Cracolândia: o mundo de duas jovens
Um ano após o início do Programa De Braços Abertos, da Prefeitura de São Paulo, Dayana continua a trabalhar nas ruas da região. Valéria foi presa
É sexta-feira e Dayana recebe os 115 reais a que tem direito por ter trabalhado a semana toda em atividades de zeladoria na região central de São Paulo. Como faz há um ano, ela vai ao supermercado e compra doces e salgadinhos, materiais de limpeza e de higiene para si e para o marido, com quem divide um quarto em um dos hotéis da área que ficou (mal) conhecida como cracolândia. Desde o início dessa rotina, Dayana tem se cuidado mais, veste roupas limpas e se alimenta diariamente. Reclama às vezes das brigas com o companheiro e, ultimamente, tem ficado quieta e triste com mais frequência, em decorrência de dores corporais insistentes. Está, entretanto, sendo medicada e acompanhada por profissionais da saúde.
No início de fevereiro recebi em casa uma nova carta de Valéria, que está presa desde novembro no Centro de Detenção Provisória (CDP) de Franco da Rocha, onde aguarda o julgamento de uma acusação de flagrante de roubo nos arredores da Estação da Luz. Ela me perguntava sobre o filho Luan, de 4 anos, e dos dois cachorros que ficaram com o marido quando ela foi detida. Foi dificílimo contar que o marido tem bebido mais na sua ausência e que os bichos morreram; um atropelado e um de saudade. Para amenizar sua dor, encaminhei a ela uma foto do menino, as letras das músicas de pagode que ela gosta e o poema "Emergência", do Mário Quintana, que traduzia bem seu momento e contemplava minha única possibilidade de auxílio: pedir para que ela respirasse.
“Quem faz um poema abre uma janela. Respira tu que estás numa cela abafada, esse ar que entra por ela. Por isso é que os poemas têm ritmo – para que possas profundamente respirar. Quem faz um poema salva um afogado".
Dayana e Valéria são duas jovens mulheres que acompanho desde que o Programa De Braços Abertos foi implementado há pouco mais de um ano pela Prefeitura de São Paulo. As duas consomem crack e constroem suas vidas e parcerias amorosas em meio a esse consumo, que pode às vezes ser mais intenso, às vezes menos. Depende da ocasião, como tudo.
Estive com Valeria em seu quarto de hotel por todo o dia 15 de janeiro de 2014, quando o programa começou. Ela acabava de se mudar com o marido e já tinha dado uma entrevista para um jornal, onde dizia que o De Braços Abertos acabaria em julho, depois da Copa. Depois me contou ter esquecido que naquele ano ainda havia eleição. Novos cálculos. Talvez, então, o programa durasse até outubro. Como muitos dos que estavam ali, Valéria já tinha aprendido na prática que os programas sociais para pessoas como ela começam e terminam muito rapidamente. Um ano talvez seja mesmo um tempo para se comemorar.
Nas primeiras semanas, a mídia acompanhou em detalhes tudo o que se passou. Dayana foi fotografada sorrindo após o primeiro pagamento, com seus materiais de limpeza expostos no chão. Sua imagem correu as redes sociais, atestando que a aposta municipal era acertada: quando dignos de confiança e tratados com respeito, os usuários de crack podem responder com autocuidado e zelo pelo espaço que passaram a ter o direito de habitar.
Norteada mais amplamente por novas formas de atuar e conceber a questão social e por princípios de redução de danos, esta oportunidade era a única e a melhor até então ofertada pelo poder público à Dayana e Valéria: um quarto de hotel com seus companheiros, uma possibilidade de ganhar dinheiro trabalhando honestamente e três refeições diárias. Não seriam internadas à força em uma clínica distante, nem lhes seria exigida a interrupção do consumo.
Nesse primeiro ano do De Braços Abertos muita coisa aconteceu. Recém-nascido, o programa tem como característica mais premente a constante reformulação. Profissionais aliados e com conhecimento notório em redução de danos colaboraram, deixaram de colaborar e voltaram a conversar com a Prefeitura que ora os escutou, ora não.
Ativistas políticos aclamaram a proposta inovadora e têm criticado o fato de ela ter sido acompanhada pelo uso desproporcional da repressão. Acordos com donos dos hotéis e ONGs foram desfeitos e refeitos, funcionários foram demitidos e contratados. Novos beneficiários foram cadastrados, outros abandonaram a proposta, por diversos motivos. A coordenação foi substituída. Os primeiros dados científicos sobre o programa começarão a ser produzidos em março, e eu estou envolvida nisso.
As prisões dos pequenos traficantes não resolverão a questão do aumento do fluxo, pois pessoas continuarão chegando e os funcionários do tráfico serão substituídos
À semelhança do que já dissemos antes, reponho aqui dois dos que ainda considero os principais desafios do programa.
O primeiro deles é decorrente da divisão do perfil populacional de usuários de crack no local, materializado inclusive em corpos mais e menos cuidados. De um lado, estão os usuários que "aderiram" ao programa e seguem firme nele. Dayana é um exemplo: continua trabalhando, vivendo nos hotéis, e, mesmo com dificuldades, é acompanhada por profissionais, hábeis para lidar com sua saúde, mas ainda pouco atentos à violência de gênero que ela sofre. De outro, estão os usuários que constituem a população que chama a si mesma, de modo emblemático, de fluxo. Resistente e flutuante, este segundo perfil não adere às políticas ofertadas, é visível aos habitantes da cidade e tem crescido nos últimos tempos em razão dos – sempre eles – fluxos da metrópole. Mantido confinado na esquina da rua Helvétia, vigiado pelas forças de segurança, deslocado cirurgicamente todas as manhãs para a limpeza do local, ao fluxo só resta ser como é: inconstante. Com ele, a Prefeitura trava uma batalha pelo espaço, acentuada pelo interesse do mercado imobiliário. Há, assim, os paradoxos de acompanhar os primeiros e ao mesmo tempo disputar com os segundos o controle do território.
O outro desafio se refere às dificuldades de tratar as pessoas em meio à "guerra às drogas" e à imprecisa fronteira legal entre usuários e traficantes que convoca duas formas de ação conflitantes: cuidado e repressão. Trata-se de uma divisão que, além de não se sustentar por muito tempo na prática, é ardilosa. As prisões dos pequenos traficantes não resolverão a questão do aumento do fluxo, pois pessoas continuarão chegando e os funcionários do tráfico serão sempre substituídos. Além disso, aqueles que são presos se profissionalizam no crime nas cadeias. Os efeitos disso são notórios no vocabulário prisional ali disseminado. Não há, nesse sentido, nada a comemorar em relação ao aclamado aumento do número de prisões de "traficantes" na região. Ao contrário, e como muitos profissionais-ativistas têm anunciado, pública e privadamente, isso pode mesmo anular os importantes avanços conquistados.
Passado um ano, portanto, me parece que as trajetórias de Dayana e Valéria são a síntese dos atuais desafios do programa. Uma política que pode ser exitosa, que de fato é capaz de aumentar a qualidade de vida dos seus beneficiários, mas que, ao focar numa disputa pelo controle do território, periga ser colonizada pela repressão. Que se retome com urgência o sentido inicial e inovador do programa e que este esteja orientando a extensão dos Braços Abertos para outras áreas de São Paulo. Do contrário, a insistência em realizar ações opostas para quem está nos hotéis e para quem está no fluxo, para o usuário e para o traficante, é arriscada, para dizer o mínimo.
Dramaticamente, a história de Valéria comprova isso: não há explicação mais convincente para a sua detenção, ainda sem julgamento, do que o uso excessivo e arbitrário da prisão no local e nos arredores; e não é difícil concluir como isso interrompeu o bom trabalho que estava sendo realizado, a duras penas, com ela. Confirmando suas previsões, para Valéria o programa terminou em novembro.
Taniele Rui é doutora em Antropologia pela Unicamp, autora do livro "Nas tramas do crack: etnografia da abjeção", recém-lançado pela Editora Terceiro Nome.
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