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“Tomara que extingam todos os paraísos fiscais”

Depois da polêmica dos ‘Panama Papers’, o cineasta Pedro Almodóvar reaparece em Paris.

Álex Vicente
Almodóvar, em Madri
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O cinema projeta uma sequência de A Lei do Desejo, aquela em que Carmen Maura relata a um amnésico Eusebio Poncela os segredos de sua truculenta história familiar. Sentado perto da tela, Pedro Almodóvar a observa de um ângulo que deforma levemente a imagem. Lembra-se do cinema de sua cidade durante a infância na Mancha: um grande muro na praça central que também servia de pista de baile. “Nós, crianças, nos sentávamos nos dois extremos do muro para urinar e, ao mesmo tempo, observávamos essa tela deformada. Dava a sensação de que o cinema é muito maior que a si mesmo. Eu me sentia parte de um mundo enorme que te abraça”, explicou para um público dedicado, enorme. Almodóvar reapareceu na noite de sexta-feira pela primeira vez para protagonizar uma masterclass de inauguração de um ciclo de projeções que lhe prestará tributo durante todo este mês em Les Fauvettes, nova sala dedicada ao cinema clássico e às cópias restauradas em Paris. Culminará com a estreia parisiense de Julieta, logo depois de sua apresentação no Festival de Cannes, que começa na quarta-feira e onde competirá pela quinta vez pela Palma de Ouro.

O evento da noite de sexta-feira também foi seu primeiro ato público depois da polêmica que protagonizou em abril, quando seu nome e o de seu irmão Agustín apareceram citados nos chamados 'Panama Papers', como responsáveis por uma empresa registrada nas Ilhas Virgens britânicas entre 1991 e 1994. Antes de entrar no palco, aceitou responder às perguntas deste jornal. “Tem sido duro”, reconheceu Almodóvar. “Foi um choque porque não sabia nada de nada, me impressionou muito aparecer em uma lista e em um contexto que me parecem horrorosos. Por minhas convicções, sou absolutamente contra [os paraísos fiscais]”, explicou. “Apesar da minha inconsciência, e embora não haja uma ação legal, posto que não estamos falando de um crime, existe sim um aspecto moral que me sobressalta. Tomará que cancelem, anulem e extingam todos os paraísos fiscais que existem no mundo, embora eu não saiba se estão fazendo muito para conseguir isso.”

"Por minhas convicções, sou absolutamente contra [os paraísos fiscais]. Não houve crime, mas sim um aspecto moral que me sobressalta"

Apesar de não ter havido delito, entende que há quem se sinta decepcionado, considerando suas posições políticas nos últimos anos? Almodóvar fica alguns segundos em dúvida. “Não sei se as pessoas se sentiram decepcionadas ou não. Eu saio à rua todos os dias. Teria ficado muito preocupado se detectasse um só olhar de hostilidade, mas não houve nenhum. Bem, mas se os órgãos da mídia me julgaram? Suponho que sim. E com uma enorme superioridade moral, acredito”, afirmou. Não está convencido: em plena polêmica, evitou ligar a televisão. Mas, pelo pouco que viu, considera que o tratamento da mídia foi “puro sensacionalismo e mercantilização da informação”. “É hora de os próprios meios debaterem sua natureza. O tema está aí: a independência da mídia. É um debate muito vivo, embora eu não saiba se os órgãos da mídia o enfrentarão”, argumentou.

Almodóvar também se expressou sobre a difícil acolhida de Julieta na bilheteria espanhola e a possível repercussão dessa polêmica no caminho comercial do filme. “As críticas têm sido muito boas, mas existe outra realidade: o filme não funcionou na bilheteria. A acolhida do público foi pior do que para o restante de meus filmes. Eu me pergunto se é pela mudança de gênero, tratando-se de um drama muito austero e de meu filme mais contido, me pergunto se para alguns espectadores isso os deixou de lado”, admitiu o diretor. “E depois há a influência de ter um monte de órgãos da mídia contra você no momento em que nasce o filme. Não se pode calcular e não me atreveria a fazê-lo, mas deve ter um efeito”, acrescentou.

Apesar de tudo, Almodóvar não teme por seu filme: “Só está há um mês em cartaz. Ainda lhe sobra muita vida pela frente. Os filmes nos sobrevivem: a você, a mim e a Cannes. Julieta vai ser mais velha que todos nós”. Em relação à sua passagem pelo festival, negou estar obcecado pela Palma de Ouro, o último grande reconhecimento internacional que resiste a ele. “Esse é outro tópico midiático, embora seja verdade que me resiste, porque não a tenho”, admitiu. “Vou a Cannes esperando que tenha uma boa acolhida, que represente um bom batismo internacional para Julieta. Se ganhar um prêmio, será muito bem-vindo. Mas, por uma questão de saúde, do mesmo modo que não vi os telejornais durante aquela semana, vou a esse festival consciente de que não haverá nenhum prêmio”, afirmou. “É o mais salutar. Tudo o mais se torna frustrante demais. Essa atitude funciona para mim, me protege da frustração porque já tenho experiência em festivais: Tudo sobre Minha Mãe era o filme favorito de sua edição, e não levou a Palma”, Mais tarde, durante sua masterclass, incorreu em uma mensagem parecida: “Se me sentisse um clássico, não iria à competição em Cannes. Participar dela demonstra que, no que diz respeito a mim mesmo, não me converti em uma vaca sagrada”.

"Não sei se as pessoas se decepcionaram. Eu saio à rua todos os dias e ninguém me olha com hostilidade"

Diz que seu momento favorito no festival é um instante marcado por esse silêncio que estava no título original de Julieta. “Descobrir o filme em uma sala com 2.000 pessoas dá uma informação valiosíssima sobre o destino de qualquer filme. Não são os aplausos finais, mas como a audiência respira durante o filme. Mais que ganhar qualquer prêmio, meu sonho é sentar-me nessa sala e viver, segundos antes do começar do filme, esse pequeno instante em que tudo continua sendo possível. Esse continua sendo o momento mais emocionante”, concluiu.

De volta ao palco, Almodóvar também avaliou como mudou desde os tempos de A Lei do Desejo. “Em meados dos anos oitenta, meu principal desejo era foder”, ironizou. “Agora não tanto, embora não tenha me aposentado nesse aspecto ainda, mas a passagem do tempo fez com que seja menos essencial do que há trinta anos”. Também ponderou sua evolução como cineasta. “Embora continue sendo eu mesmo, existe uma diferença de tom muito forte. Naquela época, meus dramas estavam cheios de humor e de exuberância. Com Julieta, meu desafio consistiu em desprender-me desses elementos”, reconheceu. “Na realidade, se o cineasta que era em 1986 tivesse visto este filme, teria se sentido muito satisfeito por ter conseguido evoluir e mudar”.

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