União Europeia reconhece problemas da globalização e propõe regras
Diante de tendências nacionalistas, como o Brexit, bloco quer "colocar rédeas" no livre comércio
A nova cara do capitalismo tem três traços fundamentais: globalização, hiperfinanceirzação e desigualdade. A Comissão Europeia, braço executivo da União Europeia, publica nesta quarta-feira um documento em que defende os benefícios da globalização diante das tendências nacional-populistas, do Brexit e das tentações protecionistas de Trump. A novidade é que Bruxelas tem consciência de que os excessos dos últimos anos devem ser corrigidos: defende “dar forma” à globalização, colocar-lhe rédeas, fixando “um conjunto de regras globais, que atualmente estão incompletas”. Reverter esse processo seria um desastre, aponta a Comissão, mas não fazer nada tampouco é a solução: em 10 anos, a globalização (combinada com a mudança tecnológica) “deixará tantos ganhadores quanto perdedores”.
A Comissão Europeia há semanas lança sinais políticos de primeira grandeza depois de uma década em crise, coroada pela primeira deserção em seis décadas, a do Reino Unido. Na comemoração de seu 60º aniversário, publicou um suculento dossiê que servirá de base para que os 27 Estados membros restantes decidam que UE desejam. Há 15 dias, lançou um relatório sobre a Europa social, diante da constatação de que a UE está perdendo o apoio da opinião pública por causa da deterioração do Estado do bem-estar. Nesta quarta, foi a vez da globalização entrar na berlinda. Diante de tendências nacionalistas, como o Brexit e as tentações protecionistas de Donald Trump nos EUA, a Europa confirma um "segredo de polichinelo": é um continente favorável ao livre comércio e à globalização, ainda mais depois de ter barrado a xenofobia de Wilders, Le Pen e companhia. Mas o documento propõe uma mudança de ritmo interessante: frente às críticas cada vez mais duras contra o viés neoliberal da UE, Bruxelas pretende “dar forma” à globalização, com “regras multilaterais” que permitam conter os excessos dos últimos anos.
O relatório não contém medidas concretas de grande calado; a novidade é o seu enfoque. Bruxelas admite, talvez pela primeira vez, que a globalização alcançou e ultrapassou suas últimas fronteiras. E que a partir daí há duas opções: estender ordenadamente o domínio sobre ela, com um conjunto de regras fixadas nos organismos internacionais para suavizar seus aspectos mais temerários e nocivos, ou deixar aberta a possibilidade de que a reação chegue de forma descontrolada. A Comissão é partidária da primeira opção, na esteira do triunfo de Emmanuel Macron na França, fazendo frente à ascensão de figuras políticas controvertidas, de Donald Trump – que deixou claras as suas preferências protecionistas, com uma retórica de confrontação contra o México, a China e a Alemanha – até Marine Le Pen, que conseguiu mais de 11 milhões de votos com sua proposta de fechar fronteiras.
“Os fatos demonstram que a economia, as empresas e os cidadãos europeus continuam se beneficiando enormemente da globalização”, resume o documento ao qual o EL PAÍS teve acesso. “Mas esses benefícios não são automáticos nem se distribuem equitativamente entre nossos cidadãos”, admite o relatório, de 21 páginas.
O item benefícios é vastíssimo, com 1,75 trilhão de euros (seis trilhões de reais) em exportações europeias – sendo 80% procedentes de pequenas e médias empresas – e a geração de 14.000 empregos a cada bilhão de euros adicional em vendas ao exterior. As importações contribuem para reduzir os preços aos consumidores, e a globalização, enfim, “permitiu tirar milhões de pessoas da pobreza”. Mas o mais suculento é o capítulo de desafios, que explica em parte fenômenos como o Brexit e a ascensão dos radicais dentro e fora da Europa. “Muitos europeus estão inquietos: veem a globalização como sinônimo de perda de empregos, injustiças sociais ou baixos padrões ambientais, sanitários ou de privacidade. Consideram que esse processo erodiu tradições e identidades” e “beneficia mais as multinacionais que repatriam lucros a países onde não pagam impostos” ou “países que abraçam práticas comerciais injustas”. Por isso se impõe, segundo o documento, “a percepção de que os Governos já não têm a globalização sob controle, ou não são capazes de controlar o impacto da globalização; esse é um desafio político que a Europa deve enfrentar”.
A receita de Bruxelas é clara: rejeitar “as tentações isolacionistas”. Resistir “à volta ao protecionismo”, embora a Organização Mundial do Comércio tenha identificado 1.500 novas barreiras comerciais desde que começou a Grande Recessão, em 2008. “Se fecharmos fronteiras, outros fecharão também: todos sairemos perdendo”, diz a Comissão, valendo-se do habitual credo liberaloide. Entretanto, as receitas de Bruxelas são claras: “Para evitar essa espiral, são imprescindíveis as instituições multilaterais e regras em assuntos como a mudança climática e a evasão tributária. “Estamos longe de ter completado as regras globais necessárias”, afirma a Comissão, que ainda deixa uma frase de efeito final. “A Europa não será ingênua. Quando as regras não forem respeitadas, necessitaremos de instrumentos de defesa comercial”, como os que foram aplicados contra o aço da China. “A UE é a maior potência comercial e investidora do mundo, mas, longe de ficarmos sentados e deixarmos que a globalização dê forma ao nosso destino, temos a oportunidade de modelar a globalização de acordo com nossos valores e interesses”, conclui o documento.
A globalização reduz a desigualdade?
O relatório de Bruxelas tem dois pais: o conservador Jyrki Katainen e o social-liberal Frans Timmermans, ambos vice-presidentes da Comissão Europeia. E essa dupla autoria se nota no capítulo sobre a desigualdade, um dos debates-estrela da literatura econômica recente. Frente a textos seminais como os de Thomas Piketty e Branko Milanovic (“Desaparecerá a desigualdade se a globalização continuar? Não”) e às advertências de Barack Obama, que apontava a desigualdade como um indicador preditivo de potenciais conflitos sociopolíticos, Bruxelas mal se detém nesse aspecto. Oscila entre a negação (“os países mais abertos apresentam menores índices de desigualdade”) e a complacência (“a desigualdade na Europa é inferior à de outras partes do mundo, embora o 1% mais rico controle 27% da riqueza”).
Frente a Bruxelas, Tony Judt: "A desigualdade é corrosiva: corrompe as sociedades por dentro". "É um poderoso dissolvente para a sociedade, a economia e a democracia", segundo o imprescindível La nueva piel del capitalismo, de A. Costas e Xosé Carlos Arias.
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