O Brasil à flor da pele
A distância entre gritos nas redes sociais e o som dos tanques de guerra rolando no asfalto não é tão grande quanto parece
A maré está mudando no Brasil. Ao que parece, de repente a ala conservadora do país - incluindo seus mais reacionários extremistas - acordou de um sono tranquilo, do descanso despreocupado de quem sabe que sempre foi maioria, e passou à ação. Esse fenômeno vem sendo chamado, já há alguns anos, de "onda conservadora".
Um caso recente ilustra bem a força da onda. No dia 15 de setembro passado, o juiz Waldemar Cláudio de Carvalho, do Distrito Federal, concedeu uma liminar que autoriza psicólogos a oferecer "atendimento profissional, de forma reservada, pertinente à (re)orientação sexual". A palavra-chave aqui, claro, é "(re)orientação", com seus ardilosos parênteses. A bem da verdade, a decisão do magistrado leva em conta tanto a posição da Organização Mundial de Saúde quanto a do Conselho Federal de Psicologia do Brasil, ambas firmemente contrárias à noção de que homossexualidade seja doença ou distúrbio e, portanto, algo curável. Entretanto, sob a bandeira da "liberdade científica", abre espaço para que se reconsidere algo que já é consenso científico há décadas. "(Re)orientação sexual" é um termo que faz ressurgir velhos fantasmas, como terapias de "reversão" e a infame "cura gay", que já causaram traumas o bastante em jovens homossexuais para que sejam outra vez trazidos à discussão.
Ou seja, escondido sob o juridiquês cheio de boas intenções da liminar, há um antiquíssimo cacoete linguístico, que teme em não cair em desuso: "Não sou homofóbico, mas..." (que também costuma surgir na versão "Não sou racista, mas...", entre outras). Depois desse "mas", costuma sempre vir algo que contradiz a afirmação anterior.
Não por acaso a decisão causou furor, ira e sarcasmo nas redes sociais. É provável que, na rapidez e superficialidade das polêmicas de Internet, poucos tenham lido a decisão, pesquisado a fundo sobre o assunto ou mesmo considerado o perigo de ter certas ideias aparentemente superadas circulando no Judiciário. Mas é justamente no debate ralo e na gritaria on-line que notamos como certas questões estão à flor da pele nacional – e como agora podemos distinguir claramente os dois campos do espectro político que se digladiam pela alma cultural do país.
Outro episódio emblemático, também em setembro passado, foi a decisão do Santander Cultural, em Porto Alegre, de encerrar a exposição Queermuseu – Cartografias da diferença na arte brasileira antes da data programada, após uma onda de protestos nas redes sociais e no próprio local da exposição. A mostra reunia obras relacionadas à diversidade sexual e às questões de gênero, incluindo nomes canônicos como Portinari, Lygia Clark e Leonilson, além de contemporâneos de grande relevância, como Adriana Varejão, e artistas em ascensão.
Para quem costuma frequentar exposições, a Queermuseu não causaria nenhum espanto. Nem as obras pensadas "para chocar", a esta altura da história, chocam mais – o próprio escândalo foi absorvido pelo mundo da arte como mais uma de suas bijuterias conceituais. Aqueles que protestaram, no entanto, viram na mostra o que seus próprios demônios lhes sussurraram ao ouvido: blasfêmia, pedofilia, zoofilia. Grupos militantes de direita, muito bem organizados, ajudaram a espalhar as visões distorcidas das peças expostas, causando pandemônio entre internautas, muitos dos quais sequer viram as obras, só ouviram falar da tal "exposição de pedófilos". Mas nas redes sociais opinião é como mato: nasce até em terreno baldio.
Assustado com a repercussão negativa, e provavelmente temendo boicotes ao banco, o Santander cedeu à pressão e cancelou a mostra, desculpando-se a quem quer que tenha se sentido ofendido e, paradoxalmente, reafirmando que seu intuito é promover debates. Evidentemente, fechar a exposição é matar o debate.
Grupos militantes de direita, muito bem organizados, ajudaram a espalhar as visões distorcidas das peças expostas, causando pandemônio entre internautas
O importante é que, mais uma vez, sob o disfarce das boas intenções – afinal, ninguém seria a favor de apologia à pedofilia (o que não havia na exposição) –, a moral conservadora se impôs. A onda é potente.
Os dois episódios são parte de um mesmo fenômeno, se considerarmos a cultura como produção de saberes e modos de vida – e não somente como criação e consumo de obras de arte em seus espaços típicos (museus, galerias, teatros etc.). Essa noção mais ampla de cultura é o que está em jogo no Brasil atual.
O crítico e professor Roberto Schwarz identificou em seu ensaio "Cultura e política, 1964-1969", uma análise do Brasil sob a ditadura civil-militar, o que ele denominou "hegemonia cultural de esquerda". Apesar da repressão, que recrudescia a cada ano desde o golpe em 1964, "a presença cultural da esquerda não foi liquidada", muito pelo contrário, "de lá para cá não parou de crescer" (o texto foi publicado no Brasil em 1978). O núcleo de seu ensaio é uma espécie de anomalia: "apesar da ditadura da direita há relativa hegemonia cultural de esquerda no país". Esse ciclo de predominância da esquerda cultural foi encerrado pelos governos militares posteriores por meio da censura e da violência.
De certa maneira, porém, a hegemonia cultural da esquerda nunca foi extinta no Brasil, e voltou a ganhar força após a ditadura. Hoje, mais de meio século depois do golpe e dos embates políticos da época, talvez seja mais apropriado falar em uma cultura progressista, em oposição ao conservadorismo. Embora as denominações específicas da esfera político-partidária estejam imbricadas, por vezes confusamente, nas noções de progressismo e conservadorismo, a distinção serve para que compreendamos melhor o conceito expandido de cultura, terreno onde hoje se dão as batalhas nacionais.
Sob a ditadura, a hegemonia cultural de esquerda se relacionava à produção de arte, livros, panfletos, filmes, peças de teatro etc. Os modos de vida, por sua vez, ainda eram em grande parte ditados pelo regime totalitário. Isto é, a cultura, em seu aspecto amplo, era brutalmente dominada pelos governos militares, do futebol ao mercado de trabalho. A balança, portanto, só poderia pender para um lado – evidentemente, aquele que possuía os tanques de guerra.
Em nosso breve período democrático, a hegemonia da esquerda aos poucos foi se assentando e, com o tempo, tornou-se hegemonia progressista. Sem figuras totalitárias para guiar a cultura em sentido lato, a antiga esquerda ocupou o vácuo, absorvendo questões não necessariamente ligadas à esquerda político-partidária, como questões de gênero, igualdade étnica e diversidade cultural.
Esta, porém, é a diferença entre cultura como mera produção de arte e cultura como invenção de modos de vida e saberes: qualquer um pode ignorar um livro de poemas panfletários, mas é difícil ignorar comerciais de TV com casais gays, mudanças na relação entre homens e mulheres nos locais de trabalho ou a exposição das feridas racistas do último país a abolir a escravidão na América.
A partir de 2013, quando a nação foi às ruas exigindo desde melhorias no transporte público até o fim da corrupção, o campo conservador aprendeu a se mobilizar e, sentindo que perdia terreno, enfim compreendeu onde deveria tentar intervir: na cultura como modo de vida, seja reagindo às mudanças conquistadas pelos progressistas, seja levantando suas próprias bandeiras. O mar cultural relativamente tranquilo em que navegavam os progressistas encontrou sua maré brava. Não admira que o Brasil esteja à flor da pele. O embate, agora, é em campo aberto e mais ferrenho, os ânimos acirrados devem ser contidos para que haja debate democrático e não pura gritaria. A distância entre o grito e o som dos tanques de guerra rolando no asfalto não é tão grande quanto parece.
O escritor Victor Heringer abre a série Diálogos Brasil-Europa, uma iniciativa de EUNIC - European Union National Institutes for Culture em São Paulo - para que intelectuais dos dois continentes debatam sobre o tema “Populismo e Cultura”. Nos próximos dias um escritor europeu responderá às questões expostas por Heringer.
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