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Flip 2017 | Festa Literária Internacional de Paraty
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

A vez da literatura produzida por negros e pobres

A escritora Carolina Maria de Jesus se tornou leitura obrigatória dos vestibulares da Unicamp e da UFRGS. Enquanto a Flip vai homenagear Lima Barreto

A escritora Carolina Maria de Jesus
A escritora Carolina Maria de JesusAgência Brasil

Em 2013, liderava a equipe de professores de Língua Portuguesa de um grande colégio paulistano, e decidimos adotar o livro Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, como leitura obrigatória. Trata-se, como diz o subtítulo, do diário de uma favelada, em que a autora relata o dia a dia cruel em meio à miséria na periferia de São Paulo.

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Poucas vezes vi tamanha reação a uma leitura escolar. Pais nos acusavam de muitas coisas. Uma delas: promover a ignorância em relação à norma gramatical, aludindo ao texto da autora que pouco frequentou a escola. A outra (a meu ver, a pior): o que o relato de vida de “uma favelada” acrescentaria à formação cultural de seus filhos?

Escapava àquelas pessoas, no entanto, o fato de que desvios formais não impediam a autora de criar imagens, estabelecer analogias, refletir sobre o cotidiano e, acima de tudo, narrar com enorme sensibilidade e inteligência seu cotidiano de mulher pobre, que certa vez recorreu ao lixo para dar um par de sapatos a sua filha.

Para muitos (não só os pais daquele colégio), Carolina não fez literatura, apenas escreveu diários, cujo tom confessional prejudicaria o caráter “literário” do texto. Como se diários, sermões, discursos políticos e outros tantos gêneros não recebessem, ao longo do tempo, a chancela de literatura.

O problema com Carolina era – e é – outro: é o lugar de onde ela fala. Das periferias, das favelas, dos lixões. De lá, emergiu uma voz que não se calou nem cedeu lugar à interposição dos mais letrados.

Agora, em 2017, Carolina Maria de Jesus é leitura obrigatória para os exames vestibulares da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Se serve como legitimação, antes tarde do que nunca: mulher, negra, pobre, favelada, catadora de lixo e escritora. Das maiores do Brasil.

Neste mesmo 2017, a Festa Literária de Paraty (Flip) terá como homenageado principal Lima Barreto. A programação do evento, recentemente divulgada, conta ainda com muitos escritores negros, brasileiros e estrangeiros.

A escolha da curadoria da Flip faz justiça ao escritor carioca de origem humilde e vida tão madrasta quanto curta. Anterior à festa da Semana de 1922, não foi incluído no rol dos modernos e, nos livros didáticos dedicados à literatura, fica num limbo estético, confinado à ambígua categoria de “pré” alguma coisa.

Para além da simbologia social que envolve o escritor negro e pobre, vítima do alcoolismo, recusado pela Academia Brasileira de Letras e enjeitado por certas altas rodas intelectuais de seu tempo, deve se ressaltar o período em que viveu e que tão bem retratou (e criticou): a República nascente, hoje paradoxalmente chamada de “Velha”, mas que à época era nova.

O Brasil desse tempo era o país da alternância de poder entre as classes dirigentes paulistas e mineiras. Era o país da higienização dos cortiços cariocas, do massacre de Canudos, da Guerra do Contestado, do grito sufocado de populações marginalizadas tratadas como ameaça de sublevação social e retrocesso histórico.

Certamente Lima Barreto acompanhou os debates raciais que mobilizaram a intelectualidade brasileira à época, dividida entre os derrotistas (a mistura racial vai degenerar nosso povo) e os otimistas (a mistura fará prevalecer a raça branca, afinal a mais forte, e teremos um grande futuro). Como terá sido para alguém como ele ter de conviver com tais discursos, que na época contavam com a prestigiosa chancela da ciência?

Tanto os vestibulares como a Flip não poderiam ter feito escolhas mais significativas diante de nosso atual momento histórico. Não apenas pelo prestígio, ou mesmo pelo resgate, de autores negros de origem modesta. Mas pelo testemunho de suas obras frente às hipocrisias, injustiças e contradições do Brasil.

José Ruy Lozano é sociólogo, autor de livros didáticos, conselheiro do Cipi (Conselho Independente de Proteção à Infância) e coordenador pedagógico geral da Rede Alix - Colégio Nossa Senhora do Morumbi.

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