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O desastre que queimou a Chapada dos Veadeiros e uniu um povo

Mobilização dos moradores foi fundamental no combate ao grande incêndio no parque nacional e para conseguir apoio em todo o Brasil

Uma voluntária abastece de combustível a um avião de combate contra incêndios.
Uma voluntária abastece de combustível a um avião de combate contra incêndios.Victor Moriyama
X. H.
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O céu anunciava na sexta-feira passada o fim dos seis meses de seca na Chapada dos Veadeiros. Mas aquelas nuvens cada vez mais escuras foram só um aviso. As pessoas estavam ansiosas. “Assim que começar a chover, saímos correndo para nos molhar”, antecipava um grupo de voluntárias contra o fogo no centro de operações de Alto Paraíso, a principal cidade da região. O otimismo se espalhava entre as centenas de pessoas – técnicos ambientais, bombeiros, brigadistas, policiais, pilotos e um grande exército de voluntários – exaustos depois de 17 dias de combate. O grande incêndio que devastou 65.000 hectares no coração do Parque Nacional da Chapada estava a caminho de ser controlado. E a chuva, desta vez, apareceu.

Chegou no sábado ao meio-dia e as garotas voluntárias cumpriram com a palavra. Transmitiram ao vivo no Facebook para que todo mundo pudesse vê-las pulando de alegria, encharcadas sob uma chuva que não foi pouca coisa. No refeitório da pousada Alfa e Ômega o primeiro cheiro da terra molhada fazia o proprietário, Luís Paulo Veiga, sorrir antes de continuar com calma sua conversa: “Veio a chuva, o fogo acabou, mas isso não terminou. A chuva não vai dispersar essa união”.

Veiga, um engenheiro de telecomunicações carioca que há 25 anos deixou tudo para ir viver na Chapada e se transformar em empresário, define assim o que a chuva não deveria levar: “O que aconteceu aqui é inédito. Alguns estavam com Lula e outros com Temer, há diferenças culturais, religiões diferentes... Nunca tiveram um ideal comum. Mas isso uniu todo mundo”. O relato de Veiga é amplamente compartilhado entre os moradores desta região no norte de Goiás. Diante da ameaça do desastre e das hesitações iniciais das autoridades, centenas de cidadãos reagiram sem pensar duas vezes. Grande parte do apoio logístico aos 180 membros das várias equipes envolvidas na operação chegou dos voluntários locais. Seu ativismo nas redes sociais conseguiu arrancar demonstrações de solidariedade em todo o país, de celebridades como a já habitual Gisele Bündchen às milhares de pessoas que deram doações que somaram quase meio milhão de reais. Até o ator Leonardo DiCaprio publicou no domingo uma foto do incêndio em seu Instagram.

“Nunca vi um povo tão unido como esse”. É difícil distinguir à noite o rosto do brigadista que fala, membro do Grupo Ambientalista do Torto (GAT), uma ONG que combate incêndios em todo o país. Daqui vão para o Maranhão, onde dizem, “será muito pior, porque lá os fazendeiros disparam”. O grupo do GAT, sob o comando de Rodrigo Amaral, está indo apagar um pequeno incêndio na beira da estrada entre Alto Paraíso e Vila São Jorge, a segunda cidade da Chapada. Quando chegam, não encontram mais fogo, apenas um grupo de pessoas que estão subindo em carros para ir embora, entre eles uma mulher que explica: “Somos o grupo de 35 voluntários de São Jorge. Sabemos que isso deve ser feito pelos brigadistas, que são experientes, mas vimos o fogo e algo devia ser feito antes que se espalhasse. Tomamos cuidado”. Dias antes, em Alto Paraíso, os moradores também foram apagar o primeiro fogo que estava se aproximando da cidade. Deixaram seus carros perto da estrada e um deles foi atingido pelas chamas e destruído.

Vitor Moriyama

Depois de tantos dias sem trégua, os brigadistas respondem com voz cansada.

- Quantas horas estão trabalhando?

-15

- E descansando?

- Quatro.

- Quando dormem?

- Dormir? Ha ha ha…

Os membros do GAT, do IMCBio e do Ministério do Meio Ambiente, junto com os bombeiros de Goiás e do Distrito Federal, formaram a primeira linha. Na retaguarda, as equipes logísticas criadas espontaneamente pelos moradores, 200 pessoas, por exemplo, no caso de Alto Paraíso, que durante duas semanas deixaram suas ocupações e até suas casas para trabalhar também dia e noite. Eles distribuíram comida e bebida para as equipes oficiais, ajudaram a encontrar acomodações, serviram de guia entre os labirintos da Chapada e até foram resgatá-los quando se perderam.

Vitor Moriyama

Serena Eluf estava lá naquela primeira noite que o fogo se aproximou de Alto Paraíso. “Quando avisaram sobre o incêndio, escalei todos meus amigos e corremos para lá”, lembra. Esses amigos estavam integrados há um tempo em um grupo de WhatsApp, que ela mesma criou para trocar informações sobre os incêndios frequentes na região e decidiu chamar de Rede contra Fogo. Serena, paulistana, mudou-se há dois anos para Alto Paraíso para exercer a quiropraxia. Mora em uma casa no meio da cidade, mas estes dias teve que procurar uma pousada. Sua casa está tomada por dezenas de pessoas, o exército de voluntários que ela mesma impulsionou e que, gradualmente, quase sem perceber, acabou transformando o local em seu quartel-general. “É incrível como a cidade de Alto Paraíso reagiu”, repete Serena. “Todo mundo, de todas as classes e profissões. Os supermercados doando alimentos, as pessoas dando dinheiro... Em poucos dias tínhamos reunido 30.000 reais em doações dos moradores”.

Luís Paulo Veiga também trabalhou como voluntário e acolheu em sua pousada os integrantes dos grupos de luta contra o fogo. O engenheiro e empresário já é um veterano em Alto Paraíso (7.000 habitantes registrados) e conhece bem sua história: “Quase ninguém é daqui porque a cidade tem apenas 60 anos, foi criada pela ditadura. Em pouco tempo, especialmente nos últimos cinco anos, cresceu muito. A chapada atrai pela natureza e porque é uma terra sagrada”. Considerado um lugar com magnetismo espiritual, na região da Chapada dos Veadeiros há desde o templo do guru de inspiração hinduísta Sri Prem Baba até cultos sincréticos como o chamado Vale do Amanhecer ou grupos de candomblé, Hare Krishna, budistas, espíritas... “Esotéricos de todo o planeta”, resume uma moradora. A paisagem humana é povoada de cabelos rasta, piercings e roupas de estilo hippie, pouco a ver com o que se poderia esperar em um lugar tão rural. Agora estão crescendo todos os tipos de terapias para o corpo e a mente, que funcionam como mais um atrativo turístico.

No mesmo dia que a chuva chegou e as chamas diminuíram, a Rede contra Fogo decidiu que vai continuar funcionando como grupo, mas com uma atuação mais ampla. Vai se chamar Bem-Estar. Vários de seus membros já tinham protagonizado um fenômeno inovador nas últimas eleições para a Prefeitura, elegendo um vereador com uma candidatura por fora dos partidos, o Mandato Coletivo. Luís Paulo, um dos membros, resume assim: “tentamos fazer uma política nova, porque a velha não vai resolver nada”.

Após a reação popular das últimas semanas, Luís Paulo está tão otimista que nem tem medo de que o desastre vá afetar muito seu negócio de turismo: “As pessoas não vão parar de vir. Inclusive podem vir até mais depois de tudo que se falou sobre nós”. Serena Eluf e seus companheiros esboçam ideias para investir todo o dinheiro recebido no desenvolvimento de iniciativas ambientais, prevenção de incêndios e educação. Ela também reconhece que, dentro da amargura, encontrou uma satisfação. Serena se despede com um sorriso irônico: “Eu decidi vir aqui para que o planeta não acabe”.

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