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Coluna
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Lula, Gleisi e o complexo de Sansão

É justo que o ex-presidente siga proclamando sua inocência, mas é perigoso para o futuro da esquerda manter uma posição de “tudo ou nada”, de “eu ou o caos”

Juan Arias
Lula e Gleisi antes de ex-presidente prestar depoimento a Moro em Curitiba no dia 10 de maio de 2017
Lula e Gleisi antes de ex-presidente prestar depoimento a Moro em Curitiba no dia 10 de maio de 2017Nacho Doce (REUTERS)
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A carta escrita por Lula da prisão para sua correligionária, senadora e presidenta do PT, Gleisi Hoffmann, chocou muitos dentro do próprio partido. O ex-presidente, visto sempre como um político pragmático, capaz de dialogar e pactuar, “até com o diabo”, na expressão de um amigo e companheiro seu de sindicato, se coloca, ao contrário, na posição da intransigência política. Uma posição como a que caracteriza a sua fiel porta-voz, que não admite nenhuma candidatura alternativa do PT nem de outro partido próximo, a não ser a de Lula.

Na literatura mundial são um clássico as “cartas da prisão”. Usaram esse modo de se comunicar com o exterior desde São Paulo, o apóstolo, a Antonio Gramsci, de Oscar Wilde, ao Marquês de Sade. Reza a lenda que parte do Quixote foi concebido por Miguel de Cervantes na cadeia, que o escritor espanhol descreve como “onde todo desconforto tem seu lugar e onde todo triste ruído faz sua morada”.

Não sabemos se Lula, agora com tempo para ler e escrever, acabará usando seu confinamento para nos oferecer com suas cartas o que está ruminando na solidão de sua cela. Nessa carta a Gleisi, a quem escolheu como presidenta de seu partido, Lula se revela mais duro e desafiador: “Parem de mentir. O povo merece respeito”. Refere-se à imprensa, aos juízes, aos promotores, a todos os que continuam, segundo ele, acusando-o e condenando-o “sem uma só prova”. Em expressão um tanto enigmática, recorda que ele sabe quem o quis na prisão e por quê. E desafia a todos, já que, segundo ele, desde as pessoas da rua até seus acusadores e juízes que o condenaram, “todos sabem que sou inocente”.

Lula, a quem nunca faltou olfato político nem elasticidade para sair das dificuldades, sabe, porém, que neste momento toda a esquerda pode acabar punida nas próximas eleições se ele se negar a dar luz verde para que seu partido, hoje sem um candidato que possa substituí-lo com êxito, apoie outro de centro-esquerda, como Ciro Gomes. Hipótese que a aguerrida Gleisi, a quem Lula diz em sua carta “sei o quanto você está sendo atacada”, desprezou com uma frase: “Ciro não passa no PT nem com reza brava”.

É justo e normal que Lula siga proclamando sua inocência, mas é perigoso para o futuro da esquerda deste país manter uma posição de “tudo ou nada”, de “eu ou o caos”. Foi justamente o linguista e pensador Noam Chomsky, defensor de Lula, quem cunhou, referindo-se ao conflito de Israel com os palestinos, o conceito de “complexo de Sansão”. Chomsky evocava o mito bíblico do flagelo dos filisteus – os inimigos dos filhos de Javé–, a quem Deus havia ungido de uma força especial para defender seu povo. Sansão preferiu morrer com seus inimigos a negociar com eles. Chomsky acusou Israel do complexo de Sansão, já que parece preferir o martírio coletivo ao diálogo com seus vizinhos.

Lula não é Sansão, que perdeu a força especial recebida de Deus depois de se deixar seduzir pela amante Dalila: o segredo de sua força estava em seu longo cabelo e ela mandou que o cortassem. Sansão, despojado de sua força, acabou sendo preso por seus inimigos que até lhe arrancaram os olhos. Não sabiam, no entanto, que na prisão o cabelo voltou a crescer e com ele sua força quase sobrenatural. Sansão podia ter aproveitado a ocasião para pactuar com seus inimigos ou vingar-se deles. Preferiu, porém, morrer com milhares de seus adversários, fazendo cair as colunas do tempo depois de gritar: “Aqui morro eu com todos os filisteus”.

Lula não é Sansão, mas existe o perigo de que possa ser tentado a rejeitar qualquer tipo de diálogo e conciliação com os outros partidos de esquerda para tentar salvar o ainda salvável. Lula se tornou famoso mundialmente por ser, em suas negociações políticas, mais borracha que aço. Para poder governar sua mão nunca tremeu ao estreitar a de seus adversários da direita ou do centro e pactuar com eles. Chegou até a perdoar Temer pelo golpe contra Dilma. Traem Lula os que potencializam sua tentação de complexo de Sansão, quem o atiça para que não ceda nem confesse que ele e o PT podem ter se enganado e que sempre está em tempo de ressurgir das cinzas dos próprios erros.

Agora que Lula dedica parte de seu tempo livre a ler, Gleisi, uma das privilegiadas que pode visitá-lo em sua cela, poderia levar-lhe o livro da moda do filósofo Charles Pépin, As Virtudes do Fracasso, no qual defende que todas as grandes conquistas da história não foram mais que a superação de um erro. Tantas vezes a ciência acerta depois de ter fracassado. Por que não também na política? E por que não Lula e o PT? Ou preferem a vala comum?

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