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A Billie Holiday carioca que quer cantar em português

Dedicada ao jazz, Leila Maria vive os obstáculos de uma negra que não canta samba

María Martín
A cantora Leila Maria
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O último disco da cantora carioca Leila Maria Costa Pinto (Rio de Janeiro,1956) ficou preso no inventário do seu mecenas por quase dois anos e, mesmo assim, tornou-se em 2014 o melhor álbum em língua estrangeira do país. Após ouvi-la em 2005, o empresário Pedro Lazera, proprietário de uma rede de farmácias no Norte e no Nordeste, encantou-se com aquela voz incapaz de cantar em linha reta e empenhou-se durante anos a financiar um disco dela. O resultado foi Leila Maria canta Billy Holiday in Rio, que conta com a participação de 40 músicos e para o qual Leila Maria abrasileira em um inglês impecável as músicas da cantora mais reconhecida do jazz. Lazera morreu da noite para o dia antes das 5.000 cópias do disco chegarem às farmácias onde ele pretendia vendê-las, mas um dos exemplares, que Leila Maria ganhou de presente, foi parar nas mãos de José Maurício Machline, idealizador do Prêmio da Música Brasileira, que sigilosamente o inscreveu no festival e ganhou.

O disco chegou, por fim, às lojas – e não às farmácias – em dezembro do ano passado, mas a cantora não vive dos direitos autorais. Leila Maria mal paga suas contas fazendo shows para um público restrito de amantes do jazz, um gênero para poucos num país onde o samba movimenta multidões. Toda terça-feira, no bar do hotel Novo Mundo, no bairro do Flamengo, na Zona Sul do Rio, ela sobe ao palco e alaga tudo com seu torrente musical. O público não costuma acreditar que tem aquela presença negra, linda e forte, sem sequer pagar couvert.

Lazera não foi o primeiro a se encantar com aquele timbre incomum. A carreira de Leila Maria, de alguma maneira construiu-se graças a produtores, músicos ou aficionados que ficavam enfeitiçados ao ouvi-la por acaso. “Eu nunca tinha me dado conta de que o melhor que eu sabia fazer era cantar. Eu percebi que minha voz era especial por causa dos outros. Eu ia nas festas e me pediam para desligar o som para que eu cantasse. Demorei anos em reparar, até que um produtor me viu e achou que poderia me produzir um disco. Mas isso só foi em 1997!!”. Assim surgiram seus outros três CDs: Da Cabeça aos Pés (1997), Off Key (2005), produzido por José Milton com clássicos da bossa nova, e Cançoes de Amor de Iguais (2007), um tributo à diversidade sexual.

Até ver seu rosto na capa de um CD percorreu uma longa estrada. Subiu a um palco pela primeira vez em 1979, aos 23 anos. Ela adorou, trancou a faculdade de jornalismo e achou que “tudo era uma beleza” e que a música resolveria sua vida. Criada em Madureira, a terra do samba, ela nem cantava o ritmo mais famoso do Brasil nem rebolava, o que ainda se espera de uma cantora negra no país. Apostou pelo jazz, a bossa-nova e MPB. Teve certo sucesso. “Canto jazz para combater o preconceito. Para a mulher negra brasileira há uma gaveta específica só: a do samba”, afirma.

Carta de um leitor ao 'Jornal do Brasil' em 1980.
Carta de um leitor ao 'Jornal do Brasil' em 1980.

Na década de 80, os jornais anunciavam seus shows e falavam daquela promessa negra, mas um visionário leitor escreveu na edição de 17 de setembro de 1980 do Jornal do Brasil o que, de alguma maneira, acabou acontecendo com a carreira de Leila Maria: “Enfim uma nova voz na música brasileira [...] nova pelo inusitado timbre que ela emite: um timbre negro jazzístico, afinado e belíssimo [...] Que não aconteça com ela o que costuma ocorrer com outras excepcionais cantoras negras que, por opção, e sensibilidade, não quiserem para si o apelido de cantoras de samba. E porque se permitiram cantar qualquer emoção independentemente de ritmo e moda, viram seu talento relegado a segundo plano. [...] Que o artista negro no Brasil (se não for um negro de exceção como Milton Nascimento) não seja obrigado a ficar no seu lugar, ou a pular feito um macaco para ver aceito seu trabalho. Que não embranqueçam Leila Maria.”

Leila Maria, a “ovelha mais negra da família” como ela mesma se descreve aos risos, nunca embranqueceu e seu incipiente sucesso desinflou-se. Às maravilhosas críticas, somaram-se outras que não terminavam de entender seu estilo. Em 1983, após um espetáculo com a violinista Rosana Valença, uma crítica musical, também no Jornal de Brasil, a acusava de tentar, “com muito esforço”, fazer “uma espécie de soul exótico”.

Crítica musical do show de Leila Maria no Jornal do Brasil. Ela é comparada ao Rio Negro, enquanto Rosinha de Valença seria o rio Solimões. "Não dá pororoca, mas são incompatíveis".
Crítica musical do show de Leila Maria no Jornal do Brasil. Ela é comparada ao Rio Negro, enquanto Rosinha de Valença seria o rio Solimões. "Não dá pororoca, mas são incompatíveis".

Após Off Key, em 2005, Leila Maria relata que começou a sentir certa resistência no meio artístico. “O trabalho ficou ótimo. Eu fui alçada a outro nível pela própria crítica e também pelo público. Mas a coisa não ia adiante! Não me chamavam para fazer shows”, conta no livro Artistas dissonantes, história (oral) das cantoras negras. “Era como se alguma coisa não encaixasse ou não soubessem onde me colocar. Foi aí que comecei a cantar bola para a questão do racismo”.

A questão racial não era uma coisa nova na sua vida. Criada em uma família de classe média, sustentada pelo pai, um oficial da Marinha, eles tinham uma empregada doméstica branca. A vizinhança do subúrbio, em plena década dos 70, ficou muito tempo acreditando que tanto Leila Maria, como sua mãe e irmãos eram os quais trabalhavam para a empregada, e não ao contrário. “Meu pai sempre me dizia que eu tinha que fazer o dobro, que eu tinha que ser a melhor em tudo. Porque além de ser mulher eu era negra”, lembra.

“Um dia me deparei com uma entrevista do Nelson Motta. Ele dizia que a música popular brasileira era racista e sexista, e citava inclusive meu nome. Dizia que podiam existir homens negros sofisticados, como Milton Nascimento, mas que as mulheres negras só cantavam samba, funk e soul. Como exceção falou de mim”, relata a cantora no livro.

Leila Maria prefere não enfiar o dedo na ferida, vai que as pessoas, “que sequer assumem o preconceito geral, ainda menos na música”, não entendam, e achem que alegar racismo seja uma desculpa para justificar por que ela não chegou mais longe. Mas a ferida ainda sangra. Ela ficou presa no gênero que a diferenciou. “O jazz não é um beco sem saída, mas para ser reconhecida eu teria que sair do Brasil. Eu quero me abrir, eu também quero cantar na minha língua, eu quero poder chegar a mais gente do meu país. A música do Brasil é uma das mais ricas e criativas do mundo”.

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