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Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

A luta pela ordem ética

Que os EUA já não valorizam uma ‘política externa ética’ talvez indique que atingiram o auge de seu poder e que um futuro mais disputado esteja por vir

Donald Trump discursa na Casa Branca.
Donald Trump discursa na Casa Branca. LEIGH VOGEL (GTRES)
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Anunciando os recentes ataques aéreos na Síria, Donald Trump evocou imagens de sofrimento humano: ‘mães e pais, bebês e crianças, debatendo-se de dor e ofegando por ar’. Mas Trump não deixou nenhuma dúvida de que a ação militar dos EUA fosse motivada por segurança, e não por preocupação humanitária. Para os EUA, as ideias humanitárias liberais que floresceram na década de 1990 já não são de relevância estratégica.

As guerras que eclodiram em sequência rápida no início dos anos 1990 desafiaram o otimismo dos liberais entusiastas pelo fim da História. Mas também confirmaram um humanitarismo liberal e militarizado como instrumento importante para os EUA na sua construção de uma nova ordem ética global.

Em 1991, após a Guerra do Golfo, os EUA invadiram o Iraque, citando sua preocupação humanitária por curdos fugindo de perseguição. No ano seguinte, aos aplausos de várias ONGs, os EUA lideraram uma força militar multinacional na Somália com o objetivo declarado de proteger operações de socorro. Essas ‘intervenções humanitárias’, e outras que se seguiriam naquela década, foram feitas não só para responder a um mal percebido, mas também para definir o bem e o mal e os limites do comportamento aceitável.

Com base em normas humanitárias cosmopolitas, a ordem ética emergente privilegiou direitos individuais. E representou um desafio à soberania nacional, o princípio fundamental do sistema interestatal. No entanto, estendeu o poder soberano dos EUA. Como autor e último responsável por esta ordem, esse país se tornou o árbitro ético de fato não apenas de assuntos interestatais, mas cada vez mais de assuntos intraestatais.

Mas no final da década, os EUA não estavam mais dispostos a tolerar oposição potencial aos seus interesses no Conselho de Segurança da ONU. Procuraram isentar-se do multilateralismo que tinham promovido para outros Estados. Em 1999, orquestraram a intervenção humanitária da OTAN no Kosovo, marginalizando a ONU. Essa operação foi o primeiro sinal de que, para os EUA, o valor estratégico do internacionalismo cosmopolita estava em declínio.

Na virada do milênio, os EUA precisavam de uma nova lógica estratégica para consolidar sua hegemonia global. Após os ataques do 11 de Setembro de 2001, lançaram a guerra global contra o terrorismo, reivindicando uma jurisdição universal sobre um inimigo onipresente. Através dessa guerra, os EUA se desvincularam das estruturas jurídicas internacionais, enquanto globalizavam a ordem ética em termos ainda mais maniqueístas. No Afeganistão e no Iraque, o humanitarismo foi uma reflexão tardia. Nos anos seguintes, os EUA foram incapazes de sustentar a associação entre a guerra contra o terrorismo e uma ética liberal. Priorizaram a segurança ao custo de seu projeto ético.

Barack Obama chegou à Casa Branca em 2009. Prometendo um internacionalismo pacífico, ele não obstante cercou-se de intervencionistas liberais. Dois anos depois, autorizou relutantemente ataques aéreos na Líbia quando um massacre de forças oposicionistas parecia iminente. Os defensores da intervenção humanitária saudaram a decisão como uma demonstração de compromisso com a ‘Responsabilidade de Proteger’ – uma norma reconhecida pela Assembleia Geral da ONU em 2005. Mas a operação na Líbia tinha sido possibilitada por um alinhamento incomum de legalidade, condições políticas e viabilidade militar. Não sinalizou uma volta ao humanitarismo militar dos anos 1990; foi a única intervenção humanitária de Obama durante dois mandatos completos em guerra. Apesar dos próprios ideais cosmopolitas de Obama, a moeda política do humanitarismo diminuiu durante sua presidência.

A presidência de Donald Trump agora confirma o abandono do cosmopolitismo por parte dos EUA. Talvez mais notável é que representa uma ruptura com o excepcionalismo americano, essencial a ambas as tradições idealista e realista da política externa daquele país. A Estratégia Nacional de Segurança lançada pela administração Trump em dezembro de 2017 afirma que ‘o modo de vida americano não pode ser imposto aos outros, nem é o culminante inevitável do progresso’. A ideia de uma história excepcional, e por implicação uma vitória final inevitável, tem condicionado não só o comportamento dos EUA, mas também o de outros Estados. Agora, repudiando essa narrativa histórica e qualquer responsabilidade ‘civilizatória’, os EUA intensificam a concorrência entre rivais numa nova luta pela ordem ética. Assim, preparam o terreno para o uso de táticas novas e potencialmente mais agressivas.

Entre os potenciais rivais, a Rússia tem sido mais direta em suas tentativas de redefinir a ordem ética. E a Síria tem sido seu campo de batalha mais importante. A guerra tem exposto a falta de compromisso legal de Washington. Enquanto as atividades militares russas na Síria são endossadas pelo governo sírio, as operações dos EUA contra alvos governamentais não têm autorização do Conselho de Segurança. Entretanto, a despeito dos sussurros de justificação humanitária vindos dos enfraquecidos aliados europeus dos EUA, os ataques aéreos ordenados por Trump em abril de 2017 e no mês passado também expõem a falta de interesse estratégico em intervenção humanitária. Durante sete anos de conflito sangrento, a morte de civis não provocou uma intervenção dos EUA. Sua ‘linha vermelha’ diz respeito apenas à maneira como morrem – uma consideração estratégica militar, relacionada à posse e ao uso de armas de destruição em massa, que no passado teria sido pelo menos envolta na pretensão de uma investigação imparcial.

Intensificando sua atividade no Conselho de Segurança, a Rússia não busca uma alternativa ao sistema multilateral de governança global. Ela busca assumir liderança desse sistema, para redefini-lo. A adoção de linguagem humanitária por Vladimir Putin também é uma tentativa de enchê-la com novo sentido. Putin devidamente responde a acusações ocidentais de cinismo e manipulação com contra-acusações de hipocrisia. Na construção de ordem, a distância entre a intenção real e o sentido retórico implícito pode ser de consequência humana, mas é de pouca relevância estratégica; a honestidade é incidental.

Que os EUA já não valorizam uma ‘política externa ética’ talvez indique que atingiram o auge de seu poder e que um futuro mais disputado esteja por vir. À medida que a administração Trump renuncia ao projeto civilizatório dos EUA, se encerra o ‘século americano’.

Juliano Fiori é é chefe de Estudos Humanitários da Save the Children e pesquisador visitante na Universidade Federal do Rio de Janeiro

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