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​O câncer em primeira pessoa

Jornalista do EL PAÍS relata sua convivência com uma doença que deixou de ser inominável para ser, em alguns casos, crônica

Loja da Monje’s em Madri, especializada em perucas de estética e oncologia.
Loja da Monje’s em Madri, especializada em perucas de estética e oncologia.Sofía Moro
Anatxu Zabalbeascoa
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A primeira vez que um médico – o cirurgião Mariano Díaz Miguel – me falou sobre um carcinoma in situ, que em alguns países é considerado pré-câncer, não consegui responder. Só ouvia a palavra câncer. Não sabia nada sobre tipos ou prazos, mas fiquei sabendo tudo sobre o terror. Eu tinha 47 anos. Havia ido fazer um check-up de rotina e não conseguia parar de chorar. Depois de uma cirurgia com preservação de quase todo o seio e radioterapia, em quatro meses eu o deixei para trás. Na segunda vez que me diagnosticaram câncer, não precisei ouvir isso do cirurgião. Seu rosto traiu que a biópsia não era boa. Estava infiltrado. Além da cirurgia e da radioterapia, eu precisaria de quimioterapia. Não chorei. Não é que em três anos eu tinha me tornado corajosa, é que tinha aprendido algo sobre essa epidemia que, em muitos casos, se tornou uma doença crônica com a qual é urgente saber conviver.

Díaz Miguel disse que eu tinha tido sorte: “De uma década para cá, para o seu tipo de câncer agressivo (oncogene HER2) existe um anticorpo (trastuzumab) que funciona como o antibiótico em relação às bactérias”. O fato de aquilo que vai prolongar sua vida existir há menos de uma década dá arrepios. E também te enche de gratidão.

O caminho de promessas e perigos que leva a uma cura do câncer está cheio de mortos. E não são apenas pacientes. Em 1896, um ano depois que Wilhelm Röntgen descobriu os raios X em Würzburg, Emil Grubbe começou a usá-los contra o câncer em Chicago. Ele tinha 21 anos. Pagava os estudos trabalhando em uma fábrica de tubos de vácuo para raios X. Ele pensou que se os operários perdiam a pele, essa morte celular funcionaria nos tumores. “Quando tinha 60 anos, seus dedos haviam sido amputados um a um”, escreve o oncologista Siddhartha Mukherjee em O Imperador de Todos os Males, biografia do câncer que ganhou o Prêmio Pulitzer em 2011. O que os pioneiros da oncologia radioterápica deixaram claro foi que os remédios contra o câncer poderiam curar ou matar. Frequentemente, as duas coisas ao mesmo tempo. Combinar veneno e cura também define a natureza da quimioterapia, descoberta por acaso em 1943, quando a Luftwaffe bombardeou um cargueiro dos Estados Unidos que levava bombas experimentais de gás mostarda no porto de Bari. A explosão deixou os marinheiros sem glóbulos brancos e iluminou a questão sobre como atacar os glóbulos malignos. Quanto arriscar para curar é o que médicos e cientistas debatem há séculos.

Anatxu Zabalbeascoa, autora da reportagem.
Anatxu Zabalbeascoa, autora da reportagem.Sofía Moro

O oncogene HER2 do meu tumor não está sozinho na corrida da pesquisa. Recentemente, um tipo de leucemia, que há 20 anos era uma sentença de morte, se trata com comprimidos. O Imatinib a domou. Conhecer o nome e o sobrenome dos oncogenes permite que os tratamentos sejam mais precisos, menos tóxicos, multiplique a expectativa de vida e evidencie a complexidade dessa doença esquiva que usa o próprio sistema imunológico para se espalhar. O mesmo processo pelo qual o nosso corpo repara lesões é pervertido em benefício das células cancerosas, que o exploram para sua reprodução. É por isso que custa tanto curá-lo.

O fato de o câncer ser uma doença dos genes –uma alteração no DNA celular– não significa que seja hereditário. Menos de 10% dos cânceres o é. Nesses casos, é urgente aumentar os exames, optar por uma cirurgia preventiva e avisar os descendentes. Aconteceu com a atriz Angelina Jolie e ela escolheu uma mastectomia dupla. Do resto, 80% têm a ver com condições ambientais: alimentação, fumo, infecções ou exposição a tóxicos. É por isso que cada vez mais médicos e pacientes perguntam o que podem fazer para evitá-lo.

A cada ano, 14 milhões de casos são detectados no mundo. Muitos oncologistas falam de "praga"

O pai da patologia moderna, Rudolf Virchow, provou no século XIX que um em cada seis casos vinha de uma inflamação crônica. Também o psiquiatra francês David Servan-Schreiber estabeleceu essa relação quando, aos 33 anos, descobriu seu próprio tumor cerebral enquanto fazia pesquisas na Universidade de Pittsburgh. Ele deduziu que, como os principais cânceres que afligem o Ocidente – de mama, próstata e cólon – acontecem até 70 vezes mais aqui do que na Ásia, deveria haver uma relação entre o câncer e o estilo de vida. E reuniu ensaios científicos que mostravam que, sem inflamação, os vasos sanguíneos não alimentam os tumores. É por isso que sua dieta desaconselha o que a promove –o açúcar e os alimentos processados– e aconselha cogumelos ou avelãs, que a reduzem. “O tumor cancerígeno não pode crescer se não conseguir desviar sangue para seu próprio uso”.

O bioquímico Richard Béliveau, que dirige em Montreal um dos maiores laboratórios especializados em biologia do câncer e que trabalhou com as principais empresas farmacêuticas, apoia essa tese. “Se me pedissem para criar uma dieta que favorecesse o desenvolvimento do câncer, não poderia encontrar uma melhor do que a nossa alimentação atual”, disse. Por outro lado, manuais de medicina clássica como o Cecil-Loeb não dedicam um único parágrafo à relação entre nutrição e câncer. Talvez por isso os livros de Servan-Schreiber –que acabaria morrendo em 2011 de um segundo tumor (dado que não aparece nas reedições)– são hoje best-sellers mundiais que muitos pacientes passam de mão em mão. John Mendelsohn, presidente do famoso Anderson Cancer Center em Houston, o maior em pesquisa e tratamento, descreveu um deles, Anticancer, una Nueva Forma de Vida (Anticancer, uma nova forma de vida), como “os conhecimentos necessários para a prevenção do câncer com base nas evidências”. Servan explica nele como o paciente pode contribuir para sua cura completando o tratamento médico tradicional. No ano em que foi criado, 2007, o World Cancer Research Fund informou sobre a prevenção de 40% dos cânceres mediante simples modificações na alimentação, na atividade física e no cuidado em relação ao ambiente. Se acrescentarmos o relaxamento, teremos uma descrição da medicina integrativa, uma ponte entre disciplinas que levanta dúvidas e paixões entre pacientes e oncologistas.

Schopenhauer resumiu que toda verdade atravessa três fases: o ridículo, o ataque e, finalmente, a aceitação. Desde que o egípcio Imhotep descreveu, em 2625 a.C., uma massa volumosa para a qual não havia cura, ou que Hipócrates batizou de Karkinos o tumor cercado por vasos sanguíneos que lembrava um caranguejo, os tratamentos contra o câncer foram testados, corrigidos e reinventados. Com a quimioterapia, a sobrevivência nos cânceres de mama em estágios avançados aumentou entre 17 e 30 anos, mas Mukherjee lembra que a comunidade médica considerou as quimioterapias como intrusas na década de cinquenta. É por isso que esse oncologista da Universidade de Columbia fala em redefinir a vitória: prolongar a vida, não eliminar a morte.

Duas semanas depois de ter me informado, o doutor Díaz Miguel saiu sorrindo da sala de operações. Explicou ao meu marido que o linfonodo sentinela, o primeiro da axila, estava limpo. É um bom sinal para avaliar se o câncer se espalhou ou não. Mas os oncologistas não dão nada por certo. Lobo diz que com o primeiro sinal se deve usar toda a artilharia. Nunca saberei se o que me cura é a quimio, a radio ou a operação. Nem mesmo se a quimio, com todos os seus efeitos devastadores –a exaustão ou a perda de unhas e cílios, o rosto genérico, esse rosto apagado tão característico quanto inevitável– foi necessária. Mas o câncer serve para desativar preconceitos. Descobrimos que os períodos de espera oncológicos são os mesmos para os pacientes da Seguridade Social que para aqueles dos planos de saúde. Com esse segundo tratamento, abandonarei o da Associação dos Jornalistas por causa da burocracia contínua e dos extras mensais (mais de 400 euros, cerca de 1.536 reais). Fala bem de um hospital que funciona com menos burocracia no sistema público do que no particular. Essa dúvida sempre acompanha o paciente novato. Existem hospitais melhores?

Leandro Jiménez, paciente crônico com câncer colorretal, no hospital da Fundação Jiménez Díaz, em Madri.
Leandro Jiménez, paciente crônico com câncer colorretal, no hospital da Fundação Jiménez Díaz, em Madri.Sofía Moro

“Um tratamento é um trem que só passa uma vez”, enfatiza o doutor. Lobo. “O prognóstico depende do primeiro médico que o vir. É como a decolagem e o pouso de um avião: não pode haver erros”. A maior evolução que experimentou é a perda do protagonismo do oncologista, hoje um elemento mais dentro de um grupo que deve funcionar “com precisão de orquestra sinfônica, mas sem hierarquia: para em função de quais peças, o primeiro violino pode ser vital”. A chave está na colaboração. Para isso, existem comitês inter-hospitalares de tumores. “Um paciente não deveria perguntar se o hospital é grande ou pequeno, mas como funciona seu comitê de tumores”, resume. Até os casos mais simples são avaliados semanalmente. Quando ele descreve as sessões às 7h30 e a constante remessa de amostras para centros especializados do mundo, se percebe uma espécie de diplomacia paralela que colabora em vez de competir para curar as pessoas.

O tumor de Yolanda Aznal voou aos EUA para ser analisado. Tem 40 anos e entra no hospital de dia levando picolés Calippo “para evitar feridas na boca”. É acompanhada pela tia, que, com frequência, se emociona ao nos ver falar. Um dia diz que se lembra do pré-operatório: “Quem não parava de chorar era eu”. Na sala onde são feitos os ciclos de quimioterapia, as pessoas entram caladas. Muitos pacientes dormem vencidos pelos calmantes. Recebendo carboplatina com etopósido por via intravenosa, Danae Castejón está no último ciclo de seu quarto tratamento. Deram-lhe meses de vida quando tinha 27 anos. Não encontravam a origem de uma metástase que espalhou tumores em seus ovários. “Estava na vesícula”. Hoje, três anos depois, e com as unhas pintadas de verde, agradece não ter conhecido esse diagnóstico tão drástico que, além de tudo, se revelou falho.

Nunca saberei se o que me cura é a quimio, a radio ou a operação. Toda a artilharia é usada

O doutor Lobo fala em “verdade suportável”. “Somos claros, mas você não pode fechar todas as portas. Mesmo que não exista possibilidade de cura, explicamos o que pode ser feito”. O que o paciente pode fazer era muito no caso de Danae. Antes de descobrir os tumores, fez várias visitas a uma médica de cabeceira que os confundiu com gases até que um TAC revelou o rosário de “bichinhos”, como são chamados por tantos pacientes. Conta que seu ginecologista saiu chorando da sala de cirurgia: “Não podiam tocar no fígado porque um tumor roçava o nervo. Três semanas depois o fígado estava limpo”. O que tinha acontecido?

Ela acredita que uma dieta com alimentos anti-inflamatórios ajudou a quimioterapia. Sua irmã descobriu o livro da doutora Odile Fernández, Mis Recetas Anticáncer (Minhas receitas Anti câncer), e somou verduras e cúrcuma ao tratamento tradicional. “Tive dificuldade em deixar o açúcar”, lembra. Enxuga as lágrimas como quem espanta uma mosca, mas conta sua história com energia: “A doutora me repete que para ela sou importante. E eu acredito, sou um caso raro e isso interessa a todo mundo”.

Cada vez mais especialistas consideram que o doente pode e deve ajudar a sua cura. Fernández, médico de família, sustenta que o câncer é “fomentado pelo aumento do sedentarismo, do estresse e dos pesticidas” – a União Europeia é o principal produtor de pesticidas do mundo, 72% para consumo próprio. A atrazina, que como o DDT acabou sendo proibida, mudava o sexo dos peixes nos rios em que chegava. E acredita que um de cada três casos “pode ser prevenido com a alimentação”. Ela mesma escreveu seu livro depois de superar um câncer nos ovários com metástase em estádio IV, o mais grave. “O habitual é morrer em cinco anos ou passar por várias químios”, diz por telefone. A quimioterapia destrói não só as células malignas, mas também as saudáveis. Por isso, existe um limite que cada organismo pode suportar dependendo do estado de suas defesas. Fernández está há sete anos sem câncer, convencida, como Danae, de que seu quadro evoluiu melhor graças à medicina integrativa: “Alimentar-se bem é cuidar-se três vezes ao dia”.

“Os casos surpreendentes também acontecem com pessoas que não faz dietas”, adverte a doutora Escarlata López, chefe do serviço de oncologia radioterápica na Fundação Jiménez Díaz. Reconhece que a cultura médica aceita melhor as soluções farmacêuticas do que o poder curativo do exercício ou da dieta. “Estamos diante de um campo fértil para charlatões e oportunistas, por isso os médicos devem estar atentos para esse lado, que é demandado pelos pacientes e deixado de lado pela medicina tradicional”, ressalta. O paciente oncológico anseia contribuir para sua cura, mas o doutor Lobo alerta para um dos grandes perigos do tratamento do câncer, a automedicação: “ 86% dos pacientes se automedicam às escondidas. Acreditam que as vitaminas reforçam suas defesas, mas quando se está controlando o crescimento celular, as vitaminas podem falsear resultados”.

A paciente Danae Castejón recebe o último ciclo de seu quarto tratamento.
A paciente Danae Castejón recebe o último ciclo de seu quarto tratamento.Sofía Moro

Yolanda às vezes prende os cabelos e é difícil notar que usa peruca. Danae comprou a sua pelo correio – custam entre 300 e 1.800 euros (entre 1.100 e 6.000 reais). Eu pensei que tinha chegado a hora de experimentar um cabelo liso, como o de Cleópatra, mas é preciso ter a mão adestrada para ficar tirando o cabelo da cara. Os turbantes me deixavam parecida com a xeique do Qatar, por isso acabei optando pelos lenços. Sentia que disfarçar os rastros do câncer era contribuir para seu obscurecimento. Já sofria o bastante com ele para ter de escondê-lo. Talvez tenha ficado obcecada. Mas talvez que o câncer seja mais suportável quanto menos você tiver que mudar.

A relação antiga com essa doença acompanha muitos dos que circulam pela ala de oncologia. Alexander Ortiz, um barman peruano, superou um linfoma de Hodgkin e agora informa sobre cursos, conferências e seminários na Associação Espanhola contra o Câncer (AECC). Para o doutor Lobo, curar sua mãe foi uma das satisfações de sua vida. “A maior foi curar um jovem com prognóstico ruim e que, passados os anos, chegou um dia à consulta com seus filhos”. Também a doutora Escarlata López diagnosticou sua mãe: “Resistia dizendo que eram nervos”. No departamento de oncologia radioterápica, Amaia Ilundain escolheu a especialidade “porque chega em casa sem duvidar sobre o que é e o que não é importante”. Lobo alerta seus alunos de que, para ser oncologista, é preciso ter uma vida pessoal muito estável. Sua filha é oncologista no hospital Severo Ochoa. Como passou para ela a vocação? “Disse a ela para escolher qualquer especialidade menos esta”.

A doença consome anualmente em torno de 5 bilhões de euros na Espanha

Lobo recorda que o mítico manual Cecil-Loeb pergunta: o que o paciente espera de seu médico? “A primeira coisa que pensei foi: a cura. Mas não é isso. Muitos pacientes não esperam que você os cure, esperam que os escute”. Em seu livro Talking and Writing (Conversando e Escrevendo), o arquiteto Norman Foster relata que não quis ficar na poltrona reclinável e pediu cadeira e mesa para trabalhar durante seus ciclos de químio. “Hoje os pacientes é que estão impulsionando muitas das mudanças”, diz Odile Fernández. “Em medicina, às vezes pequenas coisas – lavar as mãos ou acariciar os bebês na UTI – tiveram grandes resultados”, recorda a doutora López. O cuidado do corpo como medicina preventiva poderia baratear as curas de uma doença que consome 5 bilhões de euros por ano na Espanha, 12% do orçamento de saúde. Embora seja difícil determinar o custo médio de um tratamento, só o imatinib – comercializado como Glivec –, para a leucemia, custa 30.000 euros por paciente e por ano. Quando expira a patente, os genéricos são vendidos por 10% desse valor.

O fato de pacientes com linfoma de Hodgkin terem uma esperança de vida de 80% na Europa e 35% nos EUA não indica onde a medicina está mais avançada. Em vez disso, revela quem pode pagá-la. Sistemas de saúde como o norte-americano levam em conta as possibilidades de cura na hora de aprovar um tratamento. Ficarão mais baratos um dia? Hoje as empresas farmacêuticas financiam a pesquisa caríssima. E querem rentabilizá-la.

“Já há estudos que falam da redução de custos que resultaria da implantação da medicina integrativa na saúde pública”, diz Odile Fernández. O paciente fica esgotado depois de um ciclo de quimio, mas, milagre, melhora se fizer exercícios em vez de se deixar abater. Quem rompe o sedentarismo ativa o corpo e a mente. A doutora López defende somar ao tratamento tradicional o relaxamento, “que reduz a ansiedade e a necessidade de fármacos”. Quando experimentei me pareceu perda de tempo. Uma pessoa inteligente teria entendido com isso quanto a necessitava. Procurei vídeos no Google, mas só testei os que duram 10 minutos. Até que meu marido me segurou pelo braço quando corria para cruzar com o semáforo vermelho. “Acredito que o que entendem por relaxamento não é exatamente isso”.

Carmen Gabarre não usa nem peruca nem lenço. Faz crochê e depois conhecer o trio de crônicos do cólon, Manuel, Gregorio e Leandro – que nunca desanima e percorre a sala empurrando seu suporte de soro para cumprimentar outros pacientes –, exclama: “Que clima pesado, os de terça-feira estão sempre chorando, vou pedir que me mudem de dia”. A quimio está reduzindo o seu tumor antes da operação. Os de mama têm melhor prognóstico dependendo de a que reagem. Em outras partes do corpo, os tumores continuam sendo enigmas parecidos com o que Hipócrates batizou de “caranguejo”. Segundo a OMS, mais de oito milhões de pessoas morrem de câncer todo ano. “Há cada vez mais casos e cada vez se salvam mais pessoas”, resume Encarni, a enfermeira que espera Chen, uma paciente chinesa, lhe passar o celular para falar com um intérprete do outro lado da linha.

Há três meses, venho aqui toda quarta-feira. E depois a cada três semanas para receber anticorpos. Apesar de muitos pacientes seguirmos uma dieta, no hospital nos dão sanduíches e pudins industriais. “As pessoas comem melhor”, justificam as enfermeiras. “Eu levo para dar aos pobres”, diz uma paciente olhando minha salada. Lina García – que comparece para um check-up depois de superar um câncer de mama metastásico – acredita que durante a quimio tira forças da debilidade, como se estivesse em uma corrida de obstáculos. “O problema vem depois, quando te falha a memória”. “A quimio parece cair melhor nos autônomos. Você está com um aspecto ótimo”, diz meu dentista, que não cobra a visita. Lina opina que o bom aspecto acaba prejudicando. “Não sei se esperam nos ver chorando pelos cantos, mas quando pomos maquiagem e sorrimos, as pessoas deixam de ver nossos pequenos dramas”. Ela pediu ao cirurgião que tirasse seus dois seios. “Estou separada. Tenho um filho pequeno e meus pais vivem em Albacete. Tinha que acabar com o problema”. Você aprende a se conformar. Mas também a não perder o tempo. “O que não ajuda, elimino”, resume. O câncer deixa as coisas claras.

Quando se é oncologista, “se chega em casa sem duvidar sobre o que é e o que não é importante”

O doutor Díaz Miguel te opera como se estivesse operando a si mesmo. Assim que você confia em um médico, começa uma rede de especialistas em cujas mãos você põe seu futuro. Os meus nem te abraçam nem dão muita importância a suas paranoias, mas você entende logo o que pode ou não fazer. Lobo vive atento aos exames de sangue feitos para comprovar se as defesas são suficientes para suportar a quimioterapia. No dia em que termino me fazem duas tatuagens no seio para que uma física calcule a área a ser irradiada.

No corredor que leva à sala de radioterapia, a fotografia de uma cachoeira iluminada por trás, como de restaurante chinês, pretende relaxar o paciente. Foi tirada por uma enfermeira durante a lua de mel. A rádio não se vê. Mas pode ter consequências ao longo do tempo, como um hipotiroidismo em pacientes de câncer de mama. Constato que os equipamentos são cada vez mais precisos: quatro anos atrás, meu câncer primário recebeu 30 sessões. Para tratar o tumor infiltrado bastaram 16.

Apesar desses avanços e de o câncer ser hoje uma doença majoritariamente crônica, meu oncologista não é otimista: “Nem todos se curam, os tratamentos de vesícula ou pâncreas quase não evoluíram”. Admite que as conquistas da imunoterapia eram inimagináveis. Os tumores avançados desenvolvem freios para que o sistema imunológico não os destrua. Hoje se sabe como contra-atacar esses freios. Você os elimina e o sistema imunológico ataca o tumor. O problema é o de sempre: a quantidade de mal que se pode suportar para conseguir o bem: “Ao eliminá-los, o sistema imunológico provoca danos no organismo”, explica Lobo. Por isso acredita que a chave está no diagnóstico precoce e na prevenção: “O câncer primário de fígado tem relação com a hepatite B. A simples vacinação pode prevenir seu desenvolvimento”.

A doutora Escarlata López (à direita), chefe do serviço de radiologia oncológica da Fundação Jiménez Díaz, em Madri, com sua equipe.
A doutora Escarlata López (à direita), chefe do serviço de radiologia oncológica da Fundação Jiménez Díaz, em Madri, com sua equipe.Sofía Moro

Como acontecia nas famílias de Tolstói, todas as células normais se parecem, mas cada célula maligna é maligna à sua maneira. Por isso não pode haver um modelo simplista na prevenção. “Os tipos de câncer que mais crescem, próstata e mama, são os que recebem mais atenção da indústria farmacêutica”, diz López, recordando que são hormonodependentes: “Isso os relaciona com o que comemos”.

O câncer tem um problema médico e outro social. Existem pacientes que requerem cuidados 24 horas em famílias que não podem deixar o trabalho. Também há pacientes separados do trato com o público porque “uma mulher sem sobrancelhas não pode vender cosméticos”. Esta doença destrói algumas famílias e cria outras. Entre os pacientes se dá uma intimidade instantânea, uma espécie de irmandade impensável entre desconhecidos. É uma etapa tão difícil quanto lúcida, por isso uma amiga fala “do clube dos privilegiados”. Você atravessa um estado em que não deixa de aprender, uma experiência extrema na qual você arrisca sua vida enquanto enfrenta o que você é. O câncer te obriga a avaliar o que come e bebe, analisar suas prioridades e repensar a que quer dedicar seu tempo. Agora preciso urgentemente demonstrar mais os afetos. Existe uma urgência em distinguir o irrelevante do fundamental. E sua vida se reordena. Por isso o câncer transforma as pessoas. O oncologista Siddhartha Mukherjee está convencido de que se o jogo terrível de tratamento, resistência, recorrência e mais tratamento puder ser estendido cada vez mais, também o câncer se transformará. E deixará de nos aterrorizar.

Depois da última quimio, me despeço do doutor Lobo. Estendo a mão e ele se aproxima para me dar dois beijos. “Não se despeça”, diz. “A relação entre paciente e oncologista é para toda a vida”.

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