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Incêndios nos museus: máfia e burocracia destroem a cultura em São Paulo

Incêndios mostram que há falhas fatais envolvendo público e patrimônio cultural no país

Museu da Língua Portuguesa em 21 de dezembro de 2015.
Museu da Língua Portuguesa em 21 de dezembro de 2015.Corpo de Bombeiros de SP
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Neste fevereiro, a Cinemateca Brasileira, dona de um dos maiores acervos fílmicos da América Latina, sofreu um incêndio em um de seus quatro depósitos de material, que consumiu cerca de 1.000 rolos de filme. Pouco antes, em dezembro, o Museu da Língua Portuguesa, um dos mais visitados do país, foi consumido pelo fogo, que abalou as estruturas de um emblemático edifício paulistano, o Estação da Luz, e levou à morte o brigadista que cuidava do local. A Justiça atualmente investiga os dois episódios.

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Em 2013, já tinha sido a vez do Memorial da América Latina, cujo principal auditório, o Simón Bolívar, ardeu em chamas por razões até hoje inconclusivas, levando consigo uma obra da artista plástica Tomie Ohtake. Em 2008, o Teatro Cultura Artística terminou destruído por um incêndio de causas que também permanecem desconhecidas, do qual se salvou apenas o maior afresco existente do pintor modernista Di Cavalcanti.

O que acontece na cidade mais cosmopolita do país? Pelo que afirmam os especialistas ouvidos pelo EL PAÍS, o que há por trás desses casos é uma alta dose de burocracia nos órgãos públicos, uma dose ainda maior de falta de rigor nos procedimentos de segurança e até mesmo a existência de uma máfia conformada por empresas que se especializam em maquiar espaços para a vistoria dos bombeiros.

O galpão da Cinemateca, que pegou fogo em 3 de fevereiro.
O galpão da Cinemateca, que pegou fogo em 3 de fevereiro.Reprodução Globo

O caso da Cinemateca é bastante recente e também particular, por envolver a preservação de filmes feitos de nitrato (material autocombustível em determinadas condições de calor, umidade e decomposição), mas o assunto entrou em voga desde que o Museu da Língua Portuguesa passou na TV em imagens chocantes – daquelas que interrompem a programação com a manchete dos telejornais. Foi um incêndio de enormes proporções, que poderia ter resultado em uma tragédia ainda maior do que a que foi registrada em uma segunda-feira, poucos dias antes do Natal, quando o museu estava fechado ao público e passava por rotinas de manutenção.

Pelo que foi especulado, uma faísca produzida na troca de uma lâmpada gerou o incêndio, que começou em redes de algodão e de material sintético de uma exposição temporária. Em poucos minutos, o fogo se alastrou pelos três andares do prédio e só pôde ser controlado por via área, quando o teto desabou. Uma funcionária não identificada relatou à Folha de S. Paulo que houve uma falha em um hidrante que o bombeiro Ronaldo Pereira da Cruz tentou utilizar para controlar o fogo. Ronaldo, de 39 anos, morreu após inalar fumaça. Hoje um projeto de lei propõe que o espaço seja rebatizado com seu nome.

“O risco faz parte da vida, por isso é obrigatório ter seguro”, afirma Renata Motta, coordenadora de museus da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo – sob a qual funcionam 18 museus paulistas, incluindo o Museu da Língua e o Memorial. “Precisamos investir mais na segurança do patrimônio cultural. Mas somos um país em desenvolvimento e com recursos públicos finitos. Vale a pena triplicar os custos e ter apenas parte das mostras temporárias programadas? Pode ser. Essas escolhas devem ser feitas de forma madura pelos gestores”, diz Motta.

De espaços que abrigam patrimônio cultural e são abertos ao público, a legislação brasileira exige um Auto de Vistoria do Corpo de Bombeiros (o famosos AVCB) e um alvará de funcionamento emitido pela Prefeitura. Várias instruções técnicas (ITs) devem ser atendidas para que esses documentos sejam concedidos. Elas dão conta da chamada segurança ativa (ao exigir sistemas de detecção e de combate a incêndio, como alarmes, hidrantes, extintores e a presença de brigadistas) e da segurança passiva (uso de materiais de revestimento e acabamento que retardam a propagação das chamas, portas corta-fogo etc). Para que esses espaços possam abrir as portas, os bombeiros precisam aprovar um projeto prévio e, depois de terminada (ou adaptada) a construção, fazer uma vistoria que confirme que as normas foram seguidas. Com isso, a prefeitura emite o alvará. Das instituições citadas nesta matéria, todas passavam por esse processo e tinham seus pedidos protocolados, mas nenhuma chegou a concluí-lo em 100%.

Um dos grandes problemas é que toda essa documentação exigida – com validade de um ano quando envolve público – demora meses, às vezes anos, para sair. A burocracia vira um inimigo a ser combatido pelo próprio Estado, ainda mais quando o edifício é tombado – caso do Teatro Cultura Artística, do Memorial da América Latina e do Museu da Língua Portuguesa. João Batista de Andrade, presidente do Memorial, lamenta as idas e vindas da papelada. “É absurdo”, opina. O cineasta, à frente da instituição desde 2012, ressalta que ela tem 26 anos de vida, e seu projeto – de autoria de Oscar Niemeyer – respeita normas de outra época, menos rígidas.

Mais segurança sem tiros no pé

C.M.

Nadia Somekh, diretora do Departamento do Patrimônio Histórico (DPH) da Prefeitura de São Paulo, diz que a solução contra incêndios é prevenir. Sobre a falta de agilidade na obtenção da documentação de segurança, ela cita um escritório que reúne profissionais das três instâncias patrimoniais (nacional, estatual e municipal), criado no fim de 2014 para facilitar a aprovação dos edifícios tombados.

Na ponta do combate, outra solução em vista é o poder de polícia atribuído recentemente ao Corpo de Bombeiros. Em janeiro, o governador Geraldo Alckmin sancionou a lei que permite que os bombeiros apliquem sanções e multas a quem não cumprir regras –mudança que entra em vigor em julho. O capitão Marcos Palumbo, que faz parte do Corpo de Bombeiros desde 1999 e foi um dos oficiais que inalou fumaça durante o combate ao incêndio do Memorial, vê a medida com bons olhos, "porque todos estarão mais atentos".

Já o ex-bombeiro Carlos Cotta define a iniciativa como “um grande tiro no pé”. “O efetivo da corporação não aumenta desde 1989, e isso é muito preocupante. Os bombeiros não vão conseguir responder operacionalmente”, diz. O consultor calcula que todo o efetivo atual do Estado de São Paulo representa o número de bombeiros necessário apenas para defender a capital. “Na minha opinião, melhoria de prazos e atendimentos é prioritária”.

Até mesmo o investimento em antídotos aos ácidos que entram na circulação sanguínea sempre que alguém inala a fumaça tóxica – como aconteceu com o capitão Palumbo – merecem mais atenção na visão de Cotta. Ele relata que os brigadistas levados ao hospital após a operação do Memorial só foram salvos porque receberam a medicação adequada – que a FIFA, de olho na realização da Copa do Mundo de 2014, exigiu do país. "Pode ser que esses antídotos não estejam mais disponíveis hoje", ele lamenta.

Carlos Cotta é ex-bombeiro e consultor nas áreas de Engenharia Civil e de Segurança do Trabalho. Entrou no Corpo de Bombeiros em 1989 e lá passou metade da vida profissional, trabalhando com vistoria técnica, elaboração de normas e cursos para profissionais. São suas muitas instruções técnicas vigentes até hoje. Para Cotta, o cenário é desalentador. “As normas nacionais de combate a incêndio são dos anos 70, 80. As mais avançadas do país são as de São Paulo, que são copiadas nos demais estados, às vezes na íntegra”, revela. Além disso, “tem empresa do ramo que se especializou em enganar a vistoria dos bombeiros, só para conseguir o AVCB, gente que se proclama especialista em segurança sem ter as horas necessárias de treinamento e que sabe maquiar item por item para que o alvará seja concedido”. “É uma máfia”, conclui.

Em São Paulo, é raro que um centro cultural não exiba seu AVCB na porta. Nos visitados pela reportagem, como o Museu Afro Brasil e o Centro Cultural Banco do Brasil, os documentos estão disponíveis e são facilmente identificáveis itens exigidos pelo Corpo de Bombeiros, como extintores, saídas de emergência e até brigadistas. Mas o risco de incêndio mitigado com essas medidas é novamente levantado pela falta de proteção passiva, sobretudo nas mostras temporárias. O Museu Afro, o maior de seu gênero no país, tem um acervo repleto de obras frágeis nesse sentido e uma mostra inteira – Arte, adorno, design e tecnologia no tempo da escravidão – em que muita madeira foi utilizada ao redor dos utensílios expostos. O diretor Emanuel Araújo afirma ter “as principais exigências atendidas”, mesmo sem o alvará definitivo, e garante tomar precauções “no limite do possível”.

“A madeira é um material frequente nesses espaços. Por ser altamente combustível, ela precisaria ser protegida com um retardante de chamas, que aumenta o prazo que os bombeiros têm para chegar ao local e combater o fogo”, explica Rogério Lin, diretor da CKC, empresa brasileira que tem 18 anos na área de proteção passiva. “Mas esse material não é exigido por lei no caso das exposições temporárias”. Segundo ele, o custo adicional à montagem dessas mostras não deveria ser um fator crucial de impedimento: “Hoje esses produtos são produzidos nacionalmente e um m² custa 7 reais, o que representa um custo de 700 reais por 100 m² de exposição”.

A indústria nacional de segurança contra incêndios – para a qual a tragédia da boate Kiss, em Santa Maria (RS), foi um divisor de águas – está preparada, opina Rogério Lin, para atender a atual realidade desses espaços públicos. Mas nem tudo o que reluz na área é ouro. Vladson Athayde, especialista em certificação de produtos contra incêndio da UL Brasil, chama a atenção para sprinklers (chuveiros automático) não certificados, que são ruins ou até pirateados. Na América Latina, segundo ele, o Brasil é um dos países que carecem de leis mais rígidas e de controles de qualidade em produtos de detecção e supressão de fogo. “Argentina e Chile têm recomendações mais severas”, afirma.

Oito anos se passaram desde o episódio do Teatro de Cultura Artística, e ainda assim a investigação sobre as causas do incêndio não é conclusiva. Uma fonte do EL PAÍS era frequentadora assídua o espaço e afirma que era comum escutar falar das gambiarras elétricas que provavelmente causaram o incêndio. Muitos pensam que a pesada carga elétrica seja uma causa recorrente de incêndio no caso dos centros culturais, com seus vários equipamentos eletro-eletrônicos. A suspeita recai também sobre os incêndios do Memorial e do Museu da Língua Portuguesa, mas não se sabe ao certo. “Faltam estatísticas e relatórios de qualidade que nos permitam avaliar casos anteriores com segurança”, alerta Carlos Cotta. De concreto, para ele, o que há é apenas um grito permanente de socorro.

TEATRO CULTURA ARTÍSTICA

Agosto de 2008.


Não houve vítimas.


Causas indefinidas.


Suspeita-se de curto-circuito na rede elétrica.


Edifício tombado. Administrado pela Sociedade de Cultura Artística.


A reconstrução do edifício do teatro está em fase de projeto.


Ainda não há previsão de reabertura.

MEMORIAL DA AMÉRICA LATINA

Novembro de 2013.


Nove bombeiros feridos.


Causas indefinidas.


Suspeita-se de curto-circuito na rede elétrica.


Edifício tombado. Administrado pela Fundação Memorial, ligada à Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo.


Obras estruturais próximas a serem concluídas.


Previsão de reabertura: 2017.

MUSEU DA LÍNGUA PORTUGUESA

Dezembro de 2015.


Um bombeiro morto.


Investigação em processo.


Suspeita: faísca na troca de uma lâmpada.


Edifício tombado. Administrado pela IDBrasil Cultura, ligada à Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo.


Convênio para reconstrução já assinado.


Previsão de reabertura até 2018.

CINEMATECA

Fevereiro de 2016.


Não houve vítimas, mas perda de acervo.


Investigação em processo.


Autocombustão dos filmes, feitos de nitrato.


A Cinemateca á tombada, o galpão atingido, não. Instituição ligada ao Ministério de Cultura.


Projeto de reconstrução do depósito atingido em avaliação.


Ainda não há previsão de normalização do galpão.

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