A guerra que os curdos vencem
A minoria marginalizada pelo regime tirou proveito do caos da guerra civil
Antes da guerra civil, Idris Nassan era um modesto professor de inglês em uma prosaica cidade curda do norte da Síria. Militava em um partido político curdo clandestino, mas nem em seus melhores sonhos teria imaginado que os curdos, reprimidos e marginalizados pelo Governo de Bachar al Assad, poderiam se tornar atores de tamanha importância. “Nós, que apostamos na democracia e no laicismo, não lutamos por substituir um regime dominado pelos alauitas por outro dominado pelos sunitas, mas por mudar a mentalidade dominante. E a comunidade internacional depende de nós na batalha contra o extremismo religioso e para levar a democracia para a região”, afirma Nassan, hoje vice-ministro do Exterior do cantão de Kobane.
As organizações curdas se uniram à revolta em seus primeiros momentos, com protestos em Kobane, Amuda, Qamishli e outras localidades da Síria setentrional. Sua lista de ofensas ao regime de El Assad era muito superior inclusive à do restante dos sírios: 300.000 curdos-sírios estavam privados do direito à cidadania, o que era um obstáculo para qualquer gestão pública e toda organização que reivindicasse os direitos dos curdos era reprimida com dureza. O jornalista Juan Akkash foi detido em 2006 por dirigir uma publicação pró-curda e libertado, depois de cinco anos de prisão e torturas, em junho de 2011, em uma tentativa do Governo de aplacar os protestos. “Antes, todos os partidos curdos precisavam andar na clandestinidade porque havia muita perseguição. Só em 2009, o regime deteve mais de 3.000 pessoas vinculadas ao PYD (Partido da União Democrática)”, explica Akkash por telefone.
As tentativas de incluir as formações curdas no grosso da oposição deram em nada precocemente, pois o Conselho Nacional Sírio, dominado por organizações árabes sunitas não estava interessado em assumir as demandas de autonomia dos curdos.“Quando se tornou patente que a revolta se transformava em um enfrentamento sectário entre sunitas e xiitas alauitas, abandonamos a oposição”, afirma Nassan. “Além disso, a oposição vê o PYD com suspeita, porque o considera um colaborador do regime”, aponta Lina Khatib, professora da Universidade de Londres.
No início da guerra, a oposição se sentia poderosa e respaldada internacionalmente, enquanto os curdos estavam divididos em mais de 30 facções, e por isso careciam de força, algo que mudaria com a retirada do Exército sírio das zonas do norte da Síria para se concentrar em defender lugares mais estratégicos.
Isso permitiu que os curdos assumissem o controle destes territórios, nos quais declararam seus cantões autônomos e organizaram uma democracia de cunho assembleísta, apesar de fortemente controlada pelo PYD, nacionalista de ideologia marxista.
O especialista turco no Oriente Médio Oytun Orhan explica que o PYD dedicou os primeiros anos da revolução a reforçar seu controle sobre as áreas curdas graças às milícias YPG (Unidades de Proteção Popular), da qual muitos membros tinham sido treinados pelo grupo armado curdo-turco PKK. “Depois de eliminar pela força outras organizações curdas rivais, o PYD foi capaz de unificar o movimento curdo e se transformou em uma força importante, definindo sua estratégia como uma terceira via: nem com o regime nem com a oposição”, afirma Orhan: “Desde então, seguiram uma política de alianças muito pragmática, lutando ao lado da oposição em regiões como Afrin e Alepo, e junto ao regime em outras como Hasaka ou Qamishli”.
O que verdadeiramente transformou os curdos em um ator de caráter internacional da Síria foi exatamente a ameaça do Estado Islâmico (ISIS), especialmente devido à histórica resistência dos curdos na invasão de Kobane (setembro 2014-janeiro 2015), na qual homens e mulheres, combatendo lado a lado, conseguiram expulsar as hostes jihadistas. Os EUA se fixou neles como uma força capaz de derrotar o ISIS e até a Rússia começou a cortejar o PYD.
Graças à cobertura aérea, os curdos arrebataram do ISIS importantes extensões de território e se situaram a apenas 35 quilômetros de Raqa, a capital síria do califado. Suas vitórias fizeram com que antigas unidades que combatiam nas fileiras da oposição se unissem aos curdos, forjando a coalização Forças Democráticas Sírias (SDF), nas quais estão presentes grupos árabes, turcomanos e cristãos. No entanto, Khatib considera improvável que os curdos tentem tomar o bastião do ISIS na Síria: “Os curdos parecem pouco interessados em liberar zonas nas quais não sejam maioria. Raqa é uma cidade árabe e não seriam bem recebidos, porque a oposição percebe as SDF como uma simples tentativa dos EUA de dar uma imagem mais plural à frente curda”.
Mais provável é, segundo Orhan, que os curdos avancem a oeste do rio Eufrates para tentar unificar suas possessões do noroeste da Síria com o cantão de Afrin (noroeste), obtendo assim um “corredor curdo” ao longo da fronteira com a Turquia, um país que vê com horror a expansão curda. “Os EUA não estão muito contentes com os avanços curdos nesta região, porque em Afrin eles ganharam terreno de grupos da oposição apoiados por eles e porque não querem comprometer sua aliança com Ancara”, afirma o especialista: “Mas a Rússia, como forma de punir a Turquia, é que poderia apoiar os curdos nesta região”.
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