Leila Guerriero: “Não creio na objetividade jornalística e sim na subjetividade honesta”
A escritora argentina, referência do jornalismo narrativo, debate na FLIP limites da não-ficção
A jornalista e escritora argentina Leila Guerriero gosta de olhar de perto, com calma. Gosta do detalhe. Escreve sobre histórias comuns com uma profundidade e elegância inusitadas. Entrou no mundo da reportagem quase por casualidade, nos anos 90, e hoje se converteu em uma das principais referências do jornalismo narrativo latino-americano. Ela se define como uma repórter "promíscua", pois nunca quis assinar nenhum contrato de exclusividade. Tem textos em publicações mundo afora: La Nación e Rolling Stone, da Argentina, Gatopardo, do México, El Mercurio, do Chile, Etiqueta Negra, do Peru, e L’Internazionale, da Itália. Desde 2014, é colunista do EL PAÍS.
A vocação da argentina é a crônica social profunda, de temas pouco tocados pela mídia da região. Já escreveu perfis e livros de não-ficção. O primeiro deles, Os suicidas do fim do mundo, investiga o suicídio de doze jovens em um povoado da Patagônia. No Brasil, Leila lançou, há dois anos, Uma história simples (Editora Bertrand). A obra narra a saga de um argentino comum que passa anos se preparando para vencer um festival nacional de uma dança folclórica, o malambo - uma espécie de sapateado que requer um treinamento tão árduo como o de um atleta olímpico. A autora se inteirou sobre a competição quando leu uma pequena nota de um jornal. Sua curiosidade a fez viajar para o interior argentino e descobrir um festival que arrastava centenas de pessoas a um minúsculo povoado de 6.000 habitantes da província de Córdoba. O certame tinha ainda algo mais curioso: os dançarinos que se tornam campeões já não podem participar mais de competições. "Me custava muito entender porque eles marchavam tão contentes para sua própria aniquilação", conta a jornalista ao EL PAÍS por telefone. O que era para ser uma reportagem transformou-se em livro.
Nas palavras do escritor peruano Mario Vargas Llosa, os perfis biográficos que desenha Leila demonstram que o jornalismo pode ser uma arte e produzir obras de valia, sem renunciar a sua obrigação primordial, que é informar. E é exatamente sobre esses limites das obras de não-ficção e a ficção que a autora falará em uma das mesas da 15ª edição da Festa Literária de Paraty (FLIP), neste sábado, ao lado do escritor francês Patrick Deville. No Brasil, Leila também vai ministrar uma oficina sobre a construção do texto de jornalismo literário.
Pergunta. Em quais meios sobrevive a narrativa literária no jornalista em uma época de leitura rápida e bastante visual?
Resposta. Comparando o panorama das crônicas de 20 anos atrás com o de agora, se bem não há uma espécie de boom, ele é melhor em muitas coisas. Algumas revistas continuam publicando texto muitos longos, algumas editoras se abriram a edição de livros dedicados às grandes reportagens. Os jornais se esforçam para publicar textos assim nos finais de semana, ainda que tenho notado que as crônicas estão retrocedendo nas revistas dominicais. Minha percepção é que hoje há muito mais repórteres tentando fazer esse tipo de texto.
"As grandes reportagens têm outro tipo de leitor, que nunca foi um público massivo. Sempre foi um leitor mais de nicho".
P. Acredita no futuro das grandes reportagens?
R. Me dá impressão que esse é um jornalismo muito mais batalhador que não vai baixar os braços. Falamos hoje de duas crises distintas do jornalismo. Há uma questão de crise relacionada aos 140 caracteres, à rapidez, à imediatez e que o texto seja impactante em busca da audiência. Mas a outra é algo que sempre foi por outro lugar: é que as grandes reportagens têm outro tipo de leitor, que nunca foi um público massivo. Sempre foi um leitor mais de nicho. Por isso, os jornais não são o espaço para esse tipo de texto, que funcionam mais para revista. Não sei o que vai acontecer, mas não sou pessimista. Com esforço e empenho se encontram lugares para publicar coisas mais longas. Um texto extenso tampouco implica que seja bom. Além de longo, precisa ser bom.
P. Existem elementos essenciais para se escrever bem?
R. Não dou conselhos sobre isso porque é impossível. Talvez o único é que leiam, leiam muito. É a única possibilidade de ser bom nisso. Outra questão importante é se perguntar até que ponto estão dispostos a se entregar a essa vocação. E o melhor é não receber conselhos taxativos demais e rígidos. Acho que cada um precisa encontrar seu próprio método de fazer as coisas, sua própria voz. E, para isso, é necessário escutar como fazem outras pessoas e tomar algumas coisas do método delas. No entanto, é preciso transformar todas essas referências em algo pessoal. Se não estão dispostos a fazer esse trabalho, dificilmente poderão ter sua própria voz. Podem ser uma boa cópia de algo, mas não algo potente com um bom olhar.
A paixão pela escrita começou cedo na vida de Leila. Como todas as crianças ávidas por leitura, ela também gostava de escrever. Contos, poemas, peças de ficção. O jornalismo, no entanto, demorou a lhe ocorrer como uma possibilidade de profissão. Queria ser escritora. "Mas na prática como se ganha a vida um escritor?", se questionava. Em uma graduação de Letras, ou se tornaria crítica literária ou professora. Nenhum das ideias a atraia. Aos 17 anos, resolveu sair da sua cidade natal Junín, na província da Buenos Aires, rumo a capital. Como amava viajar, optou por estudar turismo. "Terminei a carreira e, claro, nunca trabalhei com isso, mas me serviu muito porque nunca teria estudado tanta cultura geral, história, geopolítica, antropologia".
Leila bateu na porta do jornalismo, no entanto, só aos 22 anos quando enviou um relato de ficção endereçado ao então editor da redação do jornal argentino Página 12, Jorge Lanata, que nunca tinha visto na vida. O conto sobre um casal de ladrões acabou sendo publicado na contracapa do diário e, seis meses, depois Lanata a convidou para trabalhar no jornal. "Me tornei jornalista em 10 minutos. O único conselho que ele me deu foi: vai lá e se defenda como der. E se alguma porta não se abrir, derrube a pontapés". Sua primeira pauta foi sobre o caos do trânsito da cidade de Buenos Aires, teve um mês para escrevê-la. Um tempo que pode ser considerado gigantesco nos tempos atuais. Desde então, a escritora esteve no caminho das reportagens longas, com mais tempo de produção. É claro que já escreveu coisas de forma apressada. Geralmente sobre morte de autores, prêmios da literatura ou quando o argentino Jorge Mario Bergoglio se tornou o Papa Francisco. "Não sei fazer o que faz um jornalista no dia a dia da notícia factual. Sou de outra escola".
"O jornalista não pode ir apenas até a realidade confirmar um preconceito ou vai produzir uma distorção do que é real".
A jornalista que começou a carreira com um conto, nunca mais sentiu necessidade de escrever literatura de ficção. Quando escolhe uma leitura, no entanto, tende a voltar ao gênero. Muito mais do que ao jornalismo. No seu panteão de autores favoritos estão: Scott Fitzgerald, John Irving, Lorrie Moore, John Steinbeck, Anne Tyler e Joseph Conrad. Também devora muita poesia, como a de Nicanor Parra. Dos autores brasileiros contemporâneos destaca Andréa del Fuego e João Paulo Cuenca. E em um patamar de inspiração maior reina Clarice Lispector.
P. Qual o limite da construção do jornalismo literário?
R. Sempre se fala da porosidade dos gêneros, mas para mim, o limite claro entre uma obra de ficção e não ficção é dado no pacto de leitura que se faz com o leitor. Se eu digo que vou contar algo que sucedeu, quero que o leitor confie que tudo que ele vai ler é matéria prima real. Caso eu coloque algo nesse relato que eu tenha inventado ou um personagem que não existe, mas serve para o texto, isso já faz parte de outro gênero que é a ficção, novela ou conto. O limite é a invenção. Meu compromisso é que o leitor saiba que tudo que estou contando é algo que eu pude comprovar que aconteceu ou que estive aí.
"As tecnologias acrescentam, mas ao mesmo tempo, distraem e alienam muito. Um dos riscos é que nos faz fechar em nós mesmos. E este é um perigo para o jornalista".
P. Na sua visão, a objetividade jornalística é cada vez mais utópica?
R. O que acredito é que é preciso ter uma subjetividade honesta. Buscar a objetividade é como ter o dom da onisciência. Ou seja, é impossível. Todos escrevemos a partir de um lugar de subjetividade, somos pessoas e produto de várias experiências. A reportagem serve para chegar a uma informação que seja a mais honesta e honrada possível. No jornalismo, nos deparamos com questões que queremos e outras horríveis que preferíamos não saber. A honestidade consiste em aplicar um olhar equilibrado e que contemple todos os pontos de vista.
"A honestidade no jornalismo consiste em aplicar um olhar equilibrado e que contemple todos os pontos de vista".
P. Vivemos no Brasil tempos de uma polarização política muito grande, o que também vem acontecendo na Argentina. Corremos mais riscos do jornalismo pecar nesse equilíbrio e se transformar em algo um pouco mais militante?
R. O jornalismo militante para mim é uma contradição de termos. A militância é um lugar de certeza e obediência. Ela está convencida de apenas uma forma de pensar e mudar o mundo. O jornalismo é todo o contrário disso. Uma coisa é uma coluna de opinião outra uma investigação, onde não há espaço para essa militância. O que acontece muito é que quando o jornalista vai até a realidade, encontra situações muito incômodas. Pode entrevistar uma pessoa que é uma pobre vítima de tal coisa, mas ao mesmo tempo é um ser humano espantoso que bate nos filhos. O que fazemos? Não contamos? O jornalista não pode ir apenas até a realidade confirmar um preconceito ou vai produzir uma distorção do que é real. Mas claramente há essa guerra de meios de comunicação que buscam ferir a imagem de alguém e não dar a informação honesta. É algo absurdo e que as pessoas percebem, elas não são tontas.
P. Qual a sua relação com as novas tecnologias para a produção jornalística?
R. Acho que são fantásticas. Sou tecnológica, mas escolho o que quero ter. Não tenho twitter, WhatsApp, nem Facebook simplesmente porque me parecem ferramentas muito invasivas e nada mais que isso. Não sou fóbica. As tecnologias acrescentam, mas ao mesmo tempo, distraem e alienam muito. Um dos riscos é que nos faz fechar em nós mesmos. E este é um perigo para o jornalista. Aquele que olha para o seu umbigo o tempo todo, que está mais preocupado sobre o tuíte engenhoso que vai escrever do que fazer seu trabalho, me preocupa. Há também um risco de uma certa desmotivação. O risco de um jornalista aburguesado, que está todo o tempo na redação, que contacta todos os entrevistados por Facebook e áudios sem olhar as pessoas nos olhos, saber onde e como vivem exatamente.
P. Quais temas precisam de mais atenção hoje na crônica literária da América Latina?
R. Hoje esse tipo de jornalismo se centra mais em temas relacionados com a marginalidade e o conflito. Já a saúde, a educação, a música, a ciência e o esporte são relatados mais em matéria do dia a dia. Falta meter mais pulso jornalístico nessas questões, inclusive também nas historias da classe alta.
P. Ter uma coluna periodicamente é desafiador? De onde parte suas inspirações? Algumas são autobiográficas?
R. Quando me fizeram a propostas de escrever a coluna para o EL PAÍS, achei que o fato de buscarem uma cronista latino-americana tinha que ter algum sentido. Percebi que contar histórias do nosso continente e da nossa região neste lugar era importante. Muitas delas são autobiográficas, salvo as que chamo de Instruções, que são como postais de seres humanos em crises diversas. E na verdade eu gosto muito desse formato hiperpequeno, característico das minhas colunas. São como micro ensaios que precisam estar blindados, sem cabos soltos. É um dizer muito potente e condensado. Tem algo de perfume muito impregnante. É uma escritura muito chamativa que obviamente não funciona por todas as partes. A coluna está sempre aí, quase gritando.
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