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Franklin Martins: “Se Lula não tivesse sido eleito em 2002, o Brasil tinha explodido”

Ex-secretário lança obra em que revisita canções para recontar história da República

Antonio Jiménez Barca
O jornalista Franklin Martins.
O jornalista Franklin Martins.Divulgação

Em 1997, o jornalista político Franklin Martins (Vitória, 1948, ex-ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social do Governo Lula, antes ativista político e muitos anos antes guerrilheiro contra a ditadura) decidiu postar na Internet —era o começo da Internet— uma página com seus textos políticos. Para ilustrar alguns deles, começou a postar trechos de discursos de grandes líderes brasileiros em peças históricas de áudio. O objetivo era que as novas gerações conhecessem as vozes de Getúlio Vargas e João Goulart, entre outros. Ao mesmo tempo, incluiu canções brasileiras com história, ou que contivessem histórias, ou que falassem de algum fato histórico do Brasil. Pouco a pouco se envolveu em um projeto ao qual já dedicou mais de 15 anos, em ritmos diferentes, e que nunca teve consciência de ter decidido empreender (“É curioso. A maioria das coisas a vida decide para a gente"): rastrear, encontrar, registrar e tentar decifrar as canções que retratam a história do Brasil, músicas que, desde 1902, ano do primeiro registro sonoro realizado no país, relatam fatos e funcionam como autênticas crônicas jornalísticas de um tempo determinado. Para isso, entrou em contato com especialistas, compiladores, estudiosos e colecionadores de todo o país. Algumas descobertas o levaram a outras. O resultado são mais de 1.100 canções, divididas em três grandes volumes, primorosamente editados, intitulados “Quem foi que inventou o Brasil? A música popular conta a história da República” (Ed. Nova Fronteira). O primeiro volume aborda o período 1902-1964; o segundo vai desse ano até 1985. O terceiro abrange de 1985 a 2002. Todas as músicas podem ser ouvidas no portal www.quemfoiqueinventouobrasil.com. Martins poderia ter continuado a compilar as canções até agora, mas explica que precisava de um limite temporal para poder acabar o livro e que o livro não acabasse com ele.

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P. Por que no Brasil há essa tradição de cantar fatos como se fossem uma crônica?

R. O que consolida esse hábito da crônica musical não só sobre a política, mas também sobre outros aspectos (costumes, cultura, economia, hábitos sexuais), é o Carnaval: 40% das músicas gravadas no Brasil na década de 30, eram músicas para Carnaval. O que eram as músicas de Carnaval? Era exatamente um teatro de revista. Só que, ao invés de ser em um teatro, era na rua, ao invés de ter uma separação entre os atores e o público, todo mundo estava misturado. Mas a característica de passar em revista os acontecimentos do ano anterior eram as mesmas. Nos outros países, há a música militante, ou seja, a favor de alguma coisa, para despertar entusiasmo, ou para estigmatizar o adversário. Ela não tem um caráter de crônica. No Brasil, nós tivemos músicas assim na época da ditadura, mas são momentos. A permanência é a crônica, e geralmente a crônica contra.

P. No primeiro volume, há também canções sobre a II Guerra Mundial ou sobre a Guerra Civil espanhola...

R. Guerra na Espanha, uma moda de viola. Essa música é belíssima. Sobre a guerra, sobre os bombardeios das cidades, é uma música fortíssima. Ela é de 37, 38, composta na época por uma dupla caipira, chocada com a guerra. Fala do fuzilamento em massa, da destruição de cidades...

P. Como era no tempo da ditadura?

Estudantes colocam faixa na PUC-SP em 1977.
Estudantes colocam faixa na PUC-SP em 1977. Acervo Iconographia

R. Até 68 você ainda tinha censura nas músicas. Por exemplo, as duas músicas que estão no livro na morte do estudante Edson Luiz, em 68, foram censuradas. Só foram gravadas anos depois, mas você tinha uma liberdade. Depois, de 68 até 76, a censura é brutal. Mas uma característica da música naquele período é que os artistas encontraram meios de dar o seu recado. Muitas vezes as músicas eram censuradas. O Taiguara teve todas as músicas censuradas naquele período. O Chico Buarque, por exemplo, fez várias músicas com pseudônimo, e a censura não percebeu que a musica era dele. Havia o que se chamava de letras duplex: a música falava de uma coisa, mas você podia fazer uma leitura política. Uma muito famosa é Apesar de você, do Chico Buarque.  Tem uma outra do Luiz Ayrão, que inicialmente se chamava 13 anos, quando a ditadura completou 13 anos: “Eu não aguento mais, eu vou para o cemitério, eu vou pra qualquer lugar, mas eu vou acabar com você não adianta”. E aí foi censurada. Ele mudou o nome da música, apresentou com o novo nome de Divórcio, porque tinha sido aprovada a lei do divórcio no Brasil. Fazia sentido. A censura não percebeu e a música passou.

P. O livro termina em 2002, mas continuam fazendo músicas assim...

R. No terceiro volume, 60%, 70% dele é rap. A música sobre política nesse momento. O massacre do Carandiru, do Carajás, massacre de não sei o que.... Ela tem um caráter que eu chamo de bronca social.

P. A bronca social em geral.

É uma bronca contra o sistema. Não é contra isso ou aquilo. É o seguinte: esse sistema não me respeita, esse sistema não me dá oportunidade, esse sistema só me trata na porrada, é racista, ele me bota na cadeia, ele me enche de porrada na rua, ele me mata se for necessário, eu não aguento mais esse tipo de coisa, eu vou brigar contra isso

R. Geral. É uma bronca contra o sistema. Não é contra isso ou aquilo. É o seguinte: esse sistema não me respeita, esse sistema não me dá oportunidade, esse sistema só me trata na porrada, é racista, ele me bota na cadeia, ele me enche de porrada na rua, ele me mata se for necessário, eu não aguento mais esse tipo de coisa, eu vou brigar contra isso. Não é uma coisa anárquica, porque ela ter um objetivo de bater de frente com o sistema, mas ela é uma bronca social e uma revolta política crescente. Para mim é uma coisa evidente: se o Lula não tivesse sido eleito em 2002, o Brasil tinha explodido. Não tenho dúvida nenhuma, você sente! Não é só as músicas das quebradas, da periferia. Todos os caras que fazem música sobre política, inclusive musica sertaneja, Chitaozinho e Chororó, é isso: "o Brasil é um trem desgovernado, atropela o povo dele, não dá mais. O que está acontecendo no meu país?" Você não tem música com esperança. Nós sempre tivemos música com esperança. É a característica desse período. Pode ter uma ou outra coisa de esperança, mas secundária. O fundamental é uma enorme bronca.

P. Você diria que o objetivo e a função dessas músicas modernas, até o período que você estudou, do rap, do funk, tinham ou tem o mesmo objetivo que essas primeiras músicas?

R. Tem diferença, o rap e o funk e o próprio samba reggae são mais politizados, mais militantes. Eles fazem crônica, mas eles têm um caráter de bater de frente com o sistema. É uma manifestação dessa bronca social que eu já disse. Porque lá, você podia protestar contra alguma coisa, mas não era que você tinha uma bronca contra o sistema, não tem uma revolta contida que está prestes a explodir. É diferente. Mas tem uma coisa comum que é a tradição de a música falar sobre política. Talvez porque a musica seja, de todas as manifestações culturais, a que está mais disponível para um povo que não tinha grande ilustração, grande cultura, com um grande número de analfabetos. Ela dialoga muito mais com o povo do que literatura por exemplo.

P. O funk, o samba reggae também nasce nas classes populares.

Pesquisa inspira exposição sobre música no Tomie Ohtake


A pesquisa inédita de Franklin Martins rendeu uma trilogia de livros, mas também uma exposição, em cartaz desde o final de junho no Instituto Tomie Ohtake. A mostra reúne fotos, vídeos, áudios e textos de 1902 aos registros contemporâneos. Está lá a A Carta, de Silas de Oliveira e Marcelino Ramos, sobre o suicídio de Getúlio Vargas, em 1954, e outras canções-crônica.

A Música Canta a República. Até 2 de agosto de 2015, de terça a domingo, das 11h às 20h. Instituto Tomie Ohtake - Avenida Faria Lima 201 - Pinheiros, São Paulo. Grátis.

R.  O samba é uma coisa muito popular no Rio. Podem dizer: "Ah, mas Noel Rosa era classe média!", mas o Wilson Batista ou Ataulfo Alves eram da favela, do morro. A maioria dos compositores eram do morro. Mas eles não estão querendo expressar uma coisa antissistema. O que temos depois, no terceiro volume, é que o Brasil estava há 30 anos sem crescer, praticamente: 30 anos sem gerar emprego, e com o desemprego aumentando, salários arrochados. Tinha vivido 20 e tantos anos de inflação, ou seja, o sentimento de falta de oportunidade, e isso tudo coroando um processo monumental de urbanização, que tinha criado cidades gigantescas onde não existia oportunidade. A sensação de abandono, de injustiça e desesperança da população pobre é uma coisa monumental.

P. É por isso que você disse que se o Lula não fosse eleito...

R. Alguma coisa ia acontecer. É evidente que aquilo caminhava para uma explosão. No último capítulo, há uma música que diz Eu só quero é ser feliz, que se chama Rap da felicidade. Na verdade, é um funk e não um rap. Ele foi um sucesso no Brasil em 94. A música de maior sucesso no ano. O básico dela era “eu só quero é ser feliz, andar tranquilamente na favela onde eu nasci e poder me orgulhar e ter a consciência que o pobre tem seu lugar”. E ela diz "trocada a presidência, uma nova esperança", "se eles lá não fazem nada, faremos tudo daqui".

P. O senhor na sua vida política viveu de tudo. Como vê sua trajetória depois de tantos anos, depois de ter começado com 15 ou 16 anos?

R. Meu pai sempre foi um liberal, um democrata, então isso está na minha formação. Eu me criei num ambiente de luta contra a ditadura. Quando foi instalada em 64, eu tinha de 15 para 16 anos.

P. Muito novo.

R. É. Muito novo, mas eu já era um militante político no sentido de que, nos anos 61, 62, 63, garoto ainda, na escola, eu já era representante de turma, votava com a esquerda. Era um período de grande efervescência política no Brasil. Quando vem a ditadura, considerava que era um dever meu lutar contra a ditadura, aliás como um grande número de jovens. Fiz movimento estudantil, ajudei a reorganizar o movimento estudantil. Estive preso por causa do movimento estudantil, fui solto. Nunca fui torturado. Depois do AI-5, eu vou para a luta armada como muitos jovens. A gente não tinha como fazer a luta contra a ditadura sem fazer a luta armada, porque eles fecharam tudo.

P. Foi uma boa decisão?

A minha crítica, olhando retrospectivamente —eu já fiz essa crítica em 1972— é que, com a luta armada, que é uma forma de luta que não podia ser acompanhada pelo povo, nós nos isolamos e fomos massacrados

R. Olhando com a minha visão de hoje, eu acho que foi um equívoco nosso a luta armada. Não que a luta armada seja um equívoco, em tese. De jeito nenhum. Em determinadas condições, é necessário você lutar. Senão você diz: eu só luto contra a ditadura até um certo ponto, se tiver de pegar em arma, eu não luto mais. Você tem que estar disposto a lutar de todas as formas, mas as formas mais inteligentes, mais competentes. A minha crítica, olhando retrospectivamente —eu já fiz essa crítica em 1972— é que, com a luta armada, que é uma forma de luta que não podia ser acompanhada pelo povo, nós nos isolamos e fomos massacrados.

P. Era inócuo?

R. Talvez algumas centenas ou milhares dos militantes, mais capazes e competentes, que podiam ajudar o povo a se organizar, ou foram mortos, ou foram presos ou foram exilados. Houve uma derrota política. Por outro lado, a luta armada contra a ditadura teve um caráter simbólico muito forte. Foi passar um recado da sociedade como um todo, de que as pessoas eram capazes de ir ao sacrifício extremo para reconquistar a democracia. Mesmo você fazendo a crítica política, na luta armada você criou uma coisa de combate mais forte. Porque a oposição à ditadura no Brasil é muito traumatizada com o fato de 64 não ter havido resistência. Houve um golpe e não teve nada, o Governo tinha apoio da maioria da população, ganharia as eleições, foi derrubado e não aconteceu nada. Ninguém lutou porque lá em cima eles acharam melhor não lutar porque ia ter uma guerra civil. Havia um sentimento de frustração, de desconfiança das lideranças políticas, dos partidos políticos progressistas. A luta armada, com todos os seus erros, serviu para mostrar que tinha um novo pensamento político no Brasil que iria às últimas consequências para defender. Ela é um duplo sentido.

P. Por exemplo, o sequestro do embaixador americano pode ser considerado um sucesso, não é?

Eu e vários outros companheiros dissemos em 1972: “Nós estamos errados”. Muitos diziam “mas e os que morreram? vocês estão abandonando?” Eles não morreram pela luta armada, eles morreram para acabar com a ditadura e melhorar a vida do povo. Eu continuo na mesma luta. São momentos difíceis, momentos de avaliação de erros e erros dramáticos e que produziram perdas irreparáveis

R. Sucesso no ponto de vista prático, dentro do que nós nos propusemos, que era libertar 15 companheiros. Libertamos 15 companheiros, o Governo cedeu, nós libertamos o embaixador e tal. A repressão que isso detonou foi uma coisa de uma envergadura que, você olhando retrospectivamente, não foi um sequestro... A luta armada era um equívoco. Muita gente não entendeu isso, mas eu e vários outros companheiros dissemos em 1972: “Nós estamos errados, temos que voltar ao trabalho de formiguinha, organizar etc e tal, vamos levar anos, mas...” Muitos diziam “mas e os que morreram? Vocês estão abandonando?” Eles não morreram pela luta armada, eles morreram para acabar com a ditadura e melhorar a vida do povo. Eu continuo na mesma luta. São momentos difíceis, momentos de avaliação de erros e erros dramáticos e que produziram perdas irreparáveis, eles são muito difíceis. Eu acho que tudo isso foi parte do processo de amadurecimento. Eu diria o seguinte: o Brasil saiu da ditadura com um compromisso com a democracia extremamente mais forte que 64.

P. Como foi para você participar do Governo Lula? Depois de ficar na teoria como jornalista e como crítico, ir ao Governo, fazer coisas?

R. Sempre fui jornalista. Sou jornalista, sempre fui isento, procurei ser isento, porque ninguém é isento, você procura ser isento. Eu sempre brinquei: mas existe isenção? Existe a busca da isenção. É a mesma coisa que a felicidade (ele cita primeiro o amor). Se você achar que vai ser feliz 24 horas por dia, 365 dias por ano, ninguém consegue. Mas você busca ser feliz. Na isenção você não consegue ser isento 24 horas, 365 dias, mas você busca ser isento e, se você não buscar ser isento, você não será isento e será partidarizado. Se você não buscar ser feliz, você vai ser um infeliz. Eu sempre busquei ser isento. Eu tinha uma visão de que o Governo se comunicava muito mal, o Governo Lula. Porque não fazia disputa política no cotidiano. Então quando me convidaram...

P. Mas Lula é um comunicador nato.

R. Mas no primeiro mandato não fez e foi um desastre. Ele começou a fazer depois do escândalo do mensalão, porque ele percebeu...

P. Agora parece acontecer uma coisa parecida com essa etapa que você está contando. Dilma não fala muito com os jornalistas...

R. Isso é um dos grandes problemas dela.

P. Você acha que é uma questão de personalidade ou uma questão de...

R. Não vou falar sobre isso.

P. Como avalia a situação política do Brasil?

R: Eu acho que ela (Dilma) está no início do Governo. Início de Governo, onde você está fazendo uma arrumação da casa, é um momento de dificuldade de popularidade. Acho que ela tem perfeitas condições de se recuperar, mas não é automático. Para se recuperar, a economia vai ter que se recuperar. E politicamente, ela terá de discutir com a população, que tem expectativas muito grandes, que não quer retrocesso. Isso é uma característica, a população não quer perder o que já conquistou.

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