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Coluna
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A hipocrisia nossa de todo dia

Pessoas que nunca puseram os pés em um museu se arvoram ao direito de julgar obras de arte

Obra do século 17 presente na exposição proibida para menores
Obra do século 17 presente na exposição proibida para menoresReprodução
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A decisão do Masp (Museu de Arte de São Paulo) de proibir o acesso a uma exposição, pela primeira vez em sua história, de menores de 18 anos, mesmo acompanhados pelos pais ou responsáveis, abre um precedente perigosíssimo. Preocupada com a pressão de setores reacionários da sociedade, a direção do museu se antecipou e, num gesto de autocensura, sucumbiu à hipocrisia e ao cinismo. As quase 300 obras expostas contam a História da Sexualidade – e não há nada mais banalizado nos dias que correm do que a sexualidade.

No afã de gerar dinheiro, o sistema capitalista transformou o corpo em mercadoria. Somos bombardeados 24 horas por dia por propagandas que erotizam o corpo para vender os mais diversos produtos – de cerveja a automóveis, de eletrodomésticos a sexo. Segundo a revista norte-americana The Week, a indústria pornográfica movimenta em todo o mundo 97 bilhões de dólares anualmente. De cada quatro buscas na Internet, uma é de natureza sexual, 25% do total. São pornográficos 12% dos sites existentes, 35% dos downloads, 8% dos e-mails.

Para ter acesso a conteúdos pornográficos, basta possuir um computador. Segundo pesquisa da Fundação Getúlio Vargas, o Brasil conta hoje com 208 milhões de smartphones (celulares que funcionam como computadores móveis), ou seja, um por habitante. Além disso, existem 166 milhões de computadores propriamente ditos, o que significa que a cada cinco habitantes, quatro são proprietários de desktops, notebooks ou tablets. E, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas), em 2015, 58% dos domicílios tinham acesso direto à internet.

A Arte é o espaço privilegiado para provocar reflexões sobre o ser humano em sua plenitude. Acreditar que a exibição de um corpo nu ou a representação de uma cena erótica ou ainda a desconstrução da sacralidade religiosa sejam atos de incitação à pornografia, à pedofilia, à zoofilia, ou desrespeito a crenças, etc, é no mínimo atender aos ditames da ignorância mais rasa. A Arte existe como referencial, quem dá sentido a ela é o espectador. Por isso, uma mesma obra pode ser compreendida das mais diversas maneiras – cada cabeça, uma sentença.

Imaginar que os adolescentes brasileiros, com acesso livre a sites pornográficos, iriam se chocar com cenas de nudez ou de sexo mostradas em pinturas, esculturas e performances no espaço fechado de um museu é risível. Imaginar que essas mesmas representações poderiam servir como apologia à perversão sexual chega a ser um insulto à inteligência. O ativismo reacionário, longe de ser apenas uma bandeira das confissões pentecostais e neopentecostais, é hoje um estandarte carregado com orgulho pela classe média que aborta e condena o aborto; que consome drogas e lamenta a violência urbana que as drogas geram; que pratica atos ilegais no dia a dia e reclama da corrupção dos políticos.

Pessoas que nunca puseram os pés em um museu se arvoram ao direito de julgar obras de arte, não pelo que elas significam como experiência estética, mas sim por critérios morais. Ora, a moral nada sabe sobre arte. A estética, assim como a ética, pertence ao campo da filosofia, ou seja, obedece a princípios universais, e não se submete à apreciação da moral, que se assenta sobre hábitos, costumes e interesses característicos de determinado tempo e lugar. Sujeitar a arte à moral é dar um passo em direção ao totalitarismo, definido pelo escritor italiano Curzio Malaparte, como o espaço onde tudo que não é proibido, é obrigatório.

Os episódios de atentados contra a livre expressão vão se acumulando. O cancelamento da exposição Queermuseum, em Porto Alegre, pelo Santander Cultural, uma instituição privada, e a posterior interrupção das negociações para que a mostra fosse exibida no MAR (Museu de Arte do Rio), instituição pública ligada à Prefeitura do Rio, claramente constituem formas de censura de grupos que se autoproclamam guardiães da moralidade. O caso do Masp, nesse sentido, é ainda mais perturbador, pois trata-se de um ato de resignação face ao discurso da intolerância. A sociedade que permite que o julgamento moral, sabe-se lá em obediência a que interesses escusos, se sobreponha à experiência estética está destinada a uma temerária ditadura do pensamento único.

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