Crise dos refugiados coloca a Grécia mais uma vez contra a Europa
Críticas à gestão migratória somam-se a um período de greves e protestos no país
Desde que eclodiu em agosto, a crise dos refugiados tem sido uma prioridade para Atenas. Não é à toa: entraram pelo país 85% dos chegados à União Europeia em 2015 (mais de um milhão). Mas o Governo de Alexis Tsipras tem outros incêndios importantes para apagar: a difícil aplicação do terceiro resgate; mobilizações contra as reformas exigidas por Bruxelas, como um corte equivalente a 1% do PIB (uma tesourada de 1,8 bilhão de euros, mais de 7 bilhões de reais) no sistema de aposentadorias; protestos de agricultores — cujas cotas à previdência social o Executivo pretende aumentar — e profissionais liberais. A possibilidade da expulsão temporária do país da zona Schengen, uma ameaça aventada nesta semana pela Comissão Europeia, foi a gota d’água.
A imagem que o porto de Mytilene (na ilha de Lesbos) oferecia na manhã de sexta-feira era uma metáfora da verdadeira tormenta que se abate sobre a Grécia quando muitos acreditavam que a assinatura do terceiro resgate e a aquiescência do Governo de Alexis Tsipras tinham posto fim às turbulências. Sincronizadamente, como em uma cenografia perversa, encontravam-se em suas instalações uma delegação da Frontex em visita; ônibus de refugiados recém-chegados à ilha, rumo aos acampamentos; o barco que os transporta a Atenas depois registrados, amarrado pela segunda greve do setor em duas semanas, e, do lado de fora, uma manifestação de agricultores em protesto pela reforma da previdência social. Como se não bastassem as consequências de quase sete anos de crise e o precipício do Grexit do ano passado, a dramática crise migratória vem colocar a Grécia mais uma vez entre a espada e a parede. A parede de Bruxelas. No meio estão também dezenas de milhares de refugiados.
Nesta semana, a Comissão Europeia acusou as autoridades gregas de não exercer um controle eficaz de suas fronteiras — em especial a fronteira líquida do mar Egeu, onde é materialmente impossível levantar cercas — e de negligenciar o registro dos refugiados, com a ameaça de expulsar o país temporariamente da zona Schengen se essas deficiências não forem sanadas. Com um fluxo incessante também no inverno (só em janeiro entraram seis vezes mais que a soma de chegadas nesse período em 2014 e 2015), a Grécia poderia ficar isolada — ainda mais — de seus parceiros apesar de sua notória incapacidade material de responder sozinha; prova disso foi o pedido de ajuda a Bruxelas, mediante o envio de patrulhas da Frontex ao mar Egeu ou o fornecimento de reforços administrativos. A Grécia cedia assim à suposta perda de soberania que implica um controle parcial de suas fronteiras por agentes externos, mas agora se defende com unhas e dentes contra essa nova tentativa de discipliná-la.
O país já gastou 350,6 milhões de euros na gestão do enorme fluxo migratório (0,18% do PIB); só a prefeitura de Mytilene, a capital de Lesbos — ilha em que chegaram no ano passado 550.000 migrantes dos 851.319 que entraram no país —, destinou até agora três milhões de euros (de um orçamento anual de 10 milhões) à emergência. Paralelamente, só uma centena de refugiados foram recolocados em outros países da União. “Os europeus, os Estados membros e a Comissão Europeia devem entender que a crise dos refugiados não é um problema grego, mas europeu”, diz por e-mail Dimitris Papadimoulis, eurodeputado do Syriza e vice-presidente da Eurocâmara. “O Governo grego está fazendo tudo o que pode, em condições econômicas tão apertadas, para enfrentar esse fluxo maciço enquanto o povo grego nas ilhas lida com a situação de forma exemplar. A Grécia necessita de uma solidariedade substancial, e isso pode ser feito com uma distribuição eficaz [dos refugiados] entre os Estados membros. Em tempos de crescimento da retórica xenófoba e racista na UE, é hora de atuar de forma coletiva e decidida”.
De Marrocos à Europa via Istambul
Entre todos os migrantes que chegam à Grécia, destaca-se o grupo de norte-africanos (principalmente marroquinos, mas também argelinos e tunisianos) que pretendem entrar na União Europeia pela Grécia. Reforçada a vigilância no Estreito de Gibraltar, e quase blindada a passagem de embarcações clandestinas – as que chegam à Espanha o fazem a conta-gotas –, os cidadãos desses países aproveitam os voos baratos para Istambul (pouco mais de 100 euros) e a isenção de visto para voar àquela cidade e, partindo do litoral turco, chegar a uma ilha grega.
“Os marroquinos, argelinos e tunisianos são a única exceção no registro obrigatório de migrantes”, explica Vanguelis Kassos, coordenador do centro de registro da Moria. “Não têm direito ao registro”, acrescenta. Quer dizer, nem sequer à licença temporária mínima, de 30 dias, que obtêm paquistaneses e egípcios; também não têm acesso aos acampamentos para refugiados. Os nacionais desses três países são os primeiros candidatos à expulsão, ou à repatriação voluntária, que na Grécia é administrada pela Organização Mundial de Migrações (IOM, na sigla em inglês).
Párias entre os párias, um grupo desses imigrantes – um número residual, mas crescente, no volume total de chegadas – criou um acampamento próprio na praia urbana de Mytilene. Dispondo apenas de precárias barracas de lona e plástico e uma cozinha de campanha, os norte-africanos carecem de qualquer ajuda. “Tentamos instalar banheiros e outros serviços para eles, mas a Prefeitura não nos deu permissão”, diz o coordenador do MSF na ilha, Daniel Huéscar.
“Ao mesmo tempo, a Turquia deve acelerar a implementação do acordo assinado com a UE para controlar o fluxo de migrantes e combater as redes de traficantes. O papel da Comissão Europeia neste âmbito, obrigando a Turquia a cumprir seus compromissos, é de capital importância”, conclui Papadimoulis. Algo com que está de acordo o prefeito de Mytilene, o independente Spyros Galinos, que observa que a desarticulação das máfias é o primeiro passo para a solução. O prefeito de uma cidade de 27.000 habitantes que em meados do ano passado viu 35.000 refugiados em suas ruas não esconde sua irritação com Bruxelas. “Não me posso acreditar que países com mais capacidade que a Grécia estejam ameaçando nos expulsar da zona Schengen em vez de assumir, na medida de suas possibilidades, uma parte desta carga. É injusto, fundamentalmente injusto”, explica.
Crise humanitária
Galinos defende um registro na origem, na Turquia; e dali uma viagem segura até o destino escolhido “para evitar vítimas inocentes em naufrágios; porque é esta política errônea da UE que conduz diretamente a eles”. “Esta crise mostra sobretudo a incapacidade da Europa. Nós propusemos uma solução factível, agora cabe a Bruxelas aplicá-la”, reforça.
Longe dos gabinetes, em campo, a gestão cotidiana da emergência não recai nos políticos, nem mesmo em instâncias oficiais — essa gigantesca burocracia congelada por falta de recursos —, mas nos habitantes das ilhas — existe uma petição internacional para dar a eles o Nobel da Paz, pela ajuda que prestam aos recém-chegados — e, sobretudo, nas organizações internacionais e ONGs. “Existe uma transferência de responsabilidades; tarefas que o Estado deveria assumir, por mais profunda que seja a crise, são transferidas às ONGs”, denuncia Daniel Huéscar, coordenador do Médicos Sem Fronteiras em Lesbos. “É inacreditável que não tenha havido nem uma distribuição [oficial] de comida desde setembro; nós é que damos comida, limpamos os acampamentos ou transportamos os refugiados em ônibus fretados”.
O diretor do MSF, que mantém na ilha 35 profissionais expatriados e 145 locais e administra um campo de trânsito para 600 pessoas, ressalta que esta é “uma crise humanitária à qual não se deu a resposta necessária; pelo contrário, tem-se insistido em questões de segurança e administrativas. Não existe vontade política e o enfoque é errôneo, mas isso não é culpa só da Grécia, é culpa da Europa”.
O que pode acontecer se o ultimato de Bruxelas for finalmente cumprido, ou se a Grécia fechar a fronteira norte, tornando-se uma ratoeira para centenas de milhares de migrantes, ainda não se sabe, mas propostas como a belga de criar um acampamento para 400.000 pessoas nos arredores de Atenas, ou a hipotética construção de uma cerca entre a Grécia e a Antiga República Iugoslava da Macedônia (FYROM, na sigla em inglês), como sugeriram húngaros e eslovacos, inquietam sobremaneira. Estão previstas para a próxima semana novas paralisações de trabalhadores navais e agricultores (ou seja, mais barcos atracados e mais refugiados retidos nas ilhas), enquanto o Governo ainda busca a anuência definitiva dos credores na revisão do terceiro resgate e enfrenta a difícil tramitação parlamentar da reforma da previdência social; pela primeira vez em mais de um ano, depois da eleição de seu novo líder, a conservadora Nova Democracia está à frente do Syriza nas pesquisas. Alheios a tudo isso, contra vento, maré e naufrágios, os refugiados continuarão chegando.
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