A crise dos refugiados ameaça criar uma UE com duas velocidades
Alemanha dá dois meses aos demais países para encontrar uma solução conjunta ao desafio migratório


Dois meses, talvez menos. Esse é o prazo que a Alemanha se dispõe a esperar para que a União Europeia (UE) encontre uma solução conjunta para a crise dos refugiados, após uma sucessão de fracassos que abala os fundamentos do bloco continental. Berlim ameaça fechar suas fronteiras. Ainda longe de que se possa dar por encerrada a crise do euro, a suspensão da livre circulação de pessoas, um direito tão simbólico dentro da UE, abriria um capítulo espinhoso dentro da construção europeia. Os desafios se acumulam — fissuras entre o norte e o sul e entre o leste e oeste do continente, a perspectiva do Brexit (a saída da Grã-Bretanha do bloco) —, e a chanceler (primeira-ministra) alemã, Angela Merkel, está prestes a reverter sua generosa política de asilo. Bruxelas teme que se avizinhe uma Europa de duas velocidades; uma aliança que deixe de fora aqueles que não quiserem avançar.
Os grandes projetos políticos se desintegram a partir do centro, nunca da periferia. A Europa vive há anos num permanente estado de exceção, com crises ameaçadoras que começaram na Grécia e foram se disseminando pelo Mediterrâneo. Em vários momentos, pareceu que o euro iria explodir. Mas eram crises periféricas. “O verdadeiro desafio chega agora, com a crise de refugiados batendo diretamente no centro, na Alemanha, e tendo Merkel como alvo”, afirma Javier Solana, ex-chefe da diplomacia europeia. “Os problemas do euro foram o caldo de cultivo de algumas linhas de fratura na Europa, mas a crise de asilo coloca a Europa perante uma crise de natureza essencialmente política, que vem de longe e tem uma evolução muito preocupante”, corrobora uma fonte europeia de alto escalão.
Ainda debilitada pela interminável crise econômica, a Europa não soube encontrar a resposta adequada. Minimizou a origem do problema, a Síria. O Executivo da UE, induzido por Berlim, tentou vedar a entrada de refugiados pela fronteira turca, sem sucesso. Propôs distribuir os recém-chegados entre os vários países, sem sucesso. E se empenha em fazer do sistema Frontex uma autêntica polícia de fronteiras, num movimento que encontra resistências. Nada disso funcionou: em pleno inverno europeu, 1.600 candidatos a asilo continuam entrando diariamente na UE. Quando chegar a primavera, a cifra deve disparar, segundo a ONU.
A crise de asilo vai se transformando em uma crise política de primeira grandeza. E veio para ficar, com metade da Europa no salve-se quem puder, e com os grandes países mergulhados em problemas. A opinião pública alemã está com um pé atrás com Merkel, que enfrenta crescentes pressões no seu partido e vê a extrema direita crescer. A França está desaparecida, e nem a social-democracia nem a centro-direita são capazes de domar o lepenismo. O Reino Unido e o beco sem saída do Brexit são uma fonte de perturbação. E a Itália está diante dos primeiros sintomas de um buraco bancário alarmante, que pode reavivar a crise do euro.
Um péssimo acompanhamento para uma situação que ainda deve se agravar. A foto de um menino morto na praia turca de Bodrum, em setembro, abalou todas as consciências. Merkel então abriu os braços aos refugiados, num gesto para a história, mas sem calcular as consequências. Com uma liderança mais sólida do que nunca, julgou que os alemães lhe dariam um voto de confiança e que os sócios europeus a acompanhariam sem falar nada. Não foi o que aconteceu. O afluxo de refugiados transbordou a capacidade europeia, e poucos países – entre os quais Alemanha, Suécia e Holanda – acolheram números significativos de asilados. Berlim assiste impotente às violações dos pactos em Bruxelas: das 160.000 realocações previstas, apenas 300 foram efetuadas. A Hungria construiu muros, vários países suspenderam sua participação no Acordo de Schengen, pilar da livre circulação de pessoas na UE, e a tensão provocou reações exaltadas, especialmente no Leste Europeu, mas também na Alemanha, após os graves incidentes envolvendo estrangeiros durante o Réveillon em Colônia.
“Isso lembra aquela história em que um homem manda um telegrama à mulher: ‘Comece a se preocupar. Detalhes depois’. A Europa já vinha de alguns anos de xenofobia, antieuropeísmo e tensões entre Estados, que agora vão se multiplicar”, afirma o cientista político Ivan Krastev, professor do Instituto de Humanidades de Viena. “Os referendos na Holanda e no Reino Unido calibrarão o mal-estar do eleitorado: atenção a isso. E Merkel está assediada por Governos antiausteridade no Sul e por anti-imigrantes na Europa central. A Europa está num ponto complicado, um ponto de potencial ruptura”.
Bruxelas prevê tempos difíceis. Merkel está em plena corrida contra o tempo, pois tem dois meses para encontrar uma solução europeia que lhe permita livrar a cara em seu país. “Em 2015 pensávamos que a Europa poderia descarrilar por causa do euro; agora, por causa das fronteiras”, observa Fredrik Erixon, do instituto Carnegie. “É imprescindível um acordo europeu. Mas os interesses políticos e econômicos dos sócios divergem cada vez mais, e em áreas cada vez mais cruciais”, critica.
O leitmotiv “mais Europa” dominou as seis últimas décadas, mas existe o risco de retroceder parte do caminho. Pode ser que a chanceler se veja obrigada a dar um giro na sua política de asilo, já que tem três eleições regionais à vista, e as legislativas em 2017. “Haverá uma última tentativa por parte de Berlim. Se não der certo, é muito possível que Merkel abra espaço à ideia de uma coalizão dos países que desejam soluções comuns ambiciosas”, disse Mujatba Rahman, do think tank Eurasia. Alemanha, Áustria, França, o Benelux e Suécia são candidatos claros a entrar nessa coalizão. Os países do Leste têm tudo para ficar de fora. Itália e Espanha estão num meio-termo.
Algo se rompeu na Europa, com a Alemanha pressionando para expulsar a Grécia do euro, com declarações cada vez mais fora de tom, com as divergências se aprofundando entre credores e devedores, entre Leste e Oeste. “Continuamos nos integrando ou estamos chegando ao ponto em que será preciso começar a mudar de direção?”, questiona-se Guntram Wolf, do Bruegel. “Sou otimista, acredito que vamos ver uma Merkel humanitária e um [ministro alemão das Finanças, Wolfgang] Schäuble keynesiano, que vão gerar um círculo virtuoso”, discorda Carlo Bastasin, do instituto Brookings. O primeiro-ministro francês, Manuel Valls, alertava nesta semana em Davos que o projeto europeu “pode se romper se não formos capazes de responder a este desafio”. A tentação do fracasso está aí.
Um sistema de emergência para fechar fronteiras
A possibilidade de que chegue ao fim o espaço de livre circulação de pessoas dentro da UE ocupa um lugar destacado na agenda comunitária. Na próxima segunda-feira, os 28 ministros de Interior do bloco se reúnem em Amsterdã para avaliar os fechamentos de fronteiras internas já adotados por seis países (Alemanha, Áustria, Suécia, Noruega, Dinamarca e França). Em maio, Berlim e Viena deverão revogar os controles, pois terão esgotado o período máximo de suspensão do seu espaço Schengen.
A UE está consciente de que a ameaça terrorista e a chegada maciça de refugiados não irão mudar em curto prazo, e por isso estudará prorrogar os controles fronteiriços por um máximo de dois anos, através de um mecanismo de emergência.