Perda total no Caribe após passagem do furacão Maria
Em Toa Baja, a água subiu tanto que 2.000 moradores foram resgatados de cima dos telhados
O diabo brinca com os nomes das cidades. Um dos locais mais castigados pelo furacão Maria, que abateu Porto Rico na semana passada, se chama Villa Calma. Era ali que no dia 24, domingo à tarde, Carmen Navedo continuava sentada em uma cadeira no segundo andar de sua casa. Ela havia subido na quarta-feira —quatro dias antes, cem horas mais cedo— escapando da enchente no térreo, onde a água subiu veloz, insana, mortal, e alcançou os três metros.
Como Carmen Navedo, de 65 anos, poderia ter evitado o choro se quando lhe disseram que o rio estava vindo não houve tempo para guardar nada, se ainda está fresca a cicatriz da prótese que colocou há um mês no ombro, se durante o ciclone seus tornozelos se puseram a pinicar tanto que começou a se coçar e agora estão em carne viva?
Gualesca Almézquita, sua nora, acariciava seu cabelo enquanto ela soluçava com a cabeça baixa, sentada na cadeira de plástico, um verdadeiro trono da desgraça, de onde contempla a maldição que caiu sobre sua vida e a de seus vizinhos.
Acima dela, meio telhado de zinco resiste. O resto se foi com o furacão. Ela, viúva, viu-o voar pedaço por pedaço. Estava sozinha. Sua neta tinha ido para um abrigo, mas ela não quis sair de Villa Calma —"é das que se apegou à própria casa", explica Almézquita. E como as rajadas de vento dentro da casa a jogavam no chão, se fechou no menor quarto, sentou-se no piso encolhida contra uma parede e ficou ali, diz, "em nome de Deus". Ainda não se atreve a descer.
Villa Calma é o distrito do município de Toa Baja, na região metropolitana da capital, San Juan (390.000 habitantes), que ficou mais destruído e no qual a ameaça de morte chegou a níveis mais insustentáveis. Mais de 2.000 pessoas tiveram de ser resgatadas de helicóptero dos telhados aos quais tinham subido para não se afogar. O governador Ricardo Rosselló participou do resgate. Viu aterrorizado famílias passarem crianças de telhado em telhado sob uma chuva torrencial. Em Toa Baja morreram pelo menos duas das 16 vítimas resgatadas até agora em Porto Rico diretamente por causa do furacão. Apesar de os números serem provisórios, a solidariedade entre os moradores e os alertas oficiais foram decisivos para evitar que a ilha se transformasse em necrotério.
Estamos falando do pior furacão em quase um século em Porto Rico. Em 1928 o ciclone Felipe causou 312 mortes. O atual, por sorte e prevenção, não foi tão mortal, mas carregou toda a infraestrutura de uma ilha em bancarrota financeira e com quase a metade da população na pobreza. Hoje o governo, com ajuda das agências federais dos EUA, luta para colocar novamente em funcionamento o país, que ficou, basicamente, como um carro sem gasolina, atolado no lodo.
Não há quase nada. Filas para combustível com famílias se revezando 24 horas —churrasquinho incluído em alguns casos— para conseguir comprar 20 dólares de diesel. Em geral, falta eletricidade em toda a ilha. Mais da metade da população está sem água corrente. Três quartos, sem celular. Tudo péssimo, mas um pouco menos do que no dia anterior. Por mais que a ansiedade entre a população cresça de forma alarmante, o governo se move passo a passo em um estado de exceção que inclui lei seca —proibido vender álcool, "apesar de que, se tiver em casa, claro que se pode tomar um golinho", disse um policial no rádio— e um toque de recolher generalizado, à exceção de autoridades e jornalistas.
"Os trambiqueiros estão por aí roubando e assaltando as casas", dizia esta tarde, algumas horas antes do toque de recolher, um indivíduo magro e engraçado que parecia falar com ironia de si mesmo. Rondava um posto de gasolina no qual havia uma fila de centenas de carros que há horas esperavam para comprar o que se vende no máximo a cada carro: 20 dólares de combustível.
No domingo à noite, as ruas da parte velha de San Juan eram assustadoras. Passavam patrulhas policiais e se via uma ou outra sombra furtiva desaparecer pelas esquinas. À entrada iluminada de um hotel, Samuel Cruz, um funcionário de 27 anos, lia na calçada em uma cadeira de vime O cão dos Baskerville, de Sherlock Holmes.
— Não tem internet, cara — disse.
Mas em San Juan Viejo, lindo bairro colonial, joia turística, havia, por exemplo, água corrente. As catástrofes não tratam todo mundo igualmente mal.
Em Villa Calma, José Cruz dizia que o mais urgente era que levassem água para limpar o lodo que está secando e enche o ar de um pó asfixiante. Na quarta-feira Cruz, com seus 72 anos, foi o marinheiro mais valente durante a tempestade em Villa Calma. Com seu barquinho de pesca, dedicou-se a tirar os vizinhos dos telhados baixos para levá-los a outros mais altos. Por isso Carmen Navedo e seus vizinhos do bairro pobre com nome de balneário perderam quase tudo, mas sobreviveram. Com seu jeito tranquilo, de bigode grisalho, o porto-riquenho José Cruz diz, com a experiência resignadíssima dos eternamente desvalidos: "Agora é preencher papéis do governo, né?".
Tu suscripción se está usando en otro dispositivo
¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?
Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.
FlechaTu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.
Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.
En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.
Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.