Foto da guerra síria que viralizou esconde um fascista
Anis, protagonista com seu antigo gramofone de uma imagem que simbolizou os civis no conflito, admira Hitler e Franco
A imagem feita pelo fotógrafo libanês Joseph Eid, da agência France Press, se tornou viral nas redes sociais em março. É a de um Anis pensativo, cabelo e barba brancos e desalinhados, degustando um velho cachimbo e absorto por uma música que quase pode ser escutada de um centenário gramofone. A cena ocorreu em um quarto devastado pelos combates de Aleppo (Síria). Mas a batalha travada por Mohammed Mohiedin Anis difere da batalha travada pelo restante de seus vizinhos.
“Fiquei para manter viva a memória, a casa de meus pais e evitar que roubassem minha fábrica”, diz em um correto espanhol, o quinto dos idiomas falados por esse erudito além de inglês, italiano, francês e árabe. Junto com outros 100.000 sírios permaneceu quatro anos de combates no punhado de bairros dominados por rebeldes e islamitas, e sob a constante chuva de bombardeios dos Exércitos da Rússia e da Síria. No porão de sua casa acumula estantes com milhares de produtos cosméticos da empresa que comandava antes do início da guerra civil, em 2011, e que afirma que voltará a abrir. Ainda que certamente alguns desses batons hoje em dia devem estar vencidos. Da varanda destruída de seu quarto chegam as risadas de um grupo de crianças que brincam entre balanças calcinadas e escorregadores quebrados. Essas ficaram simplesmente porque não tinham para onde ir.
Anis tem pouco em comum com o habitante médio de Aleppo. Reúne, isso sim, as qualidades para protagonizar um filme de Pedro Almodóvar. Aristocrata, colecionador de carros, comerciante, hispanófilo, mulherengo, fascista, poliglota e polígamo. É assim que se define esse extravagante septuagenário, que pergunta faceiro se poderia aparentar 50. Usa terno e sobre sua gravata pendem velhos monóculos. Seu modo elegante de andar desafia o caos e destruição pela qual caminha no bairro de Shaar, um dos mais devastados de Aleppo – anteriormente a capital econômica da Síria – quando em dezembro cruentos combates acabaram com a expulsão dos últimos milicianos rebeldes.
Profuso em palavras, Anis conta que aprendeu a língua de Cervantes em Zaragoza, onde estudou medicina entre 1970 e 1975. Afirma que sente a Espanha como seu segundo país e que a Andaluzia é sua região preferida pela proximidade com sua cidade. Quando há conexão de Internet, Anis troca os velhos discos das cantoras libaneses Fairuz e Sabah de seu gramofone pelas canções do espanhol Rafael, um de seus cantores prediletos. Mas as verdadeiras paixões desse sírio são os carros e as mulheres. Os 20 primeiros estão estacionados em frente a sua senhorial e deteriorada casa. As duas segundas foram embora, uma a Beirute e a outra a Damasco.
“O Cadillac dos anos cinquenta é meu preferido”, diz o colecionador ao mesmo tempo em que coloca o dedo indicador nos buracos de bala que o velho carro recebeu no capô. Foi seu pai, de uma família abastada, que em sua infância lhe inculcou o amor pelos carros quando costumava simular dirigir o Pontiac de 1950 que ainda conserva estacionado em frente a sua casa. Dos 30 automóveis que faziam parte de sua coleção, só restam 20. Alguns foram levados pelo Exército sírio, outros pelos rebeldes e vendeu o restante. Em relação às esposas, não se importaria em ter uma terceira para resolver a solidão, conta risonho. Sua prole de oito filhos vive espalhada entre a Síria, Turquia e Europa.
Não perdeu o romantismo e a esperança, convencido de que a Síria sairá dessa porque “somos um povo vivo e forte”. Elogia os princípios dos rebeldes, que afirma terem lhe tratado bem, mas critica o uso das armas. Conhece muito bem o efeito delas. Foi testemunha de duas guerras civis. Após viver na Espanha durante os últimos anos da ditadura, aterrissou no Líbano em 1975, quando estourou uma cruenta Guerra Civil que iria durar 15 anos. Nesse século coube a ele testemunhar sua própria. Não se considera um símbolo na Síria, mas um dialogador irritado com as armas.
Nos cômodos de seu lar se amontoam corroídos jornais, um violão haitiano, um antigo “aquecedor de madeira deixado pelo último soldado francês a abandonar a Síria [em 1946]”, e outras tantas pérolas da história como seus dois antigos gramofones. Mas talvez o que mais surpreenda é a pintura que, marcada por estilhaços de bomba, domina uma das salas entulhada de caixas poeirentas.
“Se disserem que está morto desconfie”, pode ser lido em espanhol e árabe pintado na parede e acompanhado por uma suástica em uma bandeira vermelha e um Hitler desafiador, pés quadrados, mão esquerda sobre o cinto, braço direito esticado fazendo a saudação nazista. “Sou um fascista e um franquista”, admite entre gargalhadas. “Espanha: uma, grande e livre”, Anis grita o lema franquista, expressando um grande respeito por Franco que, diz o sírio, “conseguiu destruir o anarquismo e devolver a democracia à Espanha com o rei Juan Carlos”. Elogia também o local que ditador concedeu na história à afluência islâmica na Espanha. Chegou até mesmo a brigar com um funcionário do Governo de Damasco que se negava a registrar Hitler como segundo nome de um de seus três filhos homens. É possível que a guerra tenha atingido com uma faísca de loucura o excêntrico Anis, quando decide colocar-se diante do mural e imitar a saudação fascista.
PROCURAM-SE HERÓIS DE GUERRA NA SÍRIA
Como em toda guerra, a síria fabricou seus heróis. Diferentemente de guerras anteriores, quem o fez foram os ativistas através das redes sociais. Foi o caso de Bana Al Alabed, uma menina de sete anos cuja mãe lhe abriu uma conta no Twitter para relatar as dificuldades que aproximadamente 100.000 civis viveram sob o cerco e avanço final das tropas sírias em Aleppo. A garota, hoje refugiada na Turquia, se transformou em um ícone com 360.000 seguidores. Mais tarde foi o menino da ambulância, Omran Daqneesh, que, atemorizado, coberto de pó e esfregando o sangue do rosto personificou o extrato de mais de 18.000 menores sírios mortos durante um conflito que completa seu sétimo ano.
Anis foi o último herói criado pelas redes sociais. Em busca de símbolos, muitos ficaram na sombra, enquanto esses três acabaram por ter outro passado com o qual foram ligados. O pai de Bana era membro de uma milícia apoiada pela Turquia e o pequeno Omran reapareceu na televisão síria com seus pais após se curar com a bandeira do Governo de Damasco que quase lhe arranca a vida e matou seu irmão. Hoje, Anis se declara seguidor de dois dos maiores ditadores da história que executaram milhões de pessoas.
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