos Governos israelenses, e que uma parte significativa dos judeus dos Estados Unidos já não apoia a política atual de Netanyahu e os pequenos partidos religiosos que lhe dão maioria parlamentar. Acredito que isso valha também para o restante do mundo, para milhões de homens e mulheres que, como eu, sentiam-se identificados com um povo que tinha levantado cidades modernas e fazendas-modelo onde só havia desertos, criado uma sociedade democrática e livre, na qual um setor muito grande queria verdadeiramente a paz negociada com os palestinos. Esse Israel, infelizmente, já não existe mais. Agora é uma potência militar, sem dúvida, e de certa forma colonial, que só acredita na força, principalmente nestes dias, graças ao apoio do país mais poderoso do mundo, encarnado pelo presidente Trump.

Todo esse poder não adianta muito se uma sociedade vive esperando atacar ou ser atacada, armando-se cada dia mais porque sabe que é odiada por seus vizinhos e até por seus próprios cidadãos, exigindo que seus jovens passem três anos no Exército para assegurar a sobrevivência do país e continuar ganhando as guerras, e castigando com ferocidade e sem trégua, diante da menor agitação ou protesto, aqueles cuja única culpa é a de já estar ali havia séculos quando começaram a chegar os judeus expulsos da Europa depois das atrozes matanças perpetradas pelos nazistas. Essa não é uma vida civilizada nem desejável, viver entre guerras e matanças, por mais poderoso e forte que seja um Estado.

Os verdadeiros amigos de Israel não devem apoiar a política, em longo prazo suicida, de Netanyahu e companhia. É uma política que está fazendo desse país, que era amado e respeitado, um país cruel e impiedoso com um povo ao qual maltrata e subjuga enquanto, ao mesmo tempo, proclama-se uma vítima da incompreensão e do terror. Isso já não é verdade, se é que foi alguma vez.

Tenho muitos amigos em Israel, principalmente entre seus escritores, e defendi muitas vezes seu direito à existência, sob fronteiras seguras, e sobretudo que encontre uma maneira pacífica de coexistir com o povo palestino. Honra-me ter recebido o Prêmio Jerusalém e me alegra saber que nenhum de meus amigos israelenses participou desse “grotesco espetáculo” que protagonizou a estilizada Ivanka Trump descerrando aquela placa, e tenho certeza de que todos eles sentiram tanta tristeza e indignação quanto eu pela matança nas cercas de Gaza. Eles representam um Israel que parece desaparecido nos últimos dias. Mas esperemos que volte. Em nome deles e da justiça, é preciso proclamar a todos os ventos que não são os palestinos que representam o maior perigo para o futuro de Israel, e sim Netanyahu e seus capangas e o sangue que derramam.

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