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Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Descrença e resistência

A Justiça nunca esteve imune à política. Mas também nunca soube lidar bem com a assimilação da política em seu processo de decidir

Uma manifestante em frente à Superintendência da Polícia Federal em Curitiba no dia da prisão do ex-presidente Lula.
Uma manifestante em frente à Superintendência da Polícia Federal em Curitiba no dia da prisão do ex-presidente Lula.Antonio Lacerda (EFE)
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Lula foi condenado em segunda instância. Muito embora ainda haja duas chances de a decisão ser revertida, no STJ e no STF, um precedente de 2016 do STF encaminhou ao cumprimento antecipado da pena de prisão.

Sobre a constitucionalidade ou não de se executar a pena antes do trânsito em julgado da decisão, muito já se disse, para além dos votos dos Ministros. Contudo, os argumentos — presunção de inocência, pena não prevista em lei, obediência à maioria, sopesamento com o princípio da efetividade às decisões judiciais — não foram convincentes a ponto de acalmar o debate público em torno da condenação e da prisão.

A descrença e a resistência contra as decisões advêm de crises ainda não cicatrizadas na opinião popular. No impeachment de 2016, a acusação popular foi a de se ter empregado a lei para a consecução de um fim ilegal: forma contra conteúdo. Na condenação de 2018, a de se ter contornado a lei, para fazer justiça contra garantias e princípios constitucionais e penais. Os apoiadores do impeachment, de sua feita, apegaram-se à necessidade de estrita obediência à lei. No caso da condenação, todavia, disseram que a lei e as garantias devem ser interpretadas, e que a estrita legalidade não pode impedir a punição de criminosos.

Os argumentos, portanto, mudaram de lado. Brandir a lei ou a interpretação mais livre depende do momento e, tudo indica, de quem está envolvido.

Ninguém estar convencido senão das próprias convicções, porém, já é um aparente progresso em relação aos velhos embates da política, no Brasil, nos quais apenas a conveniência aparecia. Antes, havia o diálogo e a conciliação das elites. Hoje, o diálogo praticamente desapareceu, e, com ele, as possibilidades de um meio termo.

Prejudica essa aproximação, que busque uma solução de consenso para a crise política, o fato de a política ter sido apropriada pelo Judiciário. A Justiça nunca esteve imune à política. Mas, tradicionalmente, nunca soube lidar bem com essa assimilação da política em seu processo de decidir. A Justiça só tem sabido optar por um entre dois caminhos: sim ou não. Ela vê como maligno tudo o que se situe além ou aquém dessa dicotomia, entre sua rigidez. É um paradoxo: uma Justiça que não é neutra à política, ao fim e ao cabo, não sabe lidar com ela.

Entre feridas antigas e recentes não cicatrizadas, e julgamentos inconvincentes, pendem as paixões do calor da hora, e os interesses de uma eleição que se avizinha, que busca resolver o impasse que remanesceu na eleição nacional anterior. O Brasil parece congelado em seu passado. Os gritos de hoje são virtualmente ressonâncias.

O contexto agrava as sensações e os sentimentos. O Brasil continua muito desigual, avesso à participação política, às expressões de movimentos populares, repressor de manifestações e lutas pelos direitos humanos, mas laxista com os crimes que vitimam populações periféricas, minorias e defensores desses direitos.

Mas há um clamor de intolerância com relação à corrupção, e por sua punição — desde que não atrapalhe a governabilidade, velho tabu de nossa política republicana. Nesse curso, há várias protagonistas de condenação — da opinião pública às instituições, passando pela mídia e pelas redes sociais — mais ou menos seletiva, com várias cartas sendo tiradas do baralho do processo eleitoral. A opinião popular desconfia que essa seleção seja realmente feita às cegas.

São muitos fatores de insegurança e instabilidade e tudo é visto como vitória ou derrota, em batalhas que não terminam. A ministra decidirá, dessa vez? E isso encerrará a questão? Há tantas outras em jogo. O Congresso aprovará mais alguma reforma? E o presidente tomará mais alguma medida de exceção? As Forças Armadas ainda vão continuar a se manifestar? Os julgadores farão outros discursos e escreverão artigos para convencer o público do acerto de suas opiniões? Alguma opinião vai prevalecer? Qual é, afinal, o direito? E quem tem direito terá razão?

O jogo da política é sedutor, mas não serve aos verdadeiros atores, nem a todos os atores da vida econômica e social, que buscam se aglutinar em torno de determinadas estruturas subalternas da Administração — que parecem continuar a funcionar —, quando tem agência; ou contra as estruturas de força do Estado — quando sentem que lhes falta amparo nos direitos e nos serviços de proteção estatal. Ou então resta gritar os nomes dos que se consideram salvadores da nação.

Descrença e resistência são as palavras que resumem as paixões sem alma do país do futuro incerto, a não ser para aqueles que são colhidos no processo da nova onda mundial da punitividade.

Nessa democracia da incerteza, o calor incessante das paixões é tão opressor quanto a capacidade de serem perpetuadas injustiças, contra ou a favor da lei.

Alfredo Attié é presidente da Academia Paulista de Direito, desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, pesquisador e doutor em Filosofia da USP

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