“Sucessor de Cristina terá de retomar relação com Brasil quase do zero”
Ex-ministro argentino avalia que houve pouca sintonia entre a presidenta e Dilma Rousseff Especialista diz que queda no comércio exterior vai obrigar países a renegociar a relação
Ainda que não esteja claro quem será o novo presidente da Argentina às vésperas das eleições, o sucessor de Cristina Kirchner deve criar uma nova relação com o Brasil a fim de melhorar as trocas com seu principal sócio comercial. A parceria entre os países esfriou nos últimos tempos e só neste ano, até setembro, o comércio bilateral encolheu 18%. Além dos percalços econômicos que atravessam os dois países, as barreiras protecionistas impostas pela Argentina e a maior presença da China em certos segmentos argentinos, parte da mudança no relacionamento entre eles se deu também por uma falta de sintonia entre Cristina e Dilma Rousseff, na opinião do economista argentino Dante Sica, da consultoria ABECEB, ex-ministro da Indústria do país.
Em entrevista ao EL PAÍS, Sica afirmou que, nos últimos quatro anos, não houve um bom diálogo presidencial entre elas, e que as reuniões entre as duas foram pouquíssimas e circunstanciais. "Claramente a relação entre os Kirchner e Lula foi muito melhor. Eles tinham reuniões periódicas", explica. Para o economista argentino, no caso da vitória tanto Daniel Scioli, candidato de Cristina, como no de Mauricio Macri, o opositor, que hoje é o prefeito de Buenos Aires, o foco das relações internacionais na região estará em uma agenda mais agressiva no Mercosul.
Pergunta. Que mudanças, se alguma, podemos esperar nas relações políticas e comerciais da Argentina com o Brasil no caso de vitória dos favoritos nas pesquisas - o governista Daniel Scioli e o oposicionista Mauricio Macri?
Resposta. Há tanta indefinição no país que hoje precisamos considerar o cenário de um segundo turno nas eleições argentinas. Para um ou para outro, seja Scioli (da Frente para a Vitória) ou Mauricio Macri (Cambiemos), acho que ambos terão que começar quase do zero a relação com Brasil. Digo isso por várias questões, que têm relação com aspectos externos que terão um papel importante na hora de estreitar a relação. A primeira questão é que caminhamos para um contexto internacional onde o crescimento do comércio será menor. Para recuperar o volume de exportações e de comércio, vamos ter que começar a trabalhar em diferentes temas, em uma agenda mais agressiva em matéria de negociações internacionais. O Mercosul esteve quase estancado nos últimos 10 anos nesse aspecto. Países como Uruguai e mesmo o Brasil, tanto no setor privado como no público, vinham pedindo um dinamismo maior do bloco. Acho que no primeiro trimestre do ano que vem já vamos ver a agenda do Mercosul ser rearmada de forma mais agressiva, o que permitirá trabalhar com mais rapidez matérias de negociações. Neste marco, é impossível que essa discussão aconteça sem que haja uma recomposição das relações entre Argentina e Brasil que hoje se encontram em um ponto de equilíbrio muito baixo.
P. Por que se chegou a esse ponto?
R. O que aconteceu nos últimos anos foi um desencontro grande, entre restrições impostas pela Argentina, problemas no comércio e acordos que não foram cumpridos. Tudo isso fez com que não tivéssemos apenas um problema. É preciso expor também que não houve sintonia, simpatia entre as duas presidentas. Havia uma má relação, talvez pessoal, e também desavenças e pactos não cumpridos. Isso impediu que as reuniões técnicas fossem para frente. Os negociadores ficaram sem tema para negociar. E no futuro isso terá que mudar. Existe um contexto internacional que nos fará repensar essa relação, porque será questionada essa estratégia do Mercosul de se fechar e não ter um tema mais agressivo.
P. Por que o senhor considera que a relação entre Dilma e Cristina não é boa?
R. A verdade é que não tenho muito claro o porquê, mas, definitivamente, a relação de Néstor Kirchner e Lula foi muito melhor. Eles tinham reuniões periódicas e se encontravam com uma frequência muito maior que as duas presidentas. Nos últimos 4 anos, foram poucas as reuniões presidenciais e os encontros -na maioria dos casos- foram ocasionas, sobretudo dentro do marco de reuniões internacionais como, para mencionar uma, o G20. Isto é, o mínimo e indispensável.
P. Na propaganda eleitoral, Daniel Scioli aparece abraçando ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Foi ele quem fez mais referência ao Brasil em sua campanha entre todos os candidatos?
R. Scioli tirou fotos com Lula para reafirmar sua aliança com o PT. Ele falou sobre a relação com o Brasil, mas destacando o PT para consolidar o ponto ideológico do kirchnerismo (o candidato foi vice de Néstor Kirchner). Já Macri, quando se refere a política internacional, fala de se relacionar mais com o Brasil no marco das relações com o Mercosul. É uma afirmação mais institucional e não partidária, somente para reconstituir as relações. Por outro lado, o que Scioli fez foi dar um sinal para seu eleitorado do seu posicionamento ideológico.
P. Como a crise econômica do Brasil afeta esta relação entre ambos países?
R. Esse é um tema adicional também. O Brasil continuará com uma forte capacidade ociosa ainda durante o ano que vem, com uma forte desvalorização. Isso faz com que o país siga com uma grande capacidade exportadora a preços muito competitivos. Somado ao fato que a Argentina, em 2016, tem que cumprir o pacto que assinou com a Organização Mundial do Comércio (OMC), que implica ter que desarmar o sistema da DJAI (Declaração Jurada Antecipada de Importação). Então, claramente será um ponto pelo qual terão que falar ambos países, porque no ano que vem haverá uma forte pressão importadora do Brasil sobre Argentina e isso fará com que se comece a discutir outra vez questões de mercado e de restrições, já que isso provocará uma forte reação dos industriais argentinos. Claramente, no ano que vem, vamos ter uma recomposição das relações e das negociações.
P. Qual foi a real queda da balança comercial entre os dois países?
R. Há uma queda muito forte na balança porque Brasil está perdendo demanda. Nos primeiros nove meses deste ano, o comércio bilateral somou 17,7 bilhões de dólares. No ano passado, no mesmo período, esse valor foi de 21,6 bilhões de dólares. Isso significa uma queda de 18%.
P. E como a China influencia na relação do comércio bilateral dos dois países?
R. A China entra como financiadora, assim como em toda a América Latina; como credora de última instância. Ela assume um papel muito forte desde o ponto de vista financeiro e, ao mesmo tempo, está financiando investimentos em quase todos os países da América Latina, tanto na Argentina como no Brasil.
P. O senhor acredita que a China pode chegar a ocupar o local do Brasil como maior sócio da Argentina?
R. Quando comparamos os volumes de comércio, a China compete com o Brasil em todos os mercados em que ele importa para a Argentina. Isso porque a oferta de bens que trazemos de um e do outro lado são bastante similares. No entanto, em tamanho e volume, a importância do Brasil é ainda bem mais forte. É claro que cada vez que o Brasil perde algo de mercado, ele perde para a China. Mesmo assim o Brasil continua sendo o primeiro fornecedor de bens importados para a Argentina. China ainda está atrás, em um lugar menor.
P. Considera que o acordo automotivo deve mudar?
R. Isso será decidido só em junho. No entanto, em janeiro já começarão as negociações. Se vai mudar ou não, dependerá de quem ganhe as eleições. Só então saberemos qual será a política setorial adotada. Nessa questão, ainda existe muita incerteza.
P. Qual é a maior diferença entre os dois candidatos quanto à forma que propõem para conduzir as relações exteriores?
R. Tenho a sensação de que os dois tentarão se incorporar rapidamente ao mercado internacional, restabelecendo relações. Talvez a equipe liderada por Macri dê mais ênfase no Mercosul e nas relações com os Estados Unidos, a União Europeia e os países da Aliança do Pacífico. Macri também deve retirar certa atenção da relação que a Argentina tem com Venezuela. E Scioli, em sua primeira etapa, seguirá tendo um discurso mais político com esses países, embora sabemos que seus interesses econômicos passam por outro lado.
P. E quanto à economia, que direção acha que tomará cada um?
R. Acho que a grande diferença será a velocidade com a que eles tentarão impor correções para fazer que a Argentina volte ao caminho do crescimento. Scioli teria um movimento mais gradual e Macri uma estratégia de choque, mais veloz. Acho que Scioli estará limitado desde o ponto de vista legislativo, mas já está se diferenciando de Cristina em matéria de gabinete. Essa é a incerteza e a dúvida que há com o candidato oficialista, em que medida ele pode ficar condicionado quando este Governo saia.
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