_
_
_
_

Mario Vargas Llosa: “Chego aos 80 em um estado maravilhoso”

Nobel de Literatura terminou seu romance “Cinco Esquinas” e se diz entusiasmado

Mario Vargas llosa fala de seu momento literário e pessoal.Vídeo: FERNANDO SANCHO
Juan Cruz

Esse é Mario Vargas Llosa de corpo inteiro, o escritor de ficções e o homem. Em março vai fazer 80 anos; sua vida pessoal passou por uma transformação radical, que inclui uma nova relação sentimental que deu mais o que falar do que ele imaginou, e agora sua editora, Alfaguara, anunciou que no aniversário do Prêmio Nobel de Literatura peruano será publicado em todo o mundo de língua espanhola seu mais recente livro, o romance Cinco Esquinas. Nesse trabalho, como em Conversa no Catedral ou A Cidade e os Cachorros, Vargas Llosa retorna à sua terra natal, o Peru, o fundamento de sua narrativa e o grande pesar e grande alegria do seu coração e da sua memória. Esta entrevista aborda os principais temas de sua escrita, para que serviu e serve escrever para ele, e aspectos atuais da sua vida pessoal. Foi concedida a EL PAÍS, o jornal para o qual colabora há anos, no último domingo no apartamento onde vive em Nova York, onde leciona na Universidade de Princeton. Antes e depois da conversa, que é reproduzido aqui sem edição e sem cortes, o personagem e a pessoa se unem em um exercício extraordinário de memória, de pequenos detalhes, de histórias que descreve, oralmente, com a mesma precisão conhecida em sua obra completa: com extrema eficácia narrativa e descritiva. Por isso, a primeira pergunta é sobre sua memória.

Pergunta.  De onde vem a capacidade de recordar tantas coisas?

Resposta. Não é assim, lembro das coisas que têm a ver com meu trabalho, as pessoais ou familiares, e esqueço muito mais do que lembro, acontece com todo mundo. Sim, percebi que lembro muitas imagens, episódios que se transformam depois em matéria-prima para meu trabalho.

P. Como é que isso funciona?

R. De uma maneira totalmente inconsciente. Como todo mundo, vivo todo tipo de experiências, mas há algumas que a imaginação resgata, conserva e de repente dessas imagens começam a surgir uma espécie de devaneio, mas sem que eu perceba. Até que de repente percebo que estive, inconscientemente, trabalhando em alguma pequena história, um embrião de história, a partir de algum fato vivido, ouvido ou lido. Sempre achei muito misterioso esse início de todas as coisas que escrevi, por que certos fatos têm esse poder de conectar a imaginação, colocar em movimento a fantasia. Certamente é porque essas experiências tocam algum importante centro vital, mas que está enterrado no subconsciente. Nunca soube exatamente por que certas experiências têm esse poder e por que tantas outras, não.

P. Que centro vital acha que é esse?

R. Eu não sei, provavelmente se conhecesse o mecanismo não funcionaria com essa naturalidade. Tem a ver com alguns fatos importantes que constituem a personalidade, a fonte do que é a psicologia de um personagem. O que eu sei é que sempre aconteceu assim, sempre é algo vivido o ponto de partida da fantasia, da imaginação por trás dos romances, das histórias. Das obras de teatro também. Acho que não dos ensaios; eles são muito mais limitados, você escolhe os temas sobre os quais quer escrever, mas no caso da ficção não escolhe, os fatos escolhem a pessoa e a empurram em uma determinada direção. Embora depois de começar, seja possível trabalhar com grande liberdade, acho que o ponto de partida não é livre, é algo que a realidade impõe através da experiência vivida.

Mario Vargas Llosa em Nova York.
Mario Vargas Llosa em Nova York.fernando sancho

P. No seu caso, a realidade tem a ver muitas vezes com sua própria juventude ou infância, mas também com a realidade peruana.

R. Sim, sim, os anos de formação da personalidade são os anos da juventude, aqueles que vivi no Peru e são os que mais me marcaram. Meus primeiros 10 anos foram passados na Bolívia, uma época que lembro como completamente feliz, e nunca pensaria em contar uma história inspirada em fatos desses anos, talvez porque fui feliz, porque vivi sem nenhum tipo de trauma. Acho que experiências traumáticas são muito mais frutíferas para um escritor, pelo menos para um escritor moderno, que as experiências felizes. As experiências que para mim são mais fecundas do ponto de vista literário têm a ver com conflitos, traumas, com momentos difíceis, com algum tipo de frustração ou ruptura; ou também de grande exaltação. Não são fatos convencionais, aqueles fatos que não deixam forte marca na memória; são fatos conflitivos e muitas vezes traumáticos.

P. É o caso de Cinco Esquinas?

R. O caso de Cinco Esquinas é muito interessante; ao contrário de outras histórias, não tenho muito claro como foi se insinuando a ideia desse livro. Tudo começou com uma imagem bastante erótica de duas senhoras amigas que, de repente, uma noite, de uma forma inesperada para ambas, vivem uma situação erótica. Como era uma imagem que me perseguia, comecei a escrever, e esse foi o ponto de partida. Depois foi se tornando uma história policial, quase um thriller, e o thriller foi se transformado em uma espécie de mural da sociedade peruana nos últimos meses ou semanas da ditadura de Fujimori e Montesinos, num momento em que o sistema que eles tinham construído começava a desabar por todos os lados. E, no meio de uma grande violência, uma violência múltipla pelo terrorismo; também pela violência da repressão policial e militar e o grande desconcerto, desânimo psicológico e político coletivo que vivia o Peru. E esse foi o resultado. Cinco Esquinas foi um bairro importante de Lima; nele estavam as principais embaixadas, a da França, Grã-Bretanha e dos EUA; um bairro que, na colônia, sempre teve uma grande vitalidade, talvez as principais igrejas coloniais de Lima estejam em Cinco Esquinas. Depois entrou em forte decadência, embora no início do século XX tenha tido uma espécie de apogeu de outro tipo porque se tornou o bairro do criollismo, da música peruana, dos grandes guitarristas... Depois continuou sua decadência até se tornar um bairro muito perigoso, com muito tráfico de drogas e muita delinquência. Tanto que a última vez que estive em Lima fui duas ou três vezes caminhar pelo bairro e em plena luz do dia me avisaram para não andar por ali porque era muito perigoso, porque poderia ser assaltado, e que só estava seguro quem morava no bairro. Senti que em tudo isso havia um símbolo da sociedade e dos problemas peruanos e gostei da ideia de que a história se chamasse Cinco Esquinas como um bairro que, de alguma forma, é emblemático de Lima, do Peru e também do tempo em que está situada a história.

Nunca tive a empolgação, o entusiasmo, as fantasias que tenho hoje em dia, em uma idade em que geralmente já não há tantos entusiasmos. 

P. O Peru nunca desaparece do senhor.

R. Não, não, as experiências básicas, que são as de formação da personalidade, foram vividas no Peru. Conheci o Peru quando já tinha 10 anos; antes tinha vivido na Bolívia e sempre com a ideia de que o Peru era meu país, minha pátria. E voltei para um país no qual em Piura era considerado estrangeiro porque falava como um menino boliviano e os colegas de colégio zombavam de mim, dizendo que ele falou como los serranitos.

P. Quem leu Cinco Esquinas diz que tem uma forte carga erótica e também...

R. Sim, sim! Um lado da história é uma relação erótica muito forte que certamente é como um refúgio. Quando você não consegue fugir da realidade por outros meios, o erotismo é uma forma de fugir da realidade, de não viver a realidade que você rejeita. Mas se existe um tema que permeia Cinco Esquinas, que impregna toda a história, é o jornalismo, o jornalismo marrom. Foi um caso muito interessante porque a ditadura de Fujimori, especialmente com Montesinos, o homem forte da ditadura, utilizou o jornalismo marrom, o jornalismo de escândalos, como uma arma política para desprestigiar e aniquilar moralmente todos seus inimigos. Ele contratava jornalistas, pagava órgãos de imprensa para aniquilarem moralmente os adversários e críticos. Isso sujou terrivelmente o jornalismo, deu ao jornalismo uma dimensão de canalhice, vil. Em nenhuma das experiências ditatoriais que o Peru viveu, o jornalismo se tornou tão eficaz para silenciar e liquidar a oposição sem fazer política, aparentemente, apenas descobrindo que os opositores eram escandalosos, ladrões, pervertidos... Enfim, toda uma série de calúnias vis impregnava quem se atrevia a enfrentar e criticar o regime. Esse é um dos temas centrais da história. Ao mesmo tempo, também está o outro lado, como o jornalismo, que pode ser algo vil e sujo, de repente pode se tornar um instrumento de liberação, de defesa moral e cívica de uma sociedade. Essas duas faces do jornalismo, que não aparecem só no Peru, mas em todos os países e sociedades do mundo, são um dos temas centrais de Cinco Esquinas.

P. O senhor agora sofre o ataque do jornalismo canalha.

R. Das fofocas jornalísticas, sim, sim.

P. Como se sente a respeito?

R. Sabia que com essa nova relação haveria certa repercussão jornalística, mas nunca na vida imaginei que teria essa repercussão continental, que fosse haver uma especulação jornalística semelhante a essa em torno disso. Tanto para Isabel [Preysler] como para mim têm sido muito, muito pesado nesses últimos meses. Bom, é uma realidade do nosso tempo, me permitiu conhecer um pouco melhor um ofício que é o meu também. O jornalismo tem sido central na minha vida, tem sido companheiro da minha vocação literária desde que era praticamente um menino, porque comecei a fazer jornalismo quando ainda estava no colégio, e nunca deixei de fazer até hoje. Claro que conheci principalmente a melhor face do jornalismo. Agora me aconteceu de viver a pior, e comprovar que o jornalismo como espetáculo não está presente apenas no jornalismo especializado no escândalo, na fofocaria, mas que o jornalismo mais sério se contamina também por essa necessidade contemporânea de que o jornalismo seja entretido, divertido; que a primeira missão já não seja informar, mas sim entreter os leitores, ouvintes e espectadores. Acho que é uma realidade do nosso tempo. E sem me dar conta isso impregnou muito a história que escrevi, nunca tinha pensado que fosse uma história sobre o jornalismo nem sobre essa derivação do jornalismo moderno.

O escritor em seu apartamento em Nova York.
O escritor em seu apartamento em Nova York.Fernando Sancho

P. O livro foi impregnado pela realidade que foi sucedendo ao senhor mesmo.

R. Pela realidade vivida, sim, sim. Não apenas nos aspectos negativos, também nos aspectos positivos da experiência que vivi, aspectos sumamente empolgantes, rejuvenescedores, sem dúvida.

P. Tudo isso te feriu?

R. Não, ferido não! Me surpreendeu muito e me vi muito desconcertado com essa transgressão da privacidade. Me mandaram os recortes de uma revista em que tinham me fotografado cortando o cabelo em uma barbearia, saindo desse edifício para ir caminhar pelas manhãs. Nunca descobri que tinha um fotógrafo! Saio às 6h da manhã, e a essa hora já havia um fotógrafo que depois entrou na barbearia onde eu estava cortando o cabelo. É surpreendente esse ramo do jornalismo que praticamente não tem nada a ver com o jornalismo de informação, de comentário, o jornalismo que tem a vocação de defender ou criticar certas coisas. Não, não. Trata-se de entrar na privacidade por essa curiosidade insana que a privacidade das pessoas desperta em muita gente, talvez em todo mundo, desde a pessoa mais culta até a mais inculta.

P. A privacidade de toda a sua família.

R. Seguiram absolutamente toda a família, todo mundo teve que pagar um pouco por coisas que eu fazia. Sinto muito, mas não havia maneira de evitar, e acho que na vida atual não há maneira de evitar. Uma das características da vida atual é que a privacidade desapareceu, já não existe, há uma tecnologia capaz de transgredir a privacidade em todos os níveis. Isso tem efeitos econômicos, políticos, culturais, mas uma das consequências é que o que entendíamos por privacidade, pura e simplesmente, não existe mais.

P. De certo modo, veio ao seu encontro o mesmo que o senhor anunciava em seu livro A Civilização do Espetáculo.

R. Bom, pois coube a mim vivê-la! É um livro que escrevi porque realmente acho que é um problema do nosso tempo, e logo certas circunstâncias da minha vida privada fizeram com que vivesse de dentro, do coração mesmo, A Civilização do Espetáculo.

Escrever é um refúgio extraordinário para encontrar a paz, a calma, em momentos de grande desassossego, de incertezas.

P. Os livros, escrever, servem para te dar serenidade em momentos assim?

R. Sim, muito. Escrever é um refúgio extraordinário para encontrar a paz, a calma, em momentos de grande desassossego, de incertezas. Sim, escrever me prende no mundo que estou inventando, me arranca da problemática pessoal e me faz viver a fantasia. Enquanto estou escrevendo me sinto invulnerável; quando deixo de escrever, as coisas mudam [risos]. O que não gostaria é de passar uma ideia falsa e te dizer que essa época para mim tem sido desastrosa. Por uma parte tem sido muito complicada e muito difícil por muitíssimas razões, mas, por outra, tem sido uma época maravilhosa da minha vida, e gostaria que ficasse muito claro. Nunca tive a empolgação, o entusiasmo, as fantasias que tenho hoje em dia, em uma idade em que geralmente já não há tantos entusiasmos [risos].

P. Dizia que com essa idade queria invernar.

R. Quem iria dizer que estaria vivendo uma grande paixão e organizando minha vida como se fosse viver eternamente!

P. Quem sabe viva eternamente escrevendo.

R. [Risos]. Tomara!

P. Como ficou o texto de Cinco Esquinas?

R. Como todos os livros que escrevi, salvo talvez A Casa Verde, em que acho que há uma gula exagerada com a prosa, com o meio, com o instrumento. Em todos os meus livros a prosa trata de ser funcional, estar a serviço de uma história, e não a história a serviço de uma demonstração de tipo retórico. Não. Salvo em A Casa Verde, talvez aqui se possa dizer que a história serve tanto à forma como a forma à história. Em Cinco Esquinas, como nos romances anteriores, a prosa trata de ser invisível, de desaparecer atrás da história que conta para que seja a história que pareça viver por si mesma. O método flaubertiano, que sempre foi o meu. Mas tinha um problema para resolver: a diversidade que a sociedade peruana tem; os peruanos de uma classe social elevada, os da classe média e os de um meio popular não falam exatamente da mesma maneira, há muitas diferenças e modismos. Há uma natureza da linguagem que expressa claramente essa situação social, econômica ou cultural, é algo que tive muito presente e, ao mesmo tempo, evitei muito ser folclórico, que a maneira de falar fosse ao final mais importante do que o próprio personagem, que se destacasse solta do próprio personagem. Não, é algo sobre o qual sempre fui contra e acho que minha geração foi uma geração de escritores que reagiu muito contra isso, a exploração da cor local, contra essa espécie de strip-tease linguístico que tornava toda literatura localista. Foi um trabalho de linguagem para que fosse o mais invisível possível, mas que, ao mesmo tempo, servisse muito para mostrar as diferenças sociais, econômicas e culturais de uma sociedade tão complexa e diversa como a peruana.

P. As pessoas podem sentir a tentação de pensar que essa excursão erótica que também constitui o romance é uma novidade. Claro, não é, porque já existe Os Cadernos de Dom Rigoberto, Elogio da Madrasta, Travessuras da Menina Má...

R. Carmen Balcells, pobre, una amiga tão querida, foi uma das primeiras a ler Cinco Esquinas no manuscrito, e me perguntou: “As cenas eróticas foram escritas recentemente ou você as escreveu antes de...?” [risos]. Disse que essa era uma pergunta insolente que eu não iria responder. [Risos].

P. Nem agora também.

R. [Risos]. Não, também não.

Vargas Llosa, em uma foto de infância com a sua mãe.
Vargas Llosa, em uma foto de infância com a sua mãe.

P. Mas é fato que sempre teve o erotismo como uma linha. Travessuras da Menina Má, por exemplo.

R. Quando estava no segundo ou terceiro ano da universidade trabalhei como ajudante de bibliotecário no Clube Nacional, o clube da oligarquia peruana naquela época, e lá descobri o erotismo literário em sua vertente francesa. Li porque havia uma coleção maravilhosa de literatura erótica francesa. Em algum momento, um bibliotecário havia adquirido, entre outras coisas, toda a coleção dos mestres do amor, dirigida por Apollinaire, com prólogo dele, com muitos livros anotados por ele. Nessa época, assim como os grandes mestres do erotismo do século XVIII, eu cheguei a acreditar que o erotismo era a força revolucionária principal de uma cultura, de uma época, e que através do erotismo era possível transformar uma sociedade tão profundamente como com uma revolução política. Era uma grande ingenuidade, mas sempre acreditei que o erotismo, de alguma forma, expressa profundamente as limitações, as liberdades, as repressões que uma sociedade vive. Sim, o erotismo está muito presente dentro do que é uma literatura que tem muita fascinação sempre pelo que é a luta contra as repressões, os prejuízos, contra essa deformação do ser humano por razões religiosas ou ideológicas. Sim, acredito que a liberdade se expressa também na cama, que a cama é onde se manifesta o grau de liberdade que existe, assim como o grau de repressão, de limitação dos instintos, dos desejos que toda uma sociedade expressa.

P. Vai completar 80 anos.

R. Não me lembra, por favor. Se é meu amigo, não sei porque me lembra! [Risos].

P. É interessante constatar que nunca deixou de trabalhar.

R. Nem vou parar, nem vou parar!

P. Lembra-se de ter tido na vida algum momento de queda, alguma interrupção?

R. Sim. Houve momentos de grande depressão que eu superei rapidamente e em grande parte graças à minha vocação, que sempre foi a minha maior defesa contra o desânimo, a depressão. Pouco tempo atrás, vi em Nova York uma bela exposição sobre Hemingway. É impressionante observar como existe, por um lado, a face pública desse personagem, um aventureiro, que fazia boxe, caçava, pescava, corria todo tipo de risco, dava a impressão de ser um homem que vivia a vida com toda a sua plenitude. E, na verdade, você percebe que isso tudo era uma fachada, que por trás disso havia um homem perdido, que sofria depressões, desânimo, que buscava na bebida algum tipo de compensação que não conseguia encontrar, que a luta contra a impotência, contra a perda de memória, foi um drama em seus últimos 10 anos de vida e que, no final, acaba se matando, derrotado por todos esses demônios dos quais nunca conseguiu se libertar. A partir de um certo momento, a literatura já não tem mais serventia para ele, já não o defende, já não o redime. Espero que isso nunca aconteça comigo. Ao mesmo tempo, temos de aceitar a morte. Não faz sentido se rebelar contra o inexorável, mas é muito importante chegar vivo até o final, não morrer em vida, que é o espetáculo mais triste que um ser humano pode apresentar, perdendo as ilusões, transformando-se em um ser passivo. Há muitos casos assim, não só de escritores, e esse sempre me pareceu ser o espetáculo mais lastimável. Eu gostaria de chegar vivo até o final. Lembro-me da madrugada em que me anunciaram que eu recebera o Prêmio Nobel de Literatura. Naquele momento, eu pensei: “Não vou deixar que esse prêmio me transforme em uma estátua, em uma espécie de boneco de papel-machê. Continuarei vivo até o fim, agindo e escrevendo com a mesma liberdade que escrevia antes de ganha-lo”. Há essa ideia, de que depois de receber o Prêmio Nobel você vira uma estátua e acaba morrendo em vida. Pois bem: isso não aconteceu e espero que nunca aconteça comigo. E espero que a morte chegue como uma espécie de acidente...

P. Como dizia Alberti: no meio de uma conversa.

R. É isso. Esta me parece ser a forma ideal de morrer, com uma vida que tenha sido intensa e maravilhosa até o fim.

P. Em 1990, deu-se um acontecimento público importante, que foi a sua derrota nas eleições no Peru. Na ocasião, o senhor deu algumas declarações à Paris Review que me chamaram muito a atenção: “Eu me recuso a admitir a possibilidade de que já tenha deixado para trás os meus melhores anos, e nunca o admitiria, mesmo que isso viesse a contrariar as evidências”. O jornalista então pergunta por que o senhor escreve, e vem a seguinte resposta: “Escrevo porque sou infeliz. Escrevo porque é uma maneira de combater a infelicidade”.

R. Não é justo dizer que sou infeliz. A vida foi muito generosa comigo, me deu coisas maravilhosas, como, por exemplo, poder me dedicar a escrever, poder dedicar a minha vida àquilo de que eu gosto, que é o melhor que pode acontecer a uma pessoa. Tive muitas experiências maravilhosas. Não sou infeliz. O que acontece é que só uma pessoa tola poderia estar sempre feliz. É impossível ser feliz sempre, mas acredito, sem dúvida, que vivi mais momentos de felicidade do que momentos de dor e sofrimento. Creio que chego aos 80 anos em uma situação de vida maravilhosa, com vitalidade, aberto para o mundo, vivendo experiências riquíssimas que me rejuvenescem e que, acima de tudo, me transmitem uma grande força para realizar projetos como se não houvesse nenhum limite pela frente. É a melhor coisa que pode acontecer a uma pessoa.

Não poderia julgar minha obra em comparação com outros, não tenho distância com minha obra, minha obra é o que eu sou e não sei exatamente como sou.

P. Com o passar dos anos, seus livros se tornaram cada vez mais clarividentes, mais aventureiros, tantos os de ficção como os de não-ficção.

R. Talvez agora eu possa viver mais aventuras com a imaginação, a fantasia, do que na realidade. Tenho certas limitações impostas pela idade, mas a verdade é que, apesar disso, também procuro não ficar imóvel, seja intelectualmente, seja fisicamente. É importante se movimentar. Estou sempre me movimentando e continuarei assim até não poder mais.

P. O que eu estava querendo dizer é que em A Cidade e os Cachorros, em A Casa Verde e principalmente em Conversa no Catedral, o autor Mario Vargas Llosa analisa ou enxerga a realidade com certa melancolia, como se afirma no próprio começo de Conversa no Catedral. E que há nesses livros uma espécie de luta do autor para contar algo por que ele não gosta da realidade que vê diante dos seus olhos. No entanto, depois, o senhor esteve na Amazônia, no Congo, foi atrás de Paul Gauguin... Buscou na aventura de outros a sua própria aventura.

R. Sim, isso é verdade. Busquei na aventura de outros a minha própria aventura, experiências que com certeza eu gostaria de ter vivido. Vários dos personagens históricos que aparecem em meus romances são personagens que eu, de alguma maneira, gostaria de ter encarnado. Não apenas os bons, mas também os maus, o que significa viver um pouco no limite, para além do limite, rompendo com os limites. É um tipo de personagem que sempre me fascinou na literatura, e meus próprios personagens, com certeza, ecoam essa atitude. Mas a grande aventura de minha vida foi a literatura, sem nenhuma dúvida, não apenas a que eu escrevo, mas também a que li. A leitura, uma experiência fundamental para mim, me fez viver de uma maneira maravilhosa, e é por isso que vejo com uma certa angústia a possibilidade de a literatura, não digo desaparecer, mas se empobrecer cada vez mais, atingindo cada vez menos pessoas. A leitura foi uma fonte tão grande de gozo, de prazer, justamente por se poder viver as vidas cheias de aventuras, que, se a leitura passasse a ser, no futuro, uma atividade de minorias, de catacumbas, uma fonte fundamental da vida se secaria.

P. Como aqueles livros iniciais, tão densos e preocupados com a realidade – principalmente Conversa no Catedral, A Cidade e os Cachorros e A Casa Verde--, o influenciaram como ser humano? Que lugar tiveram na sua formação como pessoa?

R. São livros que me fizeram amadurecer muito, entender melhor o mundo em que eu vivia. Essa é uma das funções da literatura. Tanto a que se escreve quanto a que se lê fazem com que você se localize muito melhor no mundo. Não digo que lhe deem segurança, porque, às vezes, acabam criando muitas incertezas, mas eu acredito que entendo muito melhor o mundo graças àquilo que li e àquilo que escrevi do que antes de ter lido ou escrito certas coisas. Isso lhe abre uma certa perspectiva em relação à realidade, à experiência humana; mas também em relação à vida política e à sociedade, que não se traduz necessariamente em um conformismo, mas sim em uma compreensão maior, mais precisa. E talvez, também, uma intransigência menor do que a que se tem quando jovem diante dessa coisa complexa, diversificada, que são as relações humanas. Espero que tenha se refletido naquilo que escrevo a minha atitude diante da vida. Hoje eu sou menos intolerante do que quando era jovem, talvez por ver que as coisas no meu país, na América Latina, são hoje menos terríveis do ponto de vista social e político do que eram quando eu era jovem. Quando eu era jovem, tinha a sensação de que não havia saída, e esse desespero está muito presente em A Cidade e os Cachorros; talvez em Conversa no Catedral também haja um pessimismo bem mais profundo, que não nutro hoje em dia. Quando deixei o Peru, em 1958, ele existia, sim, e eu queria fugir de uma espécie de prisão perpétua da qual, se não escapasse, jamais me tornaria escritor, jamais poderia ter nenhuma possibilidade de encontrar a felicidade. Não é a mesma postura que tenho hoje. Houve e há ainda um avanço no Peru e na América Latina. Estamos muito longe do ideal, é claro, mas, sem dúvida alguma, houve um progresso, e acredito que no mundo todo também.

P. Pode-se perceber essa melancolia em Peixe na Água, cuja escritura coincide com o momento em que o senhor tenta voltar para o Peru e no entanto...

R. ... é porque Peixe na Água é um livro que testemunha um fracasso. Houve uma oportunidade, uma mobilização de muitas e muitas pessoas para fazer um esforço de modernização do país, e nós fracassamos. Fracassamos em uma campanha eleitoral, mas isso não significa nada, pois, pensando mais amplamente, o Peru avançou. Muitas das ideias defendidas por nós que embarcamos nessa aventura do Movimento Liberdade e na Frente Democrática prosperaram. Se não exatamente como havíamos imaginado, elas foram sendo aceitas pouco a pouco pela própria sociedade; a sociedade avançou naquela direção. Houve progressos inquestionáveis. Hoje se vive muito melhor, no Peru, do que na época da ditadura. O que acontece no Peru é o mesmo que acontece na maior parte dos países da América latina. Não se deve esquecer os enormes problemas existentes, mas é preferível haver Governos democráticos, ainda que corruptos, a termos ditaduras, que, além de também serem sempre corruptas, são, além disso, violentas e sanguinárias. É preferível ir avançando pouco a pouco e abrir mão da ideia da utopia social, posto que essa ideia só nos trouxe guerras civis, repressões violentas e Governos ditatoriais. Há um avanço nesse sentido na América latina e no mundo, apesar de terem surgido também enormes problemas e desafios. Isso é a vida; a vida será sempre assim, e nada vai mudar. E temos também a literatura, que acredito ser a melhor maneira de manter a esperança, o espírito crítico, um refúgio maravilhoso para quando nos sentimos sozinhos, deprimidos, desanimados, derrotados. A literatura nos redime, nos salva. É preciso defende-la, para que não acabe desaparecendo.

O escritor durante a entrevista.
O escritor durante a entrevista.Fernando Sancho

P. Percebe-se em muitos de seus textos uma atitude bastante flaubertiana, que estaria relacionada, segundo o senhor, à sua falta de talento, que o senhor teve de lutar muito para conseguir...

R. É uma das tantas coisas que eu devo a Flaubert, esse fato de ele ter demonstrado que, se você não tem um talento natural, se você não nasceu gênio, você pode, mesmo assim, chegar a ser um bom escritor, à custa de perseverança, obstinação e esforço. Essa é a grande lição de Madame Bovary, um romance escrito por um homem que, ao mesmo tempo em que escreve, vai conquistando e construindo milímetro a milímetro a sua genialidade, com um esforço gigantesco, à custa de muita vontade, obstinação e trabalho. Esse é o grande ensinamento. Flaubert era muito pessimista, um cético terrível, mas mostrou para nós que a genialidade pode ser construída quando você não a tem. Uma lição absolutamente fundamental para mim.

P. Os primeiros livros maiores parecem ser também um exercício de estilo, como para demonstrar a si mesmo que o senhor era capaz de fazê-los.

R. Um esforço enorme. Trago sempre comigo a ideia do romance total, o romance como uma obra de arte em que a quantidade é um fator essencial para a qualidade e que quanto mais níveis da realidade se expressam em um romance, maior é a possibilidade de que esse romance seja melhor. Sim, trabalhei muito e acredito que isso está bastante presente em tudo que escrevi. Mas não existem regras fixas na literatura, e as exceções são tão importantes como as regras. Pode haver uma obra que mostre apenas um fragmento minúsculo da realidade, mas que o faz com tanto talento, com tanta beleza e intensidade, que se torna uma grande obra. A Metamorfose é um livro absolutamente genial; ou, ainda, O Velho e o Mar. São pequenas histórias, mas que têm essa capacidade de simbolizar a condição humana, aquilo que existe de melhor no ser humano; ou de pior. Acredito, sim, que o romance total é um ideal a ser perseguido, mas não é o único na literatura. Há pequenas obras primas que são também um modelo.

P. Seriamente a esta altura continua acreditando que não tem talento?

R. Não tenho talento natural, me dá trabalho escrever, cada vez mais, suponho que porque o sentido autocrítico tenha se aguçado com os anos e a prática, mas me dá um trabalho enorme. Praticar a literatura tantos anos não me deu mais facilidade, mais segurança, absolutamente; quando começo uma história tenho a mesma insegurança, essa espécie de indefensabilidade que sentia quando escrevia meus primeiros textos. Isso não mudou, felizmente, porque acredito que esse esforço exige uma convicção, uma paixão que espero que nunca me acabe. Para mim nunca foi algo mecânico escrever, nem sequer um texto pequeno nem os artigos que escrevo, sempre me dedico de maneira integral, total, àquilo que trabalho.

P. Em algumas de suas declarações e em textos escritos por você há uma rivalidade entre dois grandes livros seus, Conversa na Catedral e A Guerra do Fim do Mundo. Às vezes parece que entre os seus livros que não queimaria estaria Conversa na Catedrale outras vezes A Guerra do Fim do Mundo.

R. Estão entre os que mais deram trabalho para escrever, muito difíceis de escrever por diversas razões, pela história, por onde estavam situadas, pelo conteúdo histórico, custaram-me um esforço enorme. É muito difícil para um escritor dizer qual de seus livros salvaria porque todos representaram um período de vida, de dedicação, de entrega e de esperanças, é como pedir a alguém que escolha qual de seus filhos salvaria ou mataria. Não dá para decidir com objetividade, é impossível; quando cito esses livros é simplesmente pelo esforço que me custaram e pelo tempo que dediquei a eles, o que não quer dizer que sejam os melhores que escrevi, não necessariamente.

P. Seria legítimo pensar que o tanto tempo como a realidade afetaram esses livros?

R. Quando foi lançado, Conversa na Catedral tinha muito poucos leitores, é a realidade; alguns críticos o elogiaram, mas muitos não, acharam que é excessivamente sombrio, difícil, que exige muito esforço do leitor. Entretanto, a alegria que me deu é que foi um livro que foi conquistando leitores pouco a pouco e que é um romance que está vivo porque é sempre reeditado, até os críticos já têm uma opinião favorável. Me alegro muito, sem dúvida nenhuma é um dos livros que mais me deu trabalho escrever e no qual, de princípio, fiquei trabalhando como às cegas, sem saber como ia poder integrar toda essa matéria anedótica que tinha. Por isso digo que, se tivesse de escolher um, talvez fosse ele.

P. Poderíamos pensar que é um livro herdeiro desse momento literário que há em torno de sua escrita.

R. Certamente, os livros refletem também a época em que são escritos. Há um momento de idolatrias na América Latina, a dos escritores latino-americanos com as formas, precisamente para distinguir-se dos escritores anteriores que desdenhavam tanto da forma e pensavam que o tema era o que determinava o sucesso ou fracasso de uma história. Minha geração descobre que não, que é a forma o que determina o sucesso ou o fracasso de uma história. Esse encanto com a forma, com a linguagem, com a estrutura, a organização do tempo de uma história, está muito refletido em A Casa Verde. De maneira nenhuma rejeito esse romance, mas é um romance no qual acredito que a forma é um personagem, um tema da história, e é o único caso entre todas as coisas que escrevi em que se pode dizer isso.

Nunca imaginei que essa nova relação teria essa repercussão. É uma realidade do nosso tempo, me permitiu conhecer melhor um ofício que é o meu também”

P. Acredita que ninguém sai ileso de um grande romance? Uma frase que não sei se é sua ou de Hemingway.

R. No sei se é minha, gostaria que fosse, parece-me muito bonita, é a pura verdade. Acredito que ninguém sai ileso de um romance. Ler Dom Quixote, Os Miseráveis,Guerra e Paz, Madame Bovary te transforma… foram experiências absolutamente fundamentais. Antes certamente ter lido A Condição Humana, de Malraux, um livro que acredito é muito injustamente descuidado, considerado menor, acredito que é um dos grandes romances do século XX, já o li várias vezes. E não só romances, tenho lido livros de crítica; ensaios como Rumo à Estação Finlândia, de Edmund Wilson, li duas ou três vezes e acredito que me marcou enormemente pela extraordinária vitalidade que tem. É um ensaio sobre como nasce a ideia socialista, no que se transforma, que fenômenos sociais e culturais gera. É um livro em que as ideias são como personagens, seres de carne e osso que vivem aventuras, têm efeitos sociais, políticos, maravilhosamente escrito. Me marcou muito. Também certos ensaios de Bataille, como A Literatura e o Mal, um livro que li em estado de transe porque me revelou um aspecto da literatura que eu acredito que existe e que Bataille viu maravilhosamente: que na literatura se expressa algo que só pode ser expresso na literatura. Ele dizia que esses fundos reprimidos que permitem a vida em sociedade, tudo aquilo que se tivesse trânsito livre provocaria hecatombes, catástrofes, faria que nos matássemos todos, certos instintos, desejos que estão aí e não podemos erradicar mergulhados no fundo de nossa personalidade, encontram na literatura um caminho privilegiado para expressar-se. Me pareceu tão absolutamente exato que tenho certeza de que esse ensaio me enriqueceu, deve se expressar no que escrevo, ainda eu mesmo não esteja consciente de como.

P. Durante seus primeiros escritos sobre suas influências literárias mencionou sempre os mesmos, Faulkner, John Dos Passos…

 R. …seria muito injusto não os mencionar.

P. Quero dizer que foi muito coerente, inclusive Sartre, a quem abandonou, mas que continua estando aí. Toda essa influência já se diluiu e agora existe um estilo Vargas Llosa? Sente-se o titular de um estilo?

R. Não, absolutamente, e se tivesse, não saberia dizer em que consiste. Borges diz que quando você se olha no espelho não sabe como é seu rosto. É muito exato, quando você escreve não sabe como escreve, quem sente são os leitores, os críticos, podem estabelecer diferenças, semelhanças, mas você mesmo é totalmente incapaz de fazer isso. Não poderia julgar minha obra em comparação com outros, não tenho distância com minha obra, minha obra é o que eu sou e não sei exatamente como sou.

P. Acredita que já fez o que tinha de fazer?

R. Não. Ainda não, e espero continuar fazendo[risos], espero que meu melhor livro seja o próximo que escrever, que não esteja atrás, mas sim à frente, que seja um desafio e que a morte me pegue escrevendo meu melhor livro. Esse é meu grande sonho.

P. Escreveu um livro fundamental, Peixe na Água. As duas situações que descreve nesse livro, sua juventude e sua aspiração a ser presidente do Peru, terminam da mesma maneira, em uma viagem a Paris. Agora mudou de vida, terminou um livro, morreu uma de seus grandes amigas, Carmen Balcells…

R. … e não somente amiga, uma pessoa que foi fundamental em meu trabalho e em minha vocação. foi fundamental na vida cultural e literária de minha língua, da Espanha e da América Latina, e a quem estou certo de que, no futuro, teremos de prestar muitas homenagens.

P. Termino. Sente como que está no meio ou prestes a fazer uma dessas viagens que narrava em Peixe na Água?

R. Estou viajando, acredito que já empreendi a viagem, eu a estou fazendo, minha vida privada sofreu uma espécie de transformação muito profunda, sou imensamente feliz porque é uma experiência que me enriqueceu extraordinariamente e o único lamento é que a felicidade se consiga muitas vezes causando infelicidade a seu redor. Certamente que lamento isso muitíssimo, mas me sinto muito esperançoso, realmente muito rejuvenescido, e tenho muita esperança de que no futuro isso tenha um efeito não só em minha vida privada, mas também, e fundamentalmente, em meu trabalho de escritor.

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo

¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?

Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.

¿Por qué estás viendo esto?

Flecha

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.

Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.

En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.

Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_