Rio de Janeiro, a origem do samba como gênero musical brasileiro
O samba carioca começou a ser forjado na Pedra do Sal, no centro do Rio Gênero musical conheceu uma revolução definitiva no final da década de 20
É uma segunda-feira qualquer. Mas no Morro da Conceição, no centro da cidade do Rio de Janeiro e próximo de sua zona portuária, toda segunda é igual. No final da tarde, cerca das cinco horas, os moradores desta região começam a montar suas barracas nos arredores de uma pequena praça e, entre um cigarro e outro, a encher os isopores de gelo e cerveja. As caixas de som são ligadas enquanto, pouco a pouco, os espectadores vão chegando e se sentando. Os assentos são uma enorme rocha, mas não uma rocha qualquer: é a Pedra do Sal, tradicional ponto de encontro de sambistas e admiradores deste estilo musical há centenas de anos. Quando passa das sete horas e anoitece, o pequeno Largo João da Baiana, no final da rua Argemiro Bulcão, está completamente tomando por uma multidão que se espreme em volta de sete músicos, nas escadarias na beira do morro e na própria pedra. Começa então a roda de samba no berço do samba carioca:
"Liberdade!, Liberdade!
Abre as asas sobre nós
E que a voz da igualdade
Seja sempre a nossa voz!"
A tradicional roda de samba da Pedra do Sal, uma enorme rocha com degraus que dão acesso ao Morro da Conceição, hoje atrai todo um universo de pessoas de diferentes lugares e origens: moradores da região, estudantes universitários da classe média da Zona Sul, hipsters que vendem brownie de maconha, trabalhadores no final do expediente, argentinos que vendem empanadas, turistas de diversos lugares... "Já não é uma festa dos moradores. Temos nossos próprios eventos, mas isso aqui... Isso aqui vem de fora, é uma coisa mais internacional", diz Rosiete Marinho, presidente da Liga de Blocos da Zona Portuária, que todos os anos inaugura o carnaval carioca. "Mas eu gosto, sou a favor. Ajuda a manter o lugar e o samba vivos". Em pé em cima da pedra, a professora Nana, nascida em Niterói e moradora de São Cristóvão, confessa sua paixão pelas rodas da Pedra do Sal, aonde costuma ir sempre e sozinha.
— Costuma vir há muito tempo?
— Sim, há muito tempo. Mas não desde sempre, não.
— Desde quando?
— Quando decidi buscar minha identidade.
Há centenas de anos, este mesmo local era um mercado de escravos. Era nesta mesma pedra onde eles descarregavam o sal que chegava do porto. As primeiras comunidades negras foram então se formando ao longo da região portuária, nos bairros da Saúde e Gamboa, e logo se expandindo para a Cidade Nova e Estácio. Toda essa região central da cidade, que concentrava africanos marginalizados e de diferentes origens, passou a ser chamada então de Pequena África. E a Pedra do Sal passou a ser também o núcleo cultural dessa grande comunidade e ponto de encontro dos artistas que trabalhavam como estivadores no porto.
É neste contexto social e cultural que o século XX começa no Rio: a então capital da nova República, receptora de milhares de negros que migravam da Bahia, serviu de catalisadora de diversos movimentos artísticos e culturas africanas. Eram os primeiros anos após o fim da escravidão (1888) e o centro da cidade fervilhava com uma classe média emergente de trabalhadores negros que finalmente podiam vender seu trabalho. Os artistas dessa época, proibidos pela polícia de mostrar sua música em público, buscavam refúgio nas casas das tias baianas, mulheres que ganhavam a vida vendendo sua culinária ou costura. Após celebrações de rituais do Candomblé (e posteriormente da Umbanda), se reuniam para, entre versos e batuques, criar, resistir e forjar o samba carioca.
Foi em um desses dias de 1916 que, reunidos na casa da Tia Ciata, a mais conhecida e importante das tias baianas, Ernesto dos Santos e diversos músicos compuseram conjuntamente Pelo Telefone em uma roda de samba. Donga, como era conhecido, a registrou então como um samba na Biblioteca Nacional. E após ser gravada, já em 1917, a palavra samba também apareceu pela primeira vez no selo de um disco de vinil de 78 rpm.
Eram tempos de artistas como Donga, Pixinguinha, João da Baiana, Sinhô e muitos outros. Se misturavam com eles intelectuais como Mario de Andrade, Manoel Bandeira, Vila Lobos e Santos Dumont. Era a época em que uma cultura genuinamente nacional era forjada. E, apesar de Pelo Telefone ser considerado um maxixe, uma dança com influências europeias apelidada de "tango brasileiro", mas que acabou influenciando e se misturando com os batuques feitos pelos negros, a música é vista como o ano zero do samba no Brasil. Foi a primeira a ser registrada e gravada como tal – apesar de outras gravações similares anteriores – e, por ela, o samba faz oficialmente 100 anos no biênio 2016-17.
"Não importa que seja um maxixe, foi uma vitória. Depois da abolição da escravidão, este é o momento mais importante para o negro. Significou que a palavra samba, de origem africana, ao estar registrada na Biblioteca Nacional, passou a fazer parte da cultura do país, e não só do negro", explica Paulo Lins, autor de Desde que o samba é samba e Cidade de Deus, sobre a importância de se celebrar em 2016 os 100 anos de Pelo Telefone. Para ele, todas as entidades e pessoas "do bem" que são contra o racismo e a opressão deveriam celebrar a data. "A palavra samba sempre existiu. Samba era ritmo. E onde havia negro, havia samba, seja no Brasil ou no Caribe. É palavra de som, de música. E registrá-la na Biblioteca Nacional marca oficialmente a entrada da cultura negra no Estado brasileiro, depois de 400 anos de massacre. É o primeiro grande documento do negro no Brasil. É a imposição de uma cultura. Foi quando o samba passou a ser do país. Algo que o fado e a salsa não conseguiram".
A segunda fase e definitiva do samba carioca acontece anos depois, no final dos anos 20, a três quilômetros da Pedra do Sal. No bairro Estácio, nas proximidades da Praça Onze e ao pé do Morro de São Carlos, surge uma geração de artistas dispostos a mudá-lo completa e definitivamente. Eram tempos de Ismael Silva, Bide, Brancura, Nilton Bastos e muitos outros. Juntos, adicionaram um novo instrumento de marcação, o surdo – criado por Bide com uma grande lata de manteiga vazia, coberta por um pedaço de couro de cabrito –, e alteraram o ritmo do samba, como explica Silva no vídeo abaixo.
Em 1928, Ismael Silva inaugurou a primeira escola de samba do Brasil, a Deixa Falar. E os professores da Estácio puderam ensinar e difundir no Rio uma nova forma de carnaval. Em 1931, Silva gravou Se você jurar e, no ano seguinte, o primeiro desfile das escolas de samba foi realizado na Praça Onze, reunindo artistas como Cartola, Paulo Portela, entre outros. Foi a origem de gerações e gerações de músicos: Adoniran Barbosa, Dona Ivone Lara, Beth Carvalho, Clara Nunes, Paulinho da Viola, Martinho da Vila, Diogo Nogueira... "O samba carioca é de Ismael Silva. Foi uma coisa de vanguarda, planejada. Ismael Silva sabia que queria criar uma música para cantar, para dançar e para andar. É a música de desfile", explica Lins. Para ele, Donga e Pixinguinha abrem o caminho para florescer a MPB em geral, e não apenas o samba. São muito mais pais de Chico, Tom, Vinícius, Caetano... “Mas o samba que o Zeca Pagodinho e o Martinho da Vila fazem nasceu com o Ismael Silva. Assim como a bossa nova tem dono, a jovem guarda tem dono e a Tropicália tem dono, o samba carioca também tem dono.”
Vários anos depois, a Pedra do Sal ajuda a manter vivas as tradições da Pequena África. Se domingo é dia de missa, segunda é dia de roda de samba. E neste local, onde os edifícios históricos, de estilo português, do Morro da Conceição seguem preservados, milhares de pessoas se aglomeram para festejar o samba carioca. Mas não só isso. Vários grafites em paredões denunciam que o lugar, além de tudo, se mantém como símbolo de resistência da cultura negra. Dois deles se destacam: de um lado, uma enorme imagem de um homem e a mensagem "Vende-se carne negra. Tel: 190"; do outro, a imagem de uma mulher e os dizeres "Crespo é lindo, feio é o seu preconceito".
Mas na segunda-feira, o que importa mesmo é o samba. E para escutá-lo bem, é preciso estar perto dos setes músicos. Apenas o violão e os cavaquinhos são ligados a um amplificador, enquanto que as vozes e a percussão – pandeiros, tamborim, surdo... – se dissolvem no ar da noite carioca:
"Oh! Minha romântica senhora tentação,
Não deixes que eu venha a sucumbir,
Neste vendaval de paixão".
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