Estou me tornando minha mãe
Ouça, como se ela estivesse diante de você, as exclamações de resignação e os resmungos
Cedo, logo depois de ter se levantado, olhe-se no espelho do banheiro e saiba que já não é uma mulher de quarenta anos com uma bela casa, filhos, um marido, a profissão que você gosta. Pense: “Estou me tornando minha mãe”. Sinta as ondas expansivas da insatisfação, as lascas da queixa e do protesto, um alienígena que vem buscá-la vindo de outro tempo com o peso lento do desânimo e da ansiedade. Veja, como estivesse na sua frente, o punho cerrado de sua mãe dando irritantes toquezinhos na toalha de mesa depois de reclamar – sempre depois de reclamar – algo ao seu pai. Veja o gesto amargo e tísico de sua boca, as comissuras dos lábios franzindo com reprovação de quase tudo. Ouça, como se ela estivesse diante de você, as exclamações de resignação e os resmungos. Diga a si mesma que agora esses resmungos também são seus. Sinta-se colonizada por uma vida alheia construída com tijolos tumefatos, uma vida que sempre desprezou. Olhe para as suas mãos. Perceba que as veias estão mais visíveis do que antes, como aconteceu com ela com o passar dos anos. Pense: “O que aconteceu comigo”. Sinta que é um fruto em processo de decomposição, que só resta alguma escassa pincelada do que você foi: um vago entusiasmo por certas coisas, muito borrado e de vez em quando. Escute que seu marido, no quarto, acorda. Pergunte o que ele ama em você, o que ele vê quando te olha. Sinta-se a peça desgastada em uma máquina que ainda funciona. Sinta vergonha de carregar, dentro de você, tudo o que odeia, um fantasma cinzento sem um sopro de alegria. Pense naquele poema de Anne Carson: “Um barco frio / zarpa de algum lugar dentro da esposa / e se põe rumo ao horizonte plano e cinzento / nem pássaro nem sopro à vista”. Pense: “não vou suspirar”. Suspire, como sua mãe fazia. Escove os dentes.
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