Marielle, sobrenome favela
Marielle foi 'projeto da Maré', fruto de anos de luta; moradores da favela sentiram a morte como recado
“Vai lá, sim, Maria, mas vai com cuidado e carinho, porque as pessoas ainda estão sofrendo”, disse para mim um dos contatos que fiz, por telefone, antes de visitar a favela da Maré, na zona norte do Rio de Janeiro. Encontrei muita dor e saudade ali. Também medo. E um bocado de revolta. Alguns ainda não gostam de falar sobre tudo o que aconteceu a uma de suas mais ilustres filhas: a vereadora Marielle Franco, morta com quatro tiros na noite de 14 de março, ao lado do motorista Anderson Gomes, num crime que continua sem solução.
Quando falam dela, em quase todos os momentos, amigos usam o verbo no presente. “O que Marielle foi? O que é Marielle”, me corrigiu, em determinado momento, o geógrafo Lourenço Cezar da Silva, que foi amigo dela por mais de 20 anos – quase a mesma idade da filha de Marielle, Luyara, que hoje tem 19. Eu tinha perguntado que palavra simbolizava a vereadora. “Favela. Tá na cara dela: favelada. Tudo em torno da Marielle sempre singulariza a questão da favela. As possibilidades de uma mulher sofrer o que ela sofreu na favela são imensas. Acontece todo dia, né? E tem mais: quando a coisa aperta aqui, é a mulher que toma a frente. Se vier um policial agora e quiser me arrastar, a única figura que pode ser que ele respeite é a mulher”, pondera. “A Marielle é um projeto nosso, porque a formação que a gente tem até hoje [do cursinho comunitário] é pra ocupar esse lugar que a ela ocupou. A gente já estava pensando em novos quadros para ocupar outros espaços”.
Quem vive na Maré se sentiu atingido pelos disparos que mataram Marielle, como se os tiros de 9mm fossem direcionados à favela e a todos seus moradores que ousarem contrariar as estatísticas e ocupar outros espaços, nas universidades, na política, onde quiserem. “O tiro nela veio pra gente assim: ‘não sai daí não, vocês cresceram demais, vocês já estão abusando’. Olha lá na Câmara dos Vereadores. Poderiam ter matado qualquer um. Mas quem é o ser estranho? É Marielle. Então, para mim, Marielle é favela”, define Lourenço.
Na sua trajetória, Marielle deu prosseguimento aos passos das que vieram antes dela: Benedita da Silva, a primeira mulher negra a ser eleita vereadora do Rio, em 1982, seguida por Jurema Batista, ambas pelo PT. A novidade é que ela foi a primeira a fazer dos direitos humanos sua principal bandeira, denunciando a violência do Estado contra a população pobre e preta das favelas. “Demorou séculos para um de nós ter direito aquele espaço. A gente teve lideranças anteriores, mas que nunca foi uma pegada de direitos humanos, esse viés denunciador. Ela assumiu esse papel novo”, justifica Lourenço.
Também para o Psol, Marielle representou uma grande novidade, já que os membros do partido, mesmo sendo de esquerda, têm mais sangue de casa-grande do que de quilombo. Quem reconhece é o vereador, colega de partido e amigo Tarcísio Motta. Segundo ele, Marielle ajudou o Psol a “ser um partido menos de homens brancos, héteros, que é o que nós somos”.
“Tomara que tenha sido assalto”
O último encontro de Lourenço com Marielle ocorreu seis dias antes de sua morte. Ela deu umas dicas ao amigo por causa da candidatura do geógrafo a deputado estadual pelo PT nas eleições deste ano. Depois do assassinato, ele conta que muita gente ligou para ele: “Você vai insistir nessa loucura?”. Ele disse que sim. “O medo sempre foi nosso maior companheiro na favela. Medo de falar, medo de dar uma entrevista, medo de falar de crime”.
Na noite de 14 de março, uma quarta-feira, Lourenço assistia a um jogo em um boteco da Maré, quando seu celular apitou. O Flamengo jogava contra o Emelec pela Copa Libertadores. Era o primeiro tempo de uma partida que terminaria em 2 a 1 para o Rubro Negro, time de Marielle Franco. Ao conferir o celular, viu que as mensagens se atropelavam dizendo “É verdade isso?” e “Você está sabendo?”. Recebeu uma ligação, que não se completou por causa do intenso fluxo de dados. “Imediatamente pensei: ‘será que aconteceu alguma coisa com alguém próximo a mim?’. Aí corri em casa para usar o computador. Quando abri a internet, já logo vi a primeira notícia”, lembra.
Dali em diante, Lourenço passou a torcer para que fosse um crime comum. “Eu comecei a torcer ‘tomara que tenha sido assalto, tomara’. Aquilo atingiu a mim, atingiu todo o nosso grupo, porque a gente sempre falava assim: ‘a gente não pode sair da favela, a cidade não foi feita pra gente’. A Marielle saiu. A sensação é de ter mandado um amigo para o abate”, relata, emocionado, em uma das salas do Museu da Maré, do qual é um dos diretores. “É um tiro seco. É um tiro de desprezo. Não tem uma mensagem escrita ali. O cara não parou, desceu do carro e disse: ‘você está morrendo por isso, isso, aquilo’. Não. Até agora a gente fica: pra quem é esse tiro?”, lamenta.
Os passos que levaram a Marielle
Marielle tinha plena consciência de que sua trajetória era parte de um projeto coletivo de luta da favela. “Fico muito feliz da trajetória e da minha construção de vida, que não pode ser só a construção individual, [para] vir muito antes desse um ano e alguns meses de mandato, é porque nossos passos vêm de longe mesmo”, Marielle falou, cercada de outras mulheres pretas, numa roda de conversa chamada Jovens Negras Movendo as Estruturas, horas antes de ser assassinada.
Os passos de Marielle vêm de longe, mesmo, no Complexo da Maré, um dos maiores da capital fluminense, onde hoje vivem mais de 130 mil pessoas. As primeiras favelas do local surgiram nos anos 1940, montadas principalmente por migrantes nordestinos. Como o terreno era pantanoso, muitos ergueram palafitas. Segundo Lourenço, o avô de Marielle foi dono de um bar na Maré, e o pai dela chegou a morar em um dos antigos barracos de madeira do bairro, um intermediário entre as palafitas e as construções de alvenaria. Hoje, as casas de madeira apoiadas em estacas são, literalmente, peças de museu. O protótipo em tamanho real de uma das antigas palafitas está em exposição permanente num dos cômodos do Museu da Maré, que conta a história da favela.
“Eu morei em casa de palafita aqui na Maré, mas hoje em dia não existe mais. Tem ainda um pouquinho dos barracos de madeira”, conta Lourenço, ao caminhar pelo museu. Na fachada, uma faixa com os dizeres tão evidentes nas conversas: “Marielle vive!”. Nós vamos fazer uma sala em homenagem a ela aqui no museu. No lugar onde está uma mostra sobre Canudos” anuncia Lourenço. O artista plástico Marcondes Rocco pintou um quadro em homenagem à vereadora e doou ao Museu. “Ficou bonito, né? Bem fiel ao que era o sorriso dela”, comenta o amigo.
A amizade de mais de duas décadas dos dois nasceu no Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré, o CEASM, onde foi gestado o cursinho comunitário, que ambos fizeram mais ou menos na mesma época. Lourenço, a quem Marielle chamava de Negão ou Loiro, entraria em geografia e a amiga, pouco tempo depois, em ciências sociais, ambos na PUC-Rio. Hoje, Lourenço é um dos diretores do CEASM.
O diploma de curso superior era tão distante para a geração de Lourenço e Marielle que parecia ficar no plano dos sonhos, mesmo. Na Maré de 1997, 0,6% dos cerca de 90 mil habitantes tinham frequentado faculdade. É nesse cenário que surge o CEASM e o cursinho pré-vestibular. Em 2000, a porcentagem tinha alcançado 1,5%. A filha de Antonio e Marinete fazia parte dessa estatística, que hoje já está em 2%.
Marielle foi aluna e trabalhou como secretária durante um tempo na instituição. “Eu conheci Marielle e ela logo ficou grávida. Teve até que parar um tempo os estudos, mas depois retomou. Luyara praticamente cresceu no pátio do CEASM. Comia com a gente, ia para a bagunça com a gente”, recorda Lourenço. “Era um pré vestibular muito militante. Ele surge inclusive em um contexto de discutir a esquerda e muito influenciado por ela. Naquela época, a gente teve umas 1.600 pessoas entrando para a universidade. A própria comunidade ganhou uma outra dinâmica. Então você vai ver pessoas da Maré com nível superior em vários lugares do Rio de Janeiro e que passaram por aqui”, orgulha-se.
Lourenço não confirma a informação, divulgada em diversas reportagens, de que a militância de Marielle pelos direitos humanos teria começado depois de ela ter perdido uma amiga em um tiroteio. Também não desmente. É que são tantas mortes em suas vidas que algumas histórias acabam se confundindo. “Não sei quem é. Deve ser alguma amiga nossa, claro. Morando em favela a gente vive perdendo amigos, né? É uma rotina”, diz Lourenço. Ele perdeu um sobrinho de 8 anos, em 2004, vítima da polícia.
Fé e amor
“Vidas faveladas importam”, brada a faixa pregada dos dois lados da passarela da Avenida Brasil, com a silhueta do perfil de Marielle, em um dos acessos ao Complexo da Maré. Debaixo de um céu azul limpo, um calor de 33º C. “Vai dar praia”, comenta o vendedor ambulante de um pequeno camelódromo, na tarde de sexta-feira.
A rua Guilherme Maxwell é larga. A pavimentação deixa um pouco a desejar. Logo à esquerda, há uma central de mototáxi. Um dos restaurantes anuncia PF de frango a R$ 10. O encontro marcado é no Museu da Maré, que existe desde 2006. É justamente paralela a essa rua o endereço do último local onde Marielle morou na Maré, antes de se mudar para a Tijuca, pouco tempo após ter conquistado a vaga na Câmara dos Vereadores.
O conjunto habitacional da rua Luis Ferreira divide o muro com a Igreja Nossa Senhora dos Navegantes, que Marielle frequentou até se mudar da favela. “A última festa que ela veio aqui foi dia 2 de fevereiro do ano passado, dia da padroeira”, diz Rose, uma jovem moradora da comunidade que estava no pátio paroquial quando fui até lá para saber mais da formação religiosa de Marielle. No sincretismo, Nossa Senhora dos Navegantes é Iemanjá, Rainha do Mar. Definida como uma mulher de muita fé por quem a conheceu e tendo sido católica praticante por muitos anos, há quem diga que, nos últimos anos, Marielle se aproximava muito das religiões de matriz africana “muito em virtude do processo de reconhecimento e da apropriação da negritude dela”, segundo amigo e colega de partido, ex-vereador em Niterói pelo PSOL, Henrique Vieira.
Na juventude, Marielle tinha presença ativa na Igreja e dava aulas de catequese. “Lembro dela como professora de catecismo aqui. Ela sempre estava sorridente. Isso era muito marcante”, conta a assistente social Aryanne Paiva da Felicidade, 31 anos, também da Maré e colaboradora do CEASM.
Aryanne é católica, frequentadora da mesma paróquia, e lembra quando uma amiga sua, Monica Benício, viajou em um Carnaval com um grupo de amigos, em que estava Marielle. “A partir daí elas ficaram muito amigas, muito próximas, talvez já se gostando, mas sem esse entendimento. Elas já estavam um pouco juntas, mas as pessoas não sabiam, não era uma coisa aberta”, conta. Monica acabaria por se tornar o grande amor da vida de Marielle.
Aryanne lembra que, por causa dessa convivência, Mônica acabou convencida a participar das atividades da igreja católica e até foi crismada. A madrinha dela foi Marielle. “Quando a Monica contou pra gente aqui de casa da relação dela, era algo que no fundo a gente já sabia, porque via essa relação acontecer. Ela sempre foi como uma irmã, frequentava muito a minha casa. Quando ela teve uma certa coragem para nos contar, a gente, eu, minha irmã, meus pais, demos muito apoio”, afirma.
A última vez que Aryanne viu Marielle foi no dia 1º de fevereiro deste ano, véspera do dia de Iemanjá e aniversário de Monica. “Fomos a um shopping na Tijuca e depois elas nos deram uma carona até a Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro). É terrível, meio doido pensar que isso aconteceu”, lamenta.
Para Lourenço, a amiga vivia o melhor momento da vida, financeiramente e emocionalmente, com a filha já criada e na universidade – Luyara estuda educação física na Uerj. “Acho que ela estava pensando: ‘eu vou viver pra mim agora’, né? Talvez por isso também essa possibilidade de viver esse relacionamento com a Monica, poder se assumir. Apesar de politicamente não ser bom aqui no Rio você se assumir homossexual. Você enfrenta muita pressão, é muito preconceito ainda”, relata.
O amigo conta que as duas viveram uma vida de encontros entre os intervalos de relações que tiveram com outras pessoas. Nos últimos tempos, estavam finalmente conseguindo viver esse amor de maneira plena.
Dona dos nossos afetos
Marielle não era de fazer planos, era de agir. “Ela não era muito de discutir o futuro. Não tinha tempo pra isso. Estava sempre ocupada. Fazia militância, estudava, cuidava da Luyara, trabalhava para ganhar um dinheiro e sustentar a casa”, afirma Lourenço. “Dificilmente você daria algo para ela fazer e ela não concluiria. Ela era muito boa em organizar, em executar tarefas, tanto que tomava a frente de tudo.”
A jornalista Fernanda Garcia, amiga de Marielle há pelo menos 6 anos, concorda. “Ela tinha capacidade de alcançar qualquer coisa que ela quisesse”, afirma Fernanda, ao lembrar que Marielle era um dos nomes mais fortes para compor a chapa de candidatura ao governo do estado do Rio, como vice de Tarcísio Motta. “Ela de fato era uma pessoa que não deixava nada pela metade. A gente costuma dizer que ela só não terminou porque foi impedida”.
A forma com que Fernanda e ela se conheceram é reveladora da personalidade de Marielle Franco. “Eu estava em um evento bem chato, tinha uns caras brancos falando uns papos bem errados, quando ela levantou e disse: ‘O que vocês estão falando aí? Como assim?’. Ou seja, levantou sendo Marielle. Eu me apaixonei e falei: ‘Caraca, que mulher é essa?’ E aí pensei que tinha que ser amiga dela”, conta.
O riso era marcante, tanto que Tarcísio Motta conta que, ao ver uma foto dela, é como se viesse com som. Mas a sorridente Marielle também tinha personalidade forte, não levava desaforo para casa, falava alto e brigava com quem quer que fosse por suas ideias. Para Fernanda, a amiga era “dona dos nossos afetos” e a palavra “afeto” é a que mais se encaixa na personalidade dela.
E é justamente a capacidade de se afetar, ou seja, de se importar com o outro, que fez Marielle despontar na política e nos movimentos sociais. Denunciava a violência policial, mas também lutava pelos direitos dos policiais mortos. Ficou muito conhecida e tornou-se referência como líder negra, mulher favelada, que tinha a luta pela visibilidade lésbica como uma de suas principais bandeiras, sem, contudo, esquecer de outros importantes temas, como a população em situação de rua.
Sempre que um morador de rua chegava ao gabinete, na Câmara dos Vereadores, ela habitualmente perguntava: “Você comeu hoje?”. Se a pessoa dissesse que não, ela pedia que algum assessor fizesse um prato de comida. “Tinha sempre comida na geladeira do gabinete. Ela dizia ‘eu não vou chamar um irmão preto meu de mano, mana se meu estômago está cheio e o dele não tá”, conta Dayana Gusmão, militante da Frente Lésbica.
Militantes de direitos humanos, especialmente na defesa dos direitos das mulheres faveladas, Fernanda e Marielle iriam construir uma amizade muito forte a ponto de, em 2015, ela ser consultada a respeito das pretensões políticas da amiga. “Quando ela me contou do interesse de ser pré-candidata, pediu minha opinião. E eu disse: ‘Vai!’. Não dava pra saber o que ia ser essa jornada. A gente tinha um pouco de medo, mas eu disse: ‘Se não for você, quem vai ser?’”, conta.
A primeira reunião para falar da futura candidatura à Câmara dos Vereadores aconteceu em uma laje da Maré, com amigos da antiga, incluindo Fernanda, que passaram a debater estratégias de como chegar à Câmara e fazer campanha sem recurso. Fernanda e outras pessoas da Maré participaram ativamente da construção da candidatura e faziam constantes panfletagens pela cidade. “Eu lembro, durante a campanha, entregando panfleto na rua e dizendo: ‘Ela é minha amiga, ela veio de onde eu vim, votem nela porque eu conheço ela’.”
Com 46 mil votos, Marielle foi a quinta vereadora mais votada. A maioria dos seus votos saiu de bairros nobres da zona sul da cidade, possivelmente pela influência de Marcelo Freixo, de quem ela havia sido assessora parlamentar, atuando ao seu lado, entre outras atividades, na CPI das Milícias. “Acho difícil alguém ter passado pelo processo que o Freixo presidiu e não ter conhecido a Marielle”, conta Lourenço.
Quando o resultado da eleição saiu, Fernanda estava com Marielle e a abraçou: “Nega, a gente conseguiu”, disse. “Nossa, o que foi aquilo? Uma sensação coletiva de conquista, de que a gente consegue, foi uma esperança.”
‘Mataram nossa preta’
“A gente se chamava de preta… De ‘negona’ mais especificamente”, conta Dayana. “Ela dava um soquinho no ombro quanto encontrava a gente, tinha umas brincadeiras de agarrar, sabe? Às vezes parecia que ela não tava ligada no tamanho dela”, ri. Marielle tinha 1,83 metros. Brincalhona, sorridente, sem frescura e uma “criança gigante”, como costumam dizer. “Tem uma foto que o Leon [Diniz, professor de história e também amigo] tirou uma vez que ilustra bem isso: ela sentada no chão, ao redor de um monte de crianças, suja de tinta”, conta. “Muita gente perdeu a vereadora, mas nós perdemos a amiga”, afirma.
Dayana e outras integrantes da Frente Lésbica próximas de Marielle se reúnem todas as sextas-feiras em um bar no centro do Rio. Foi antes de uma das reuniões do grupo que ela e outras meninas me contaram um pouco sobre a personalidade de Marielle. “Por exemplo, se tinha bolo com cobertura, sabe? Ela era a primeira a passar o dedo e em seguida sujar a cara de alguém”, diverte-se Virgínia, outra militante e amiga.
Dayana, que também é da Maré, se aproximou de Marielle por causa da luta pela visibilidade lésbica. A amiga não fugia do debate. Para quem conviveu com ela, o punho fechado na cintura e o pé batendo impacientemente no chão indicavam que alguma coisa tinha saído fora do planejado. Dayane conta que, uma vez, já vereadora, Marielle fazia a prestação de contas do PSOL em uma praça no centro da cidade quando um homem passou e gritou Bolsonaro. Marielle não teve dúvidas e chamou o rapaz para debater com ela. “Ei, ei, chama esse macho aí. Vem cá: você gritou Bolsonaro? Pode vir aqui, meu microfone está aberto, vamos conversar”, desafiou a vereadora. “O cara baixou a cabeça e foi embora”, lembra Dayana. “Ela sempre falava: ‘preta, se a gente deixar um homem subir na nossa cabeça, todos os outros sobem’. Ela era essa potência.”
Até o chão
Funkeira, organizadora de festas, a última que ia embora dos rolês. Essa é outra das lembranças guardadas pelos amigos de Marielle que não fumava, nem bebia, “às vezes só um ou dois Smirnoff Ice”, mas era a mais empolgada da pista de dança. “Ela gostava de uma bagunça. Era engraçado, porque ao mesmo tempo que ela era muito responsável, era uma pessoa que se acabava em festa”, conta Lourenço.
No tempo do cursinho, Lourenço e Marielle viraram os organizadores de festas dos alunos do CEASM. Ele conta que havia, na época, uma patrulha ideológica por causa das letras sexualizadas do funk. Marielle era contra essa censura. “Alguns professores da época eram contra. Ela brigava muito por conta disso, porque para ela tinha que tocar tudo, porque festa é festa. Então, às vezes, ela aproveitava mais o momento quando não tinha festa, porque ela colocava o sonzinho que ela gostava”, revela. MC Cidinho e Doca eram os clássicos da época.
“Ela descia até o chão e balançava a raba muito antes de ser modinha”, diverte-se uma das amigas com quem me encontrei antes da reunião da Frente Lésbica, no centro do Rio. A habilidade e o gosto por funk fizeram com que Marielle vencesse o concurso Garota Furacão 2000 duas vezes, no final dos anos 90, segundo os amigos. Além disso, cantava muito bem e tinha habilidade com qualquer instrumento de percussão, o que a fez participar do grupo Apafunk, que existe até hoje. Atualmente, quem toca no grupo é sua filha, Luyara.
Além do funk, Marielle gostava muito das festas na laje da Renata, amiga que se tornaria assessora de Marielle. “Ela aguentava mais do que todo mundo, tinha um pique extraordinário”, conta Fernanda. Tudo isso porque gostava de ser presente na vida dos amigos e preservar laços.
A culpa dos sobreviventes
O dia a dia insano na Câmara dos Vereadores tinha feito Marielle se afastar um pouco da Maré. Como estava vivendo na Tijuca, não ia mais com tanta frequência à comunidade que a criou. Lourenço conta que, sempre atarefada e apressada, nos últimos meses tinham se encontrado por acaso, “na rua assim, ela descendo do carro, me dando beijo e indo embora”.
Ao falar disso, o geógrafo menciona a culpa, um sentimento que apareceu de um jeito ou de outro nos relatos que ouvi de pessoas que conviveram com ela. Como costuma acontecer com os sobreviventes de grandes tragédias, os amigos da Maré se culpam pela morte de Marielle.
“A gente elegeu a Marielle e deixou ela lá, sabe? Não criamos um grupo de apoio. É claro que, quando as investigações saírem, a gente vai ver que no fundo nada disso teria adiantado. Mas, na sua cabeça, de uma pessoa que perde alguém muito próximo, você acha que poderia ter feito alguma coisa, que deveria ter cuidado melhor”, lamenta Lourenço.
Ainda à base de medicamentos, Fernanda também externaliza uma sensação de que algo foi brutalmente retirado dela sem chance de reação. Ela e Dayana fizeram a mesma pergunta: “Como a gente não conseguiu prever que isso aconteceria?”. Ninguém poderia.
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