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A ameaça fatal das armas que disparam sozinhas no Brasil e nos EUA

Em ambos os países, empilham-se casos (e processos) de pessoas vítimas de problemas no funcionamento das armas

Teste com a pistola 24/7, que apresentou uma série de defeitos.
Teste com a pistola 24/7, que apresentou uma série de defeitos.Reprodução

O som grave do ritmo funk vindo de poderosas caixas de som no porta-malas fazia com que os retrovisores do carro – e centenas de corpos – balançassem. A multidão de pessoas se aglomerava no meio da rua em um dos principais fluxos (ou pancadões) da favela de Paraisópolis, zona sul de São Paulo, em uma noite fria de julho de 2017. Após reclamações de barulho e informações sobre “consumo de drogas” no local, a unidade do terceiro-sargento André Fontes*, que patrulhava a região, foi acionada para acabar com a festa por volta da uma da manhã. Policial Militar experiente com 11 anos de farda, ele sabia que nessas horas, com muita gente na rua, é melhor deixar a arma no coldre e, "se no diálogo não vai, uma granada de gás lacrimogêneo costuma resolver". Foi o que ele fez. Arremessou o artefato para dispersar o público, como já tinha feito em dezenas de ocorrências semelhantes. Deu três passos para trás em direção à viatura, e parou. Foi aí que sua pistola Taurus modelo 24/7 com capacidade para 15 tiros disparou. De dentro do coldre fechado. Sem que o gatilho fosse acionado.

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A bala calibre .40 perfurou a perna direita de Fontes, que foi socorrido por colegas. O projétil "entrou e saiu", danificando tecido muscular no caminho e passando a alguns centímetros da artéria femoral do policial. Ele precisou passar por cirurgia e ficou 40 dias se recuperando no hospital, sem poder trabalhar. No final, o militar considera que teve sorte. "Eu tinha feito uma série de abordagens com essa mesma arma horas antes. E se ela dispara? Além da tragédia de balear alguém assim, sem querer, quem iria acreditar em mim quando eu dissesse que não apertei o gatilho?", questiona. Seu ferimento havia sido de pouca gravidade perto das histórias que circulavam em grupos de Whatsapp de policiais, que falavam em PMs tornados inválidos e mortos por suas próprias pistolas defeituosas. Para Fontes, "o pior" é que atualmente ele continua sendo obrigado a trabalhar todos os dias com uma arma do mesmo modelo da pistola que o atingiu, colocando potencialmente em risco novamente a ele próprio e a população. "É frustrante ter que novamente ir pra rua com uma arma Taurus, mesmo modelo, é bem desconfortável... Eu não tenho arma particular. Não tenho opção, preciso usar a arma que me fornecem...", lamenta.

A Taurus é uma gigante do setor de armas leves tais como pistolas, revólveres e submetralhadoras, e é uma das três maiores empresas do setor, exportando para mais de 70 países, segundo informações de seu site. No Brasil ela tem praticamente o monopólio do mercado de armas de fogo, fornecendo para todas as polícias e forças de segurança do país, bem como para empresas de segurança privada. Sua consolidação contou com uma ajudinha protecionista: desde a década de 1930 um regulamento do Exército proíbe que sejam importadas armas de fogo para o país caso haja alguma similar. A benevolência do Estado é paga em pequenos favores: em março deste ano a Taurus e a Companhia Brasileira de Cartuchos anunciaram a doação de 100 fuzis e 100.000 munições para a intervenção federal no Rio.

O incidente com Fontes não é caso isolado. Dentro das forças policiais o assunto é tão conhecido que a pistola 24/7, conhecida como vinte e quatro barra-sete, foi rebatizada de mata-sete, em função da sua baixa confiabilidade e grande número de incidentes. Advogados que trabalham com a Associação de Policiais Militares Portadores de Deficiência do Estado de São Paulo afirmam que nos últimos anos ocorreram ao menos 500 casos de disparos de pistolas da marca Taurus sem o acionamento do gatilho. A empresa e a PM não confirmam o número. Também não se sabe quantos processos a Taurus enfrenta no Brasil devido ao mau funcionamento de suas arma – a companhia não respondeu ao questionamento da reportagem. Mas durante uma audiência da Comissão de Segurança da Câmara dos deputados realizada em agosto de 2016 o advogado da empresa Rahib Nasser afirmou que tramitavam na Justiça cerca de 35 ações devido a eventuais disparos acidentais.

Casos semelhantes ao ocorrido com o PM Fontes foram registrados em várias unidades da federação. Os primeiros relatos de problemas com as pistolas Taurus começaram a circular em 2012. Armas com a trava acionada - ou seja, teoricamente impossibilitadas de disparar - eram acidentalmente derrubadas e disparavam. No YouTube policiais e membros de clubes de tiro começaram a postar vídeos das pistolas atirando sozinhas, armas em modo tiro único que disparavam rajadas, e uma série de outros defeitos graves, como a não ejeção da cápsula após o disparo – que inutiliza a arma - e o travamento da pistola após alguns tiros.

Se o PM Fontes teve sorte em seu acidente, outros agentes públicos perderam a vida por um defeito na pistola que o Estado os obriga a carregar. É o caso do policial rodoviário federal Ivanaldo Gomes Alves. Lotado em Araguanã, noroeste do Maranhão, ele morreu na tarde de 30 de setembro de 2016, ao abaixar-se para pegar um objeto no chão. Sua pistola, uma Taurus PT 100 que estava no coldre do colete caiu no chão e disparou, atingindo Alves na cabeça. Ele morreu instantaneamente.

Os policiais não são as únicas vítimas de defeitos no armamento. Em outubro de 2013 o PM Luciano Pinheiro Bispo foi atender a uma ocorrência de música alta no bairro do Jaçanã, zona norte de São Paulo. Ao descer da viatura com sua pistola 24/7 em punho ela disparou, atingindo o jovem Douglas Rodrigues, de 17 anos, no peito. Antes de morrer ele ainda disse as palavras que seriam lema de uma campanha contra a violência policial: “Por que o senhor atirou em mim?”. Bispo foi julgado e inocentado pelo Tribunal de Justiça Militar do Estado. Um armeiro prestou depoimento em defesa do policial, e argumentou que a 24/7 precisava apenas de um "chacoalhão" para disparar.

“Quadro generalizado de falhas”

Em julho de 2017 a procuradora federal Lívia Nascimento Tinôco decidiu agir. Após tomar conhecimento de uma justificativa técnica elaborada pelo Grupo Especial de Repressão e Busca da Polícia Civil do Sergipe, que constatou "a existência de um quadro generalizado de falhas e deficiências estruturais nas armas e munições fabricadas pela empresa [Taurus]", ela entrou com um pedido liminar pedindo a suspensão da venda e produção de dez modelos de pistolas e submetralhadoras da marca - dentre elas a infame 24/7, que lesionou Fontes, e a PT 100, que matou Alves. Na ação ajuizada, Tinôco também pediu que a Taurus fizesse um recall de todas as armas dos modelos considerados problemáticos, e pagasse 40 milhões de reais por "danos morais coletivos".

A Secretaria de Segurança Pública do Rio testou as pistolas Taurus PT 840. Das 20 armas testadas, 16 apresentaram falhas de disparo, ejeção e/ou alimentação

Para embasar sua ação pública e ter uma noção da dimensão do problema, a procuradora enviou pedidos de informação para secretarias de Segurança Pública e autoridades policiais de diversos Estados da União. As respostas foram chocantes: "A Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro encaminhou parecer técnico referente aos testes de disparos para a qualificação de armas de fogo – Pistolas Taurus PT 840 P, realizado em sua sede em 1 de abril de 2015 (...), Conforme esse estudo, das 20 armas testadas, 16 apresentaram falhas de disparo, ejeção e/ou alimentação, sendo que em cinco delas, houve mais de 5 incidentes, o que, apenas segundo os critérios utilizados, reprovariam a arma". As reclamações feitas contra o armamento da Taurus se empilhavam em sua caixa de email. Pernambuco, Goiás, Amapá, Mato Grosso , Distrito Fededal, Bahia, Paraná, São Paulo... As forças policiais mostravam seu descontentamento com as armas da fabricante nacional.

"Eu ampliei a investigação e vi que isso ocorria em vários Estados da federação. E aí a partir da chegada de informações da policias e secretarias de Segurança Pública vimos que era um problema que levava a perda de vidas humanas, invalidez, e uma situação de insegurança geral", diz a procuradora. De todos os cantos do país começaram a chegar respostas que apenas ratificavam as suspeitas de Tinôco. "O Gabinete do Comando Geral da Polícia Militar do Estado de Santa Catarina juntou aos autos o ofício demonstrando o grande número de incidentes envolvendo os armamentos nacionais em uso na corporação", "a Divisão de Controle de Armas, Munições e Explosivos da Polícia Civil do Distrito Federal (...) descreveu três incidentes de disparos acidentais com pistolas Taurus, que vitimou três agentes policiais, com danos físicos na orelha, barriga e pernas", "o Instituto de Criminalística de Franca/SP, ao analisar uma pistola semi-automática, marca Taurus, modelo PT 100AF, chegou à conclusão de que houve disparo da arma no interior da bolsa que a carregava, decorrente de impacto deste conjunto com material rígido"...

No entanto, apesar de embasado com reclamações das próprias forças de segurança, o pedido de liminar da procuradora caiu no vazio. "O Judiciário infelizmente não acolheu a liminar, não protegeu a sociedade e deixou tudo como antes. O Exército não acha que é um problema, e a Taurus e o Judiciário idem", lamenta. Seu pedido foi negado em primeira e segunda instância, e agora aguarda a análise do mérito no tribunal da primeira instância, o que não tem prazo para ocorrer. No final e 2017 o Ministério do Trabalho e Emprego proibiu o uso de 2.500 pistolas 24/7 em posse das polícias de Goiás.

Em outubro de 2016 o Exército chegou a proibir a fabricação de pistolas modelo 24/7 devido aos problemas de funcionamento, bem como a apreensão dos estoques da arma nas fábricas da Taurus. Em um documento do Comando de Logística da Força a medida é justificada “por haver iminente risco à vida, à saúde, à integridade física e à segurança do usuário e da sociedade”.

Ao chegar em casa depois do trabalho, o terceiro-sargento André Fontes, baleado pela própria arma em um baile funk, não titubeia. “Antes mesmo de dar oi para minha esposa e minhas filhas eu tiro o carregador [onde ficam as balas] da pistola, esvazio a câmara [uma das balas fica preparada para o disparo neste local], travo a arma coloco em uma caixa trancada”, diz. “Quando o problema não é com você, você acaba não se preocupando. Mas depois que acontece, você nunca mais se sente seguro”.

Em nota enviada à reportagem a Taurus se limitou a dizer que “todos os esclarecimentos pertinentes já foram fornecidos aos órgãos competentes e nos foros adequados, de forma a demonstrar que as alegações contra a companhia não têm fundamento”. A empresa não comentou a proibição de comercialização da pistola 24/7 pelo Exército, nem o número de acidentes registrados com ela nos últimos anos. “Contestamos, em especial, as alegações de que a Taurus tenha comercializado produtos defeituosos”, diz a nota.

São Paulo "fura" o bloqueio

Após uma série de acidentes com a 24/7, a Polícia Militar de São Paulo conseguiu, em junho de 2017, uma autorização especial com o Exército para importar 5.000 pistolas calibre .40 semelhantes. Em agosto, porém, o processo licitatório foi suspenso por suspeita de direcionamento na disputa em favor da marca italiana Beretta, como reportou o jornal Folha de S.Paulo. A licitação foi reiniciada no final de 2017, e a nova empresa vencedora foi a Glock, da Áustria. As unidades subordinadas ao Comando de Policiamento de Choque serão as primeiras a receber os novos equipamentos. A autorização do Exército para a importação de armas teve como base uma sanção imposta pelo Governo paulista no final de 2016 sobre a Taurus. A fabricante vendeu ao Estado 6.000 submetralhadoras por 30 milhões de reais: o armamento sequer foi retirado das caixas, pois apresentava graves falhas de funcionamento.

Em nota a PM afirmou que em 2014 instaurou um “processo sancionatório para apurar o inadimplemento de cláusulas contratuais praticado pelo fabricante, por não fornecer equipamento eficiente e moderno”. Ainda segundo a corporação, em junho de 2017 “o Juiz da 10ª Vara de Fazenda Pública, promoveu ação judicial em desfavor da empresa Taurus”. Procurada, a Taurus não quis comentar o fim de seu monopólio no país.

*O nome do terceiro-sargento foi alterado a pedido do mesmo.

Nos EUA, mais armas Taurus disparando sozinhas

Os Estados Unidos têm cerca de um milhão de armas potencialmente prontas para disparar sem o acionamento do gatilho. Elas foram fabricadas pela Taurus, que oferece algumas das pistolas e revólveres mais baratos encontrados no mercado norte-americano. A pistola PT-140 do xerife Chris Carter, do condado de Scott, no Iowa, foi um dos produtos da Taurus que apresentou defeito. Em julho de 2013 ele perseguia pé um suspeito de tráfico quando derrubou a arma do coldre. A cair no chão, a PT-140 – mesmo travada - disparou. Ninguém ficou ferido, mas o caso levou a uma ação judicial que terminou com a fabricante de armas tendo que pagar 39 milhões de dólares (cerca de 12,5 milhões de reais).

Uma reportagem do portal americano Bloomberg publicada no final de fevereiro mencionava também outros casos de possíveis falhas no equipamento da Taurus - que em alguns casos levou à morte de seus usuários.

Em nota a Taurus informou que “o acordo celebrado nos EUA esclarece inclusive que não foram comprovados os supostos defeitos”. Ainda segundo a empresa, “os compromissos assumidos pela Taurus nesse e em outros acordos, que não envolvem reconhecimento de responsabilidade, têm o objetivo de garantir a tranquilidade dos seus clientes”.

Uma pistola 24/7 com a cápsula não ejetada após disparo, outro defeito comum no modelo.
Uma pistola 24/7 com a cápsula não ejetada após disparo, outro defeito comum no modelo.Reprodução

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