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Coluna
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Kafka, Buñuel e García Márquez na noite obscura do Congresso

Os motivos para salvar ou condenar o presidente quase nunca mencionavam se ele era inocente ou culpado

Juan Arias

Ao desligar a televisão, na quarta-feira passada, a tarde do processo contra Temer no Congresso brasileiro, tive a sensação de que as obras-primas da literatura e da arte mundial, como as dos escritores Kafka e Gabriel García Márquez e do cineasta Luis Buñuel, amigo de Lorca, não são mais surreais que o vivido ali.

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Ninguém sabia se se tratava de uma festa ou de um funeral. Alguns se debulhavam, gritando ao pronunciar seu “não” para acabar com Temer, e outros pareciam estar nas pontas dos pés, sussurrando um “sim” para salvá-lo, como se estivessem no quarto de um doente em coma ou tivessem vergonha de seu voto.

Ninguém entendia nada, como no Processo de Kafka, porque era difícil saber se se tratava de salvar um inocente ou de aniquilar um criminoso, porque todos dizia o mesmo para bendizê-lo ou maldizê-lo.

Uns queriam que Temer não fosse investigado “pelo bem do Brasil”, e outros, também por esse mesmo ânimo, preferiam que fosse. Os que queriam salvá-lo pronunciavam um “sim” seco, quase com medo de ser descobertos, e os que queriam tirá-lo bradavam como para reforçar com seus gritos uma derrota anunciada.

Os motivos para salvar ou condenar o presidente quase nunca mencionavam se ele era inocente ou culpado. Eram a economia, as reformas, a estabilidade do país ou a maldade da direita, que odeia os pobres. Temer era como um fantasma que ninguém sabia para que servia.

A noite kafkiana parecia também uma reencarnação do filme de Buñuel O Discreto Charme da Burguesia, no qual, dentro de uma sala em que se desenrola toda a trama, todos se odeiam enquanto fingem ser amigos, em que todos vão a lugar nenhum, em que se escondem atrás de religião ou da ideologia para que não apareçam seus lados podres.

Naquela noite de Temer, o surrealismo atingiu seu ápice quando um deputado sobre o qual pesam graves suspeitas de crimes cravou um “voto ‘sim’ contra a corrupção”. Disse-o com tanta convicção que quase se sufocou.

Ganha o prêmio milionário quem for capaz, depois daquela tarde de realismo mágico à García Márquez, de entender o que se passa hoje na política brasileira, da qual a tarde do Congresso foi símbolo e emblema.

Acho que o escritor colombiano poderia reescrever Cem Anos de Solidão, revisado à brasileira, porque, queira ou não, o Brasil é parte do continente do realismo mágico, no qual é difícil distinguir o que é real ou imaginário.

Caso se contasse, por exemplo, no exterior, que na tarde do processo kafkiano de Temer, os discípulos do Partido dos Trabalhadores (PT), que despojavam a gritos o presidente corrupto, provavelmente o preferem de pé até 2018, para que chegue ao fim exangue e exausto e possa ser usado eleitoralmente, ninguém acreditaria. Mas por que o PT, mestre em mover as ruas, não levou a Brasília nenhum dos seus para gritar “Fora Temer”? E o silêncio de Lula?

Por que parecem se tornar amigos de repente, mesmo que seja nas sombras dos bastidores, governo e oposição, como no processo contra Cristo, toda a velha guarda dos principais partidos, junto com o poder econômico e com os outros poderes fáticos? Parecem unidos num abraço para evitar que em 2018 possa surgir alguma novidade nas urnas que quebre o poder cristalizado da velha política desgastada e acima de tudo que possa não comungar desta anistia geral aos corruptos e não esteja disposta a terminar a Lava Jato.

Confesso que estamos diante de um novo surrealismo do processo kafkiano, no qual não se sabe onde está o culpado ou o inocente nem o que significam as palavras esquerda e direita, que mais parecem uma noz oca.

E se há algo de absurdo e de labiríntico, em que a política se envolve em si mesmo e nos obriga a apelar à pureza da arte e da literatura para desentranhá-la como um novelo embaraçado, é o divórcio entre a rua e o palácio, entre as pessoas e os políticos, como ficou evidenciado na longa, sombria e surrealista tarde do kafkiano processo contra Temer.

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