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Cada segundo que passei com minhas três filhas na Disneyland foi um calvário

A aventura em primeira pessoa de um pai no parque de Paris, que completa 25 anos: uma satisfação para as crianças, e um suplício para os adultos

Imagem da Disneyland Paris, que este ano completa seu 25o aniversário.
Imagem da Disneyland Paris, que este ano completa seu 25o aniversário.Getty

A Disneyland, digamos logo de cara, é pensada para os adultos. É concebida para que mães e pais sofram, em uma espécie de suplício orquestrado e consentido. A agonia começa quando você pega o cartão de crédito para pagar a viagem e continua com a intragável comida do parque e as eternas filas em suas atrações. Não poderia ser melhor projetado: o que nós adultos buscamos nesta experiência é ter o pior momento possível, testar o limite da nossa capacidade de resistência, de modo que esse sacrifício se torne uma prova irrefutável (ante nós mesmos) de quanto amamos nossos filhos. Daí a ausência de gestos de aborrecimento entre aqueles que fazem fila sob uma placa que diz: “Tempo de espera: 90 minutos”. Quanto maior o tempo de espera, maior o êxtase.

“Trata-se de testar o limite da nossa capacidade de resistência, de modo que esse sacrifício se torne uma prova irrefutável de quanto amamos nossos filhos. ‘Tempo de espera: 90 minutos’. Quanto maior o tempo de espera, maior o êxtase”
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Esse “ato de abnegação inspirado pela veemência do amor” – uma das definições da Real Academia Espanhola para a palavra “sacrifício” – começa meses antes, quando nós pais começamos a contemplar a ideia de dedicar o 13o ou parte de nossas economias não para irmos mergulhar em Bali ou ver musicais em Nova York, o que seria o que nos apetece, mas sim visitar os domínios de Mickey Mouse. No meu caso foi em fevereiro, quando minha mulher trouxe os folhetos. E quando os folhetos da Disneyland entram em um lar, não há réplica possível. Quem tem coragem de se opor a semelhante ato de amor?

Há várias maneiras de ir para a Disneyland Paris, inaugurada na primavera de 1992 (portanto, cumprindo agora 25 anos). Umas são mais baratas do que as outras. A agente de viagens na Espanha pretendia nos vender um pacote que incluía as entradas para cinco pessoas (temos três filhas pequenas), quatro noites de hotel e os voos, por 2.400 euros (cerca de 8.900 reais). Mas em termos comerciais, “pacote” nem sempre significa “mais barato”. Descobrimos que comprando as passagens por conta própria economizaríamos 300 euros. Assim, pagamos 1.421 euros pelas entradas e o hotel e 721,59 euros pelos bilhetes de avião, ida e volta. Sobre as refeições, e apesar de alguns amigos nos recomendarem reservá-las com antecedência, duvidamos que fosse algo tão complicado de improvisar e não compramos nada antes (e não, não era).

Hospedar-se em um dos estabelecimentos do parque é a única maneira de aproveitar ao máximo o tempo de tortura, que é o que se quer. Estão localizados ao redor de um lago na entrada do lugar e também aqui uns são mais baratos que outros. Os hotéis mais perto da bilheteria do parque são disputados a tapa, não se sabe bem por quê. Optamos pelo Newport Bay Club, de ambientação náutica: de qualidade média, recém-reformado e, por coincidência, o mais distante da entrada principal (a uns 15 minutos a pé). Com tudo preparado, partimos.

O autor da reportagem, enlouquecido com o jogo do Buzz Lightyear.
O autor da reportagem, enlouquecido com o jogo do Buzz Lightyear.

Dia 1: a surpresa da primeira incursão no parque

Se o sofrimento no parque já é enorme por si só, nós contamos com dois infortúnios de brinde. Número 1: as males que não chegaram a Paris. Nunca me esquecerei da cara esperançosa das minhas três filhas diante da nova experiência de ver a bagagem saindo na esteira, e sua decepção ao ver que aparecem todas menos a nossa. Número 2: quando visitamos o parque, uma inusitada onda de calor castiga o norte da França. A relação entre “1” e “2” tem consequências traumáticas, tendo em conta que a quantidade de suor que soltamos é incompatível com usar as mesmas meias durante quatro dias, que foi o tempo que demorou para chegar a bagagem dos adultos (a das meninas chegou na primeira noite).

Felicidade máxima! Irritado pelo incidente das malas, na minha primeira incursão ao parque aproveito veladamente para inspecionar possíveis lojas de roupas. E há muitas delas: merchandising de Mickey que não acaba mais. Camisetas, cuecas... tudo, claro, com o desenho dos personagens. Não encontro meias. A opção de dedicar uma manhã (12% do tempo de permanência) para ir a Paris não para ver a Torre Eiffel mas para comprar meias não parece do agrado de minhas filhas, de modo que passarei os próximos dias comprando cuecas e camisetas infames e usando meias à noite.

Dia 2: horas e horas de pé, em uma fila que não anda

Não demoro para me desencantar com o fast pass (“passe rápido”). Esse sistema permite “marcar hora” nas atrações colocando a entrada em uns aparelhos específicos. A máquina emite um papelzinho com o horário alocado e, chegado o momento, você pode entrar com ele na atração sem fazer fila. Às vezes você consegue um horário quatro horas mais tarde, e é aconselhável usar o tempo fazendo fila em outras atrações.

Minha favorita é A Rajada Laser de Buzz Lightyear. Consiste em acumular pontos disparando com uma pistola laser a diferentes alvos a bordo de um cochecito giratório; uma inteligente iniciativa dos responsáveis pelo parque para que os adultos descarreguem sua ira

Uma altíssima porcentagem do tempo que você passa na Disneyland é de pé em uma fila que mal anda. Isso, claro, não inspira as crianças a fazer o mesmo: elas correm, saltam, brigam... Pelo menos minhas filhas. Tudo que, unido ao calor, acaba sendo desesperador. E quando falo da frustração gerada pelo fast pass é porque só sete atrações do parque (e três do adjacente Disney Studios Park) dispõem do sistema, de modo que sua vantagem é bastante limitada. Além disso, quando você tem um horário marcado para uma atração não pode pedir para outra. Com margens tão amplas você só faz uso do passe mágico duas ou três vezes no mesmo dia.

Por sorte, minha atração favorita é beneficiada pelo fast pass: A Explosão Laser de Buzz Lightyear. Consiste em acumular pontos disparando uma pistola laser contra diferentes alvos a bordo de um carrinho giratório; uma inteligente iniciativa dos responsáveis pelo parque para que os adultos despejem sua ira. Nas fotos que tiram de surpresa durante o percurso, e que são vendidas na saída, os rostos são enlouquecidos.

O pior de fazer fila durante uma hora seguida (além da dor articular e do desgaste psicológico) é logo comprovar que a atração... dura dois minutos! Isso ocorre, por exemplo, com o Voo de Peter Pan e As Viagens de Pinóquio. O sorriso estúpido com que as pessoas saem da atração é impossível de dissimular. Mas você deve estar perguntando: não basta só um dia para ver o parque? Não, e a culpa é das filas.

Parece uma cena de ‘Onde está Wally?’, mas é a lotada realidade que se vive em um dia de verão no parque temático.
Parece uma cena de ‘Onde está Wally?’, mas é a lotada realidade que se vive em um dia de verão no parque temático.

Na fim da tarde, minha mulher nos apressa a achar um lugar para assistir o espetáculo de som e luz. O plano é sentar no chão da rotatória principal e esperar. “A que horas começa?”, pergunto, sempre desinformado. “Às 21h30”. Olho o relógio: são 19h30. Sério que vamos passar duas horas sentados no chão esperando? Não dá outra: mal sobram lugares livres. Sentar no chão é a coisa mais incômoda do mundo. Depois de meia hora, você já não sabe que postura adotar, se cai de vez ou se fica de pé. O espetáculo é bonito, mas em vez de luzes coloridas projetadas sobre o castelo da Bela Adormecida, o que eu vejo é a confortável cama do hotel.

Dia 3: “Eu sou seu pai”

Faço um banquete de abnegação paterna na Academia de Treinamento Jedi. Esta é a manhã em que compreendo como funciona isso do sofrimento e da felicidade. Sei que minha filha mais velha ficaria contentíssima em disputar um duelo com Darth Vader. Por isso, sem nenhuma sombra de arrependimento, ela e eu nos unimos a uma fila de final incerto, pois é longa, a princípio não anda e desemboca em uma porta fechada. Passamos 90 minutos ali, tempo em que a fila serpenteia lentamente circundando o terraço de uma cafeteria. Espantosamente, ninguém tem a ideia de pegar uma cadeira e esperar sentado. Também é verdade que não detecto nenhum espanhol. Sabemos que para participar do espetáculo é preciso ter pelo menos 7 anos; minha filha ainda não tem, mas digo a ela: ‘Se te perguntarem, diga que tem 7’. Levando a malandragem espanhola para onde vamos.

“Alguns pais extremamente competitivos armaram seus rebentos com cadernos para que os personagens coloquem ali seus autógrafos. É o cúmulo do absurdo: cobiçar a assinatura de um empregado do parque”

O que nos espera do outro lado da porta é um átrio onde uma moça faz um teste com as crianças. O menino à nossa frente se rebela diante da perspectiva de lutar contra Darth Vader e se manifesta com uma irritação febril. A mãe está atordoada, sem dúvida pensando no tempo que passou na fila em vão. Ignorando as súplicas do pequeno, a mãe insiste, até que o menino, esgotado, cede. Quando chega a nossa vez, a moça pergunta a minha filha quantos anos ela tem (“Sete”; bravo!) e pede que levante o braço direito. Ela levanta o esquerdo, o que faz com que um calafrio percorra meu corpo. Quando se pede outra vez, ela acerta e as coisas andam. Nos dão um horário para de tarde, quando ocorrerá a exibição dos Jedis contra o pérfido Vader.

De tarde, nova fila no mesmo lugar, ainda que mais curta (em cada passe há um número limitado de crianças). Desta vez, do outro lado da porta nos dão um uniforme de Jedi, um sabre de laser e um cursinho acelerado, em inglês e em francês, sobre como usá-la. Primeiro devem girar o sabre para a direita (por isso a pergunta do teste), depois para a esquerda, e por fim agachar. Uma vez no palco, o ator que encarna Darth Vader faz os movimentos contrários, e o resultado é uma coreografia primorosa.

Dia 4: Aparições estelares

As três filhas do autor da reportagem pedindo a atenção de Alice.
As três filhas do autor da reportagem pedindo a atenção de Alice.

Outro chamariz do parque, além das atrações, é a presença furtiva de personagens da Disney aqui e acolá. Aparecem de repente e, para cumprimentá-los, também é preciso pegar fila. Temos má sorte, porque só vimos a Alice (a do País das Maravilhas) e a Malévola. Esta última vimos de longe, porque ela não tem pena, ao ver três meninas cheias de sonhos, claramente irmãs (podendo recebê-las em uma só tacada) e, quando está prestes a nos tocar, vai embora. Lógico: é má. Peter Pan e Wendy passam ao nosso lado e, apesar de corrermos atrás deles, não param. E olha que somos rápidos na hora de cumprimentar: uma foto já é o suficiente. Alguns pais extremamente competitivos armaram sua prole com cadernos para que os personagens os autografassem. Nada mais absurdo: desejar a assinatura de um funcionário do parque. Outra peculiaridade da fábrica para nos fazer esperar, esperar, esperar...

Devemos falar sobre a gastronomia do parque, claro

Gastronomicamente, o parque é um enorme monumento ao fast-food. Em estabelecimentos com nomes mais ou menos desestimuladores, como Restaurant Hakuna Matata ou The Lucky Nugget Saloon, as filas são estranhamente curtas em comparação com as atrações. Talvez o sofrimento exija não comer ou talvez tenha se espalhado a informação de que os menus deixam muito a desejar. Devido ao calor, o consumo de água durante todo o dia é delirante: acho que gastamos mais de 100 euros (cerca de 370 reais) nessas garrafinhas vendidas por três euros (3,70 reais).

“Alguns pais extremamente competitivos armaram seus rebentos com cadernos para que os personagens coloquem ali seus autógrafos. É o cúmulo do absurdo: cobiçar a assinatura de um empregado do parque”

Dia 5: finalmente, me sinto uma pessoa

Na manhã do quinto dia, aproveitamos para encenar uma necessária despedida do parque. O último contato com as filas e com a cansativa melodia emitida sem pausa nos alto-falantes, de temática tirolesa, desperta o desejo de estar preso em uma rodovia congestionada.

Minha conclusão: é possível se divertir na Disneyland? As crianças, com certeza sim, ainda que, como o termômetro deles de prazer não é influenciado por condições externas, observei um grau de felicidade não muito inferior nas atrações das festas do meu bairro. Ficam esgotados, garantindo uma boa noite de sono aos progenitores (também esgotados). Quanto a estes, que o parque esteja idealizado para eles responde a um raciocínio matemático: como a maioria das famílias é formada pelo casal com um ou dois filhos, há tantos ou mais adultos do que crianças no parque.

Quem precisar de um programa de imersão total dedicado exclusivamente aos seus filhos 24 horas, por cinco dias consecutivos (algo impensável no resto do ano), certamente vai encontrar o que está procurando. No meu caso, o melhor momento foi quando pude relaxar na morna piscina do hotel. Senti que era uma... pessoa.

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