Animais, perdoem-me por comê-los (e sentir prazer ao fazer isso)
Foie gras, "nunca vi, nem comi, eu só ouço falar". Mas como posso eu, uma comedora inveterada de hambúrgueres, defender a proibição da iguaria?
Minha primeira reação quando o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, proibiu a venda de patê de fígado de ganso (o foie gras) foi a de contentamento. Primeiro, porque não me afeta —nunca experimentei a iguaria. E não só a ação coíbe os maus-tratos às pobres aves, como seria ainda um tapa na cara da hight society paulistana. "Bem feito pra esses odiadores de corredores de ônibus e ciclovias", pensei. Logo depois, porém, numa epifania menos preconceituosa e hipócrita, cheguei à conclusão de que não poderia levantar essa bandeira. Afinal, como posso eu, uma carnívora inveterada, apoiar a medida? A verdade é que eu admiro e respeito os vegetarianos. Vocês, vegetarianos, são mais fortes que eu. E essa é a crônica de uma história de fracassos.
O ano era 1989 —e eu me lembro bem, porque naquela época não tinha carne todo dia na panela. Ganhei um pintinho (fofo como um Minion) e experimentei a mais pura forma de amor que uma criança pode sentir por seu bichinho. "Vou te chamar de Filomena", disse. Filó e eu éramos inseparáveis. Até que, meses depois (quando Filó já era uma galinha), ao voltar da escola um dia, noto um silêncio estranho na casa. Esfomeada, ignorei a ausência de cocóricós e corri para ver o que tinha no almoço. "Frango de novo". Mas aquele não era um frango comum. A carne era mais escura e saborosa. De repente, o duro golpe da realidade: "Filó!!!". Minha mãe, diante do meu desespero, tentou me conformar: "Ela teve uma vida boa, filha... Foi morte natural, não tinha o que fazer", disse. Constatei então que seu sabor era melhor porque Filó, ao contrário das galinhas das granjas, tinha sido feliz e amada. Continuei a comer.
Meses depois, mais um trauma. Na ceia de Natal, me deparo com um leitão assado sobre a mesa. "O Horror! O Horror!", gritei, ao ver o coitado estatelado com uma fruta qualquer na boca. Minha mãe, novamente, se apressou em me acalmar: "Mas filha, é do porco que vem o bacon, sabia?". Poxa, justo o bacon? Cedi novamente.
Um dia eu hei de parar de comer carne. Até lá, tento fazer a minha parte para fazer do mundo, senão um lugar melhor, um pouco menos babaca
Já adulta e entediada num domingo chuvoso, encarei o filme Conheça sua Carne (Meet your Meat), aquele horripilante documentário da PETA. Tomada por uma repulsa sem precedentes, decidi, determinada: "Isso acaba agora!”. Pizza de calabresa? Não, obrigada. X-burguer? Nem pensar! Mas temaki pode, né? Não, e tira isso de perto de mim! Mas a vida não dá trégua e, quase um semestre vegetariano mais tarde, fui recebida na casa da família (no Sul) com um churrasco. E não era qualquer churrasco. Meu pai havia passado a manhã preparando uma costela bovina. Respirei fundo. "Me passa isso logo". Foram três pratos.
Sim, a indústria da carne é cruel. E, como um fumante diante de um cigarro, repito para mim mesma que um dia eu hei de parar (provavelmente, quando o sabor da soja se igualar ao da picanha). Até lá, tento fazer a minha parte. Cedo o lugar no metrô para idosos e gestantes (e quando não sei se é mesmo uma barriga de gravidez, levanto à francesa para não ofender ninguém). Não apoio nem reproduzo os discursos de Bolsonaros e Cunhas... Também não vou ao Facebook lamentar as mortes do Game of Thrones, nem publico selfies na academia com legendas do tipo “dormir é para os fracos”. Separo meu lixo e me esforço para ser gentil mesmo durante a TPM. Até comemoro quando as amigas emagrecem. Eu sei que é pouco. Mas do meu jeito torto eu tento, todos os dias, senão fazer do mundo um lugar melhor, pelo menos deixá-lo um pouquinho menos babaca.
Atualização (ou sobre a vida e suas ironias): Dois anos após escrever este texto, em 2017, a autora parou de comer carne e tornou-se ovolactovegetariana.
Marina Novaes é jornalista no EL PAÍS Brasil. Não tem nenhum livro publicado, mas é gente fina.
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