“A poesia faz com que as pessoas se sintam excluídas”
O autor norte-americano, que goza dos favores da crítica e do público, reflete em seu último ensaio sobre o ódio que os poemas provocam
Ben Lerner (Topeka, Kansas, 1979) irrompeu na cena literária norte-americana com um romance de inesperado frescor e agilidade: Estação Atocha, de 2011 [publicado no Brasil em 2015 pela Rádio Londres]. Traduzido em muitas línguas, além de ser um grande sucesso de crítica, teve vendas excelentes e foi saudado por seus colegas de ofício, especialmente os narradores mais jovens, como uma contribuição que dava nova energia ao gênero romanesco. Estação Atocha abriu caminho de maneira espontânea, e embora o que o mundo saudou tenha sido o surgimento de um narrador diferente... na realidade só se tratava da cristalização de um trabalho que só está ao alcance de um poeta.
É o que Ben Lerner continua se considerando desde que começou. O resto é uma derivação da paixão obsessiva que desperta nele quando se refere à poesia. Para dar um exemplo: o título original desse primeiro romance [Leaving Atocha Station, Saindo da Estação Atocha] foi tirado de um verso de John Ashbery, um dos grandes poetas norte-americanos do nosso tempo, pelo qual Lerner nutre profunda admiração. O mistério, a estranheza, a magia, o frescor inexplicável, a alegria primordial que transmite a obra de poetas como Ashbery estão na base da maneira de romancear de Lerner, que também é um agudo ensaísta. Seu segundo romance, o delicado e elusivo 10:04 (2014), protagonizado, como o anterior, por um poeta, confirmou o talento do autor. Em maio, Lerner publicou um livrinho de pequenas dimensões cujo objeto é elucidar o papel da poesia no conjunto da cultura, só que o faz a partir de uma premissa insólita: a poesia desperta nas pessoas um sentimento de rancor. O título do ensaio, Hatred of poetry (Ódio à poesia), não deixa nenhuma dúvida a esse respeito.
Pergunta. Você não acha que o termo “ódio” é um pouco exagerado? Você realmente acredita que as pessoas odeiam poesia?
Resposta. Eu faço isso com a intenção de provocar. Muitas pessoas são totalmente indiferentes à poesia. O que acontece é que, considerando o lugar marginal que a poesia ocupa na cultura é chocante que provoque uma rejeição tão veemente em tanta gente, muito maior do que outras manifestações artísticas, como a música experimental.
P. A que atribui isso?
R. A poesia faz com que as pessoas se sintam excluídas; elas a percebem como uma espécie de ameaça, daí que a reação seja tão intensa e esteja tão marcada pela ansiedade. No sentido que for, sempre tende a despertar emoções extremas.
P. A poesia é uma forma primordial de expressão na história dos povos e civilizações, desde a Índia até a Grécia. Ela surgiu mesmo antes do advento da escrita. O que isso diz sobre o poder que ela tem?
R. Embora haja alguma verdade nisso, a caracterização que você acaba de fazer tem muito de ficção. Nós nos sentimos confortáveis idealizando o passado, evocando uma idade de ouro, quando todos os objetos tinham valor e presença poética, depois da qual veio a queda. Acredito que o ódio à poesia, a decepção que causa sempre o contato real com o objeto que chamamos poema, se deve a que por trás há um sentimento que designa uma fuga trágica. A poesia é algo que ainda continua vivo entre nós de muitas maneiras, mas se distanciou dos humanos, está muito longe de ser o que era antes.
P. Há muita gente que se sente profundamente comovida pela poesia. Você mesmo conta em seu livro que há muito tempo dirigiu uma revista de poesia e recebia cartas de presidiários ou de doentes em estado terminal implorando que publicasse seus poemas, que queriam fazer chegar ao mundo desesperadamente antes de morrer.
R. Eis aí algo verdadeiramente revelador, porque é má poesia, algo que eu presto atenção em meu livro, no qual não exploro só o que aceitamos como grande poesia. Há uma associação profunda entre a poesia, a afirmação do eu e a necessidade de reconhecimento.
P. O que nos traz a poesia? O que há nela que nenhuma outra forma de expressão artística consegue nos dar?
R. A poesia é o espaço em que a língua está submetida à mais alta pressão que pode ser concebida, mais do que qualquer outro meio de expressão verbal. Em um poema tudo está carregado de significado. Posso reivindicar quase qualquer coisa como poesia. Quando se convida a que algo seja aceito como poema, se posiciona uma composição particular, do tipo que for, contra um fundo cultural muito complexo. A Poesia, com maiúscula, se situa contra o espectro de uma série muito profunda de sentimentos: amor, esperança, decepção, raiva, exigência de individualidade e universalidade. Materialmente, seu traço constitutivo como forma artística pode ser características como a linha de corte que é o verso, a estrutura fônica, os paralelismos, o modo de invocar o silêncio, uma série de pautas pré-conceituais que realçam a experiência linguística alcançando efeitos como produzir imagens que correspondem a uma música impossível. A poesia consegue coisas como que o que não pode ser dito esteja presente.
P. Você diria, como Harold Bloom, que é uma forma de conhecimento?
R. A poesia não é um objeto estável o suficiente para fazer tais afirmações. Eu gosto mais da ideia de Robert Kaufman, segundo a qual o valor da poesia consiste em estender a linguagem além de seu uso comum, abrindo a possibilidade de novas experiências.
P. Em uma época em que cada vez se lê menos e a literatura é uma espécie ameaçada, a poesia não seria o gênero mais afetado?
R. Ao contrário, a poesia tem mais possibilidades de sobreviver do que outras práticas literárias graças às editoras independentes e às pequenas publicações. Sua dependência do mercado é muito menor. Há formas muito novas de poesia que estão fora dos circuitos e dos canais comerciais de distribuição normais. Além disso, há casos muito interessantes de pessoas que se autopublicam e alcançam grande sucesso, como o livro de haicais [de Tyler Knott Gregson, autor de Chasers of the Light: Poems from the Typewriter Series], que vendeu 120.000 exemplares, ou Citizen, de Claudia Rankin, que vendeu mais do que os meus romances. O interessante disso tudo é que, mesmo que não saibamos defini-la, a poesia é algo que nunca desaparece do nosso horizonte vital, sempre está perto das nossas áreas de maior poder criativo. Se pensarmos no hip-hop como poesia –e há todos os tipos de razões para fazê-lo–, então não há razão para lamentar sua falta de poder comercial.
P. Em seu livro você dá muita atenção a Whitman, o grande poeta da democracia norte-americana. Você pode falar sobre a sua relevância em relação ao cenário delirante da atual campanha eleitoral do seu país?
R. Whitman pode ser embaraçoso, às vezes de maneira jocosa, mas também em um sentido muito profundo. Seus esforços para ser a Voz da América podem chegar a ser ridículos, ou provocar vergonha alheia, como quando pretende falar ao mesmo tempo em nome do senhor e do escravo, ou quando celebra os esforços dos trabalhadores enquanto canta deitado embaixo de uma árvore. Mas, sobre o momento de loucura que este país vive hoje, é curioso que a influência de Whitman na retórica dos políticos norte-americanos é imensa. Por trás da retórica assassina dos discursos dos políticos brancos na linha de Trump, se ouve a voz de Whitman. A oratória política é em boa medida responsável pela bancarrota política sofrida por este país, e nisto a prática linguística de Whitman desempenha um papel. Quando recita os nomes dos diferentes estados da União, o faz como se corressem o risco de ser expulsos do federalismo da sua sintaxe. Whitman é uma figura potencialmente radical, mas quando os políticos se apoderam dela acabam pervertendo-a. A grandeza de Whitman reside em sua capacidade de encarnar todas as contradições do corpo político e social, mas apenas potencialmente. Na hora da verdade, tanto Trump quanto Clinton oferecem uma versão degradada de sua retórica.
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