Armas brasileiras abastecem guerra no Iêmen
O Brasil se orgulha de promover a paz e a segurança no cenário internacional, mas é o quarto maior produtor de armas de pequeno porte e munições do mundo
O Iêmen é a nova Síria. Desde o início do ano, o país passa por uma guerra civil provocada pela disputa entre duas facções pela legitimidade do governo. Para complicar, células da Al-Qaeda e do chamado Estado Islâmico intensificaram suas operações e já controlam grandes extensões do território iemenita. Constantes ataques aéreos estão transformando as cidades históricas em ruínas.
O custo humano do conflito é assustador. Os confrontos já causaram pelo menos 2.577 mortes de civis -— 86% de todas as mortes relacionadas aos combates no primeiro semestre de 2015 — e 5.078 feridos. Provocaram também o deslocamento interno de cerca de 1,5 milhão de pessoas e milhares de refugiados em Omã, Djibuti e Somália. A Organização das Nações Unidas estima que pelo menos 13 milhões de pessoas estejam sem acesso a água limpa.
O Iêmen é considerado fundamental para a estabilização do Oriente Médio, além de ser um importante canal para a chegada de ajuda humanitária ao Chifre da África. Muitos Estados, entre os quais o Brasil, condenam o aumento da violência no país. O governo brasileiro fez um apelo para que as partes em conflito parassem com a violência na região e entrassem em diálogo. Recentemente, o Brasil assinou acordos com o Iêmen para a promoção de segurança alimentar, desenvolvimento agrícola e programas escolares.
A crise vai muito além da mera tentativa de controle da capital, Saná. O país está no meio de uma guerra bem maior: de um lado, uma coalizão liderada pela Arábia Saudita e apoiada pelos Estados Unidos que defende o governo deposto de Hadi; de outro, a milícia Houthi, que tem apoio do Irã e hoje controla Saná.
O que alimenta essa tragédia é o grande suprimento de armas. E potências como os Estados Unidos, a Arábia Saudita, o Irã e seus parceiros não são os únicos fornecedores. O Brasil, um país com pouca tradição de interferência no Oriente Médio, também está indiretamente envolvido. Na semana passada, foram encontradas armas de fragmentação não detonadas produzidas pela empresa brasileira Avibras Indústria Aeroespacial. Os foguetes brasileiros teriam sido utilizados pelas forças da coalizão saudita.
Os detalhes técnicos são importantes. Os foguetes, SS-60 e SS-80 (ou submunições), foram lançados com um sistema de lançamento múltiplo chamado Astros. A Avibras alega que as armas deveriam se "autodestruir" com o impacto, mas fotografias feitas no local local provam que isso nem sempre acontece. Por não discriminar alvos, e nem sempre explodir assim que entram em contato com o solo, elas representam uma grande ameaça para civis inocentes.
Esse tipo de munição é proibida pelas leis internacionais. Cerca de cem Estados já baniram a fabricação, a estocagem e o uso. O Brasil, a Arábia Saudita e os Estados Unidos não fazem parte dessa lista.
Ao verem as fotos mostradas pela Anistia Internacional, representantes da Avibras admitiram que os artefatos "lembram" seus produtos. A empresa declarou que vai investigar o incidente.
Não seria a primeira vez que a Avibras vende armas a países com antecedentes de violação aos direitos humanos. Em 2012, a empresa vendeu 36 lançadores de mísseis para a Indonésia, que foram entregues em 2014 a um custo 400 milhões de dólares. Embora a crise econômica brasileira esteja afetando o setor de defesa, a Avibras relatou um lucro de mais de 25 milhões de dólares no ano passado, e espera superar os 250 milhões em vendas em 2015.
O Brasil não é novo no mercado mundial de armas. Desde a década de 1980, o país vem fornecendo armas para a Arábia Saudita, o Irã, a Líbia e outros países do Oriente Médio e da África. Quase sempre, as críticas internas direcionadas aos subsídios governamentais e incentivos fiscais que favorecem a produção de armas de fragmentação são ignoradas. O Ministério da Defesa chegou a intervir para garantir a solvência de empresas como a Avibras, sem mostrar muito interesse pelo destino das armas.
Essa situação não é mais sustentável. O Brasil é atualmente o segundo maior produtor de armas de pequeno porte e munições do hemisfério ocidental, e o quarto do mundo. A Avibras está negociando contratos estimados em 2 bilhões de dólares com a Arábia Saudita e o Catar para o fornecimento de armas. Ao mesmo tempo, o país se orgulha de promover a paz e a segurança no cenário internacional, além de defender o cumprimento dos mais altos padrões de respeito aos direitos humanos. É uma contradição clara.
Por um lado, o Brasil foi um dos primeiros a assinar o Tratado sobre o Comércio de Armas (TCA), em 2013. O tratado proíbe que os Estados vendam armas convencionais a países que possam cometer crimes contra a humanidade, violações de leis humanitárias e violência contra crianças. Esse é exatamente o caso do Iêmen. O país se vangloria por ter assinado o TCA. Os diplomatas brasileiros defendem que "o Brasil é a favor de um instrumento internacional vinculante que discipline o comércio lícito de armas convencionais, armas de pequeno porte e suas munições". E conclamam os Estados a limitar a posse de armas a situações de "autodefesa individual ou coletiva". Esse posicionamento é bastante bem-vindo, já que a política de exportação do país ainda é regulada por um obscuro decreto da época da ditadura militar.
Por outro lado, o discurso infelizmente não corresponde aos atos. O país ainda não assinou a convenção que proíbe armas de fragmentação e o próprio TCA ainda não foi ratificado pelo país. O processo está parado na Câmara dos Deputados e, mesmo se aprovado pela Casa, ainda precisaria ser endossado pelo Senado e pela Presidência. São mínimas as perspectivas de ratificação em curto prazo. Até que isso aconteça, lançadores de mísseis, armas de pequeno porte e munições de fabricação brasileira vão continuar a causar estragos no Iêmen — e em outras guerras ao redor do mundo.
Robert Muggah é diretor de Pesquisas do Instituto Igarapé, no Rio de Janeiro, diretor de Políticas e Pesquisas da Fundação SecDev e membro do Conselho da Agenda Global sobre Fragilidade, Conflito e Violência do Fórum Econômico Mundial. Nathan B. Thompson, pesquisador do Instituto Igarapé, contribuiu para este artigo.
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