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PEDRA DE TOQUE
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

A piedade dos morcegos

Em sua última obra, Tom Stoppard nos confronta com um tremendo dilema de decidir se os valores resultam de uma fatídica operação química neurológica do cérebro, ou se por trás de tudo há um agir deliberado

Mario Vargas Llosa
FERNANDO VICENTE

Você sabia que os morcegos que saem para caçar à noite voltam à gruta com a boca cheia de um sangrento alimento para dar de comer a seus congêneres incapazes de se valerem por si mesmos? Pergunte-se então, depois de ficar sabendo desse fato objetivo, se tal conduta desses roedores voadores, silenciosos e cegos poderia ser chamada de “consciência” ou “piedade” e ser, portanto, algo equivalente ao que faz em As Vinhas da Ira, de John Steinbeck, a personagem apelidada como Rose of Sharon, que amamenta com o leite de seu filho (que nasceu morto) um ancião agonizante. Esse é o dilema que se coloca e coloca para nós, os espectadores – The Hard Problem –, a simpática e inteligente Hilary, personagem principal da última peça de Tom Stoppard, que acaba de estrear no National Theatre, de Londres.

Talvez Stoppard, provavelmente o mais original e ousado dramaturgo moderno, seja o único autor contemporâneo capaz de levar ao palco uma história com uma temática que combina a neurobiologia, a química, a psicologia e a teologia, além de manter os espectadores durante uma hora e 45 minutos imóveis em suas cadeiras, estupefatos e enfeitiçados, enquanto, sem compreender totalmente o que está acontecendo, seguem as peripécias intelectuais e morais que vive a indócil Hilary durante a preparação de sua tese de doutorado no Instituto Krohl. Ela está rodeada de cientistas descrentes que, como seu orientador Spike, zombam de sua fé e de suas orações antes de dormir e creem, grosso modo, que a chamada consciência humana não constitui uma dimensão espiritual independente do corpo, e sim que não é nada mais – e nada menos – do que um produto resultante dos cruzamentos, descruzamentos, conformações e até confusões dos cem bilhões, aproximadamente, de neurônios que formam o cérebro humano.

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A obra não pretende nos educar, propondo uma solução materialista ou idealista à indagação que tira o sono das noites de Hilary; ela simplesmente, depois de nos apresentar as razões e provas que os partidários das duas teses esgrimem, nos abandona na encruzilhada para decidirmos por nossa conta se optamos, como Hilary, por acreditar que o humano não se esgota no físico, e sim que consta também de uma dimensão não física – alma, espírito, consciência ou como se queira chamá-la –, ou, então, se optamos por alguma das sutis e complicadas fórmulas dos sábios ou sofistas que sustentam o oposto, ou seja, que somos apenas o que temos no corpo. O grande mérito da obra de Stoppard é mostrar que não existe uma resposta racional e objetiva para The Hard Problem: que, qualquer que seja a solução pela qual optemos, será sempre não uma fórmula lógica irrefutável, mas sim um ato de fé. Como se Deus existe ou não, se existe outra vida além desta, e se uma religião verdadeira prevalece entre as existentes ou são todas falsas. Nada disso poderá ser provado cientificamente, como pensam os arrogantes pesquisadores microbiológicos do Instituto Krohl, e, portanto, o debate não terminará nunca e continuará perturbando a espécie humana para sempre.

Sempre admirei nele seu desprezo pela facilidade e pelas modas e a insolência com que sempre escreveu as histórias que eram importantes para ele

Em algumas das críticas que The Hard Problem recebeu, pergunta-se se não acaba sendo temerário colocar no palco uma problemática tão abstrata e distante dos conflitos cotidianos que costumam divertir, intrigar ou comover os espectadores. Claro que têm razão. A obra não é nada fácil, exige um grande esforço de concentração para não se extraviar entre os raciocínios, referências científicas ou delirantes sofismas que, disfarçados com uma pretensiosa retórica acadêmica, chovem sobre a valente Hilary. Mas o teatro de Stoppard não foi sempre assim, escorregadio e exigente? Desde que vi, nos anos sessenta londrinos, sua maravilhosa Rosencrantz and Guildenstern Are Dead, até a última, Rock’nRoll, sempre admirei nele seu desprezo pela facilidade e pelas modas e a insolência com que sempre escreveu as histórias que eram importantes para ele, algumas tão delirantes como as dos filósofos acrobatas de Jumpersou do ancião arteriosclerótico de Travesties que, entre as remelas da sua memória, tenta lembrar se naquela Zurique onde foi empregado do consulado britânico alguma vez chegou a esbarrar nos três ilustres exilados que coincidiram com ele naquela cidade: Joyce, Lênin e Tristan Tzara.

Seu grande mérito é ter conseguido que esse seu teatro de assuntos complexos e difíceis – um teatro de ideias nestes tempos de frenética frivolidade! – tenha chegado a conquistar um vasto público, subornando-o graças a seu humor centro-europeu e ao mesmo tempo britânico (uma herança de seus ascendentes checos), no qual há ironia, sarcasmo, grandiloquência, delírio e, sempre, uma ternura compassiva para com todas as extravagâncias e excessos dos bípedes humanos. Em The Hard Problem o humor está muito menos presente que em outras peças, e talvez por isso ela vença com menos facilidade as resistências de um público acostumado a ir ao teatro só para espairecer e se divertir, não para embrulhar o cérebro com perguntas sobre se isto que estamos vivendo aqui é nossa única vida, e se somos um mero produto das casualidades astrais ou filhos de uma criação transcendental, do capricho ou da sabedoria ininteligível de uma divindade arbitrária, o que indicaria que existe outra vida, mais esquiva e permanente, e muito mais difícil de imaginar do que esta que vai escapando das nossas mãos a cada dia.

Seu grande mérito é ter conseguido que esse seu teatro de assuntos complexos tenha chegado a um vasto público

Por que saímos desta última obra de Stoppard incomodados e até angustiados? Os atores são magníficos, a montagem está impecável, e o que acontece no palco é inquietante. Talvez por este último. Não estamos acostumados a obras de teatro – ou romances – que nos imponham a responsabilidade de ter a última palavra, de decidir qual é a conclusão daquilo que acabamos de ler ou ver representado e, sobretudo, no caso de The Hard Problem, enfrentar o tremendo dilema de decidir se os valores, a generosidade, a bondade, o amor e a amizade que existem em nós, ou se a maldade, o egoísmo, a mesquinharia, o rancoroso e o perverso que também nos habitam, resultam de uma fatídica operação química neurológica de nosso cérebro, ou se por trás de tudo isso existe aquilo que os existencialistas chamavam de escolha, um agir deliberado, decidido por uma consciência não condicionada biologicamente, que é livre e, por isso, nos torna responsáveis por aquilo que fazemos ou deixamos de fazer.

A noite está fria em Londres depois do teatro, mas não chove, e é agradável caminhar às margens do Tâmisa, vendo as luzes e as pessoas animadas nas mesas das calçadas e a multidão de jovens que saem da cinemateca onde está acontecendo um festival de filmes escandinavos. Somos, quando agimos de uma maneira nobre e desinteressada, idênticos aos repelentes morcegos cujo instinto de sobrevivência da espécie incita a levar sangue na boca a seus congêneres inválidos? Ou existe, na Rose of Sharon inventada por John Steinbeck, que dá de mamar de seus peitos ao velho faminto, algo além de um processo químico biológico que faria dela uma autômata, um robô que imita a caridade? É algo impossível de averiguar, é algo que devemos decidir e atuar de forma consequente. Pois o que está em jogo, no fundo desse duro problema, não é se Deus existe ou não, mas se somos livres ou não. Se os cem milhões de neurônios que, pelo visto, vibram em nosso cérebro decidem nossos afetos e defeitos, nossas virtudes e vícios, não somos livres; aparentamos uma liberdade que não temos, pois nossa conduta está dirigida fatidicamente por aqueles microscópicos organismos que pululam por nosso corpo. Não nos convém que seja assim, mesmo que seja. A liberdade, embora às vezes pareça apenas uma mímica nossa, termina por se emancipar de toda forma de behaviorismo e, embora dito desta forma acabe sendo uma cacofonia, praticá-la nos torna livres. A longa história da humanidade não seria, por acaso, uma teimosa luta para escapar desses condicionamentos físicos, naturais, nos quais ficaram presos os animais e dos quais nós, seres humanos, fomos nos liberando depois de inumeráveis aventuras, quedas e reerguimentos? Como todas as boas obras de teatro, The Hard Problem, de Tom Stoppard, começa realmente só depois que o espetáculo termina.

Direitos mundiais de imprensa em todas as línguas reservados a Ediciones EL PAÍS, SL, 2015.

© Mario Vargas Llosa, 2015.

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