A máquina que me converteu em um garoto da Cidade de Deus
Por 15 minutos, graças à tecnologia da realidade virtual, ele experimentou ter meu corpo e minha pele e eu os dele. Os dois choramos
Luiz Claudio do Nascimento tem 18 anos e mora na Cidade de Deus, em uma região miserável da favela carioca onde há crianças que não sabem o que é um chinelo e cuja única refeição é na escola. Muitos dos tiroteios que aterrorizam a comunidade acontecem na porta da casa dele. Um encontro entre Luiz Claudio e eu seria muito improvável no Rio de Janeiro de mais de seis milhões de habitantes e com o abismo da desigualdade que nos separa. Mas aconteceu. E por cerca de 15 minutos, graças a uma máquina, ele experimentou ter meu corpo e minha pele e eu, os dele. Os dois choramos com o choque.
“Você trocaria de corpo comigo?”, disparei a Luiz Claudio no domingo, na própria Cidade de Deus, em uma tenda da Festa Literária Internacional das Periferias (Flupp), durante a quinta edição do evento sempre celebrada nas zonas mais pobres do Rio. Tímido, ele aceitou com os olhos e afirmou com a cabeça. Tirei meu casaco e os tênis com o intuito de deixar minha pele o mais exposta possível. Ele tirou seu moletom com capuz e os chinelos.
Sentados, então, um frente ao outro, separados por uma cortina azul, colocaram nos nossos olhos uns óculos de realidade virtual. É parte da tecnologia que integra “a máquina de ser outro”, como foi batizado um projeto desenvolvido em Barcelona que mistura realidade imersiva, estímulos sensoriais e telepresença e que é capaz de levar um paraplégico a se sentir como um dançarino ou a uma europeia branca como eu a se conectar profundamente com um adolescente negro de uma favela carioca. Nossos ouvidos foram isolados com fones, começou a tocar uma música relaxante, o peito apertou.
Prestes a ver pelos olhos do outro, a única indicação era imitar lentamente nossos movimentos e tocar nosso corpo, sempre devagar. Deixei que ele me guiasse. Luiz Claudio começou a olhar as mãos e via as minhas, com as unhas pintadas de vermelho, enquanto eu observava as suas, macias, de cor de azeviche. Em seguida virou as palmas e voltou a se chocar ao não encontrar as linhas marcadas das suas. Virou de novo e tocou o esmalte, acariciou seus dedos (os meus) de cima para baixo, como se tentasse se acostumar ao novo tamanho.
Passaram vários minutos enquanto acompanhávamos nossos gestos. Ele esticava os braços, colocava as mãos nos joelhos e, finalmente, se abraçou. Ou me abraçou. Eu já não tinha certeza. Eu chorava, confusa e emocionada. Ele também.
Passamos a mexer com nossos pés. Ele tocava seu dedão enquanto via o meu, também pintado de vermelho. Brincamos mexendo rápido os dedos. Um dos garotos, também da comunidade e que acompanhava o experimento, se aproximou e colocou suas mãos na minha frente para eu tocá-las e sentir, assim, que tocava Luiz Claudio. Um outro fez mesma coisa com ele. Depois, simultaneamente, passaram um pincel nos nossos pés e meu pé negro se arrepiou. Eu podia intuir as cicatrizes no meu novo tornozelo, o dele.
Com certa vertigem, os dois levantamos. Tiraram a cortina que nos separava e nos olhamos ainda com os óculos. Na minha frente eu me via a mim mesma e me toquei com minhas mãos negras. Ele se via no lugar onde estava aquela branca que pediu para ele trocar de corpo. Juntamos e acariciamos nossas mãos durante o que me pareceu uma brecha no tempo. A música parou e tiramos nossos óculos, nos olhando fixamente. As lágrimas corriam pelas nossas bochechas. Parecia que já nos conhecíamos de muito tempo e nos fundimos em um abraço.
Luiz Claudio começou a olhar as mãos e via as minhas, com as unhas pintadas de vermelho, enquanto eu observava as suas, macias, de cor de azeviche
Fora da tenda, Luiz Claudio me contou como ficou chocado ao se ver mulher e branco. “O que te chocou mais?”, perguntei. “Ser branco”, me respondeu sem duvidar. Indaguei sobre o racismo na favela e sua relação com a polícia e ele disse que não tem medo dela, mas que cresceu marcado demais pela cor da sua pele. “Todos nós temos esse risco de ser baleados pela polícia só porque somos negros. Eles acham que não podemos ter a mesma autoridade de vocês que são brancos. Quando era criança já quis ser branco, porque sofria muito bullying, mas hoje não mais. Meu pai me ensinou a nunca abaixar a cabeça”, continua.
Luiz Claudio sofreu tudo o que eu nem imaginei e não há realidade virtual que consiga recriar. Perdeu familiares e amigos vítimas do tráfico, passou fome, deixou de estudar aos 12 anos para cuidar do seu irmão caçula de modo que sua mãe pudesse trabalhar e quase a perde nas mãos de bandidos que a tomaram como refém em uma operação policial. Chora como um menino quando fala da sua infância e conta que quer voltar a estudar. Adora matemática. “Meu sonho era ser jogador de futebol, mas não tínhamos como pagar a escolinha”, lamenta anos depois de ter abandonado a bola. “Eu passei muita coisa. Fico muito triste pensando no que já vivi.”
Sua presença silenciosa, assim como sua história cheia de lágrimas, chamou a atenção de vários na última jornada da Flupp. Alfonso Cherene, missionário brasileiro residente na Espanha e um dos integrantes do time do experimento da máquina "de ser outro", fez questão de apresentar o rapaz a alguns dos líderes da sua comunidade, envolvidos em causas sociais, que estavam no local. “Ele precisa de referências, poder seguir alguém. É um garoto bom”, dizia.
As referências não apareciam, mas Cherene, longe de desistir, ficou meia hora dando voltas entre o público, até que achou o educador social Sergio Leal, conhecido como Dj TR, um homem grande que chora contando o que vê na favela. “Outro dia, o dia do tiroteio, levei minha filha na escola e estava fechada. Na porta havia dois irmãos que eram da região de onde você é”, disse o Dj a Luiz Claudio. “A professora não entendia como os moleques tinham saído de casa no meio do tiroteio e estava preocupada sobre como eles iriam voltar – mas os meninos, não. O menor dos irmãos olhou para o mais velho e lhe disse: ‘Mais um dia sem comer’. Minha filha ficou muito triste e não tínhamos nem dinheiro, nem merenda para dar para eles. Eu não consegui fazer nada!”, relatou o Dj, às lágrimas. “Eu já passei por isso. Dói”, disse Luiz Claudio.
Ciente de que entre a fome e uma arma pode haver uma fresta, o Dj animou Luiz Claudio com a possibilidade de encontrar um emprego para ele durante o Natal, de aprender capoeira e entrar num programa de jovem aprendiz... “O Estado sempre nos fala dos jovens armados”, dizia o Dj, “mas nunca mostra o que eles passam e sofrem antes de chegar até lá”. O emprego e as aulas seriam uma troca: o garoto teria de voltar a estudar. Luiz Claudio, com os olhos brilhantes, assentia e agradecia, embora não saiba nem onde recuperar seu histórico escolar.
Pouco depois, me despedi de Luiz Claudio com um abraço apertado, antes de que a realidade voltasse a nos separar.
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