“É um filme lindo, que me permitiu entender muitas coisas sobre meu pai”
Estreia o ‘O sal da terra’, documentário que conta a trajetória de Sebastião Salgado sob o olhar de seu filho, Juliano Ribeiro, e de Wim Wenders
Sebastião Salgado era inacessível até hoje, mas já não é mais. Estreia nesta quinta-feira nos cinemas, depois de ser lançado durante o 16° Festival do Rio, um documentário imperdível sobre ele. Quem o dirige é um dos maiores cineastas vivos, Wim Wenders, junto com o filho do fotógrafo brasileiro, Juliano Ribeiro.
Não é um filme qualquer e sim um modo especial de descobrir quem é o homem por trás de tanto talento. Além de contar sua trajetória profissional, é também uma declaração de amor-ódio nada piegas de um filho a um pai.
O sal da terra foi ovacionado no Rio de Janeiro, assim como no último Festival de Cannes. A diferença é que no Brasil, o próprio Salgado confessou que apresentá-lo era uma emoção única – e a única que ele se permitiu viver. Leia a entrevista de Juliano sobre o filme.
Pergunta. Como surge a ideia de fazer um filme sobre a trajetória do seu pai?
Resposta. Foi de uma sucessão de acasos. O filme tinha de acontecer, mas a última coisa que eu queria fazer era um filme sobre o Tião antes de ter, sei lá, 70 ou 80 anos, estar resolvido e livre… Na época, apesar de sermos próximos, andávamos meio afastados, e dava um pouco de medo, porque, quando você faz um filme, termina sendo muito intruso. Em 2009, apareceu o Wim Wenders lá na casa dos meus pais, em Paris.
Ele tinha uma ideia de um dia fazer um projeto sobre o Sebastião, mas não sabia nem o que e nem como. Ficamos com isso, e uma semana depois eu estava acompanhando o Tião nas terras dos índios zo'é, no Estado do Pará, que são uma tribo que viveu muito tempo isolada. Eles têm a particularidade de ser muito doces, não reprimem as crianças, não dizem não pra ninguém… Nunca acontecem discussões entre eles e, quando acontece, eles colocam as duas pessoas em um lugar santo deles, os dois brigam e tudo acaba lá. Eu estava meio relutante em estar lá sozinho com ele, nessa coisa de pai e filho. Pensava muito em que período juntos, entre quatro paredes, seria esse. Mas foi ótimo, e a gente se deu muito bem.
Quando a gente voltou, trouxe comigo umas imagens que eu editei e mostrei pro Tião. Ele viu as imagens, e a gente se emocionou muito, vendo como eu via ele. Ele ficou muito tocado, se vendo através dos meus olhos. Não podia se virar pra mim, senão ia chorar. E eu também. Até hoje, quando falo disso, tem uma emoção muito forte. Foi o que me deu confiança de que era o momento certo de me aproximar e fazer um filme, abrir portas.
P. Você sabia que caminhos queria trilhar para contar a história dele?
R. Eu tinha uma intuição muito forte de que um filme sobre o Tião não poderia ser dele viajando e fazendo fotos, apesar de ser uma coisa linda, uma experiência mágica e louca mesmo. O que tem de especial sobre ele é o relato dessas experiências. Cada vez que o Tião volta de viagem, isso desde que eu era bebê, ele fala das pessoas que encontrou, conta como foi a relação com elas e tal. E, muitas vezes, ele voltou de lugares ‘tretas’, e as histórias eram muito fortes. Ele sempre teve isso, de se relacionar com as pessoas, ser muito igual. Quando está trabalhando, ele se abre muito, e os relatos dele são únicos. Essa soma de experiências, junto com as fotografias, era pra mim o material cinematográfico. Aí eu resolvo me abrir pro Wim e compartilhar essa intuição.
P. O objetivo sempre foi fazer o filme com o Wim Wenders? Você não pensava em fazê-lo sozinho?
R. Eu não poderia fazer sozinho. Precisava de alguém neutro que se relacionasse com o Tião e permitisse a ele se abrir. Ao mesmo tempo, há um acesso que só eu tinha, por conhecer bem as histórias do Tião. Encontramos com o Wim um modo muito dramático de modular essas histórias para o cinema. A ideia era contar, através das reportagens fotográficas dele, como ele vai aguçando o olhar dele, aprendendo a viajar e a se relacionar com as pessoas, e como as fotos dele – e ele – vão encontrando lugar na sociedade. Como coisas positivas vão levando ele muito longe, mas a experiência é muito pesada, porque ele não sabe superar e se proteger disso, então ele acaba tendo um ‘breakdown’. Até o momento que ele monta o Instituto Terra, faz o Genesis, e as coisas começam a ir melhor. Rolou uma transformação muito forte. Primeiro, ele se confronta com a morte e depois ele está na vida – simbolicamente e metaforicamente. Encontramos isso e dividimos os papeis. Eu tinha um acesso sendo filho do meu pai, enquanto o Wim, com um talento louco, ocupava uma posição neutra. Levamos dois anos arquitetando o filme, que você vai ver que é lindo e que o cara [Sebastião Salgado] é fantástico.
P. Como foi trabalhar com um cineasta tão reconhecido?
R. Foi muito bacana. A última fase, de edição, foi a mais difícil. Durante um ano, foi um quebra-pau. Eu editei primeiro, o Wim viu e odiou. Aí ele editou, eu vi e fui muito mais educado, mas não gostei. A gente foi indo, e um ano depois a gente não tinha ainda encontrado uma versão do filme de que a gente gostasse. O único jeito da gente conseguir editar o filme foi sentar juntos numa sala de edição. Eu fiz o esforço de realmente aceitar o Wim, e ele foi generoso de me aceitar. Aí foi tudo muito rápido. Depois de dois meses, o filme saiu. E não é um filme para intelectuais, mas aberto a todo mundo.
P. Parece que tem um retrato de uma relação pai e filho nele. Esse foi um dos objetivos?
R. Tem e não tem. Na verdade, são três entradas. O Wim fala muito e tem uma entrada neutra. Eu tenho uma muito pessoal, mas que acho que ficou sutil, em tangentes, em coisas que não são acertivas, do tipo ‘o Tião era assim ou assado’. E, depois de meia hora de filme, só o Sebastião fala. Porque a história do filme é essa experiência, essa vivência de mundo. As vozes servem para permitir que a palavra dele seja liberada e que seja aceitável para o público entrar no Tião, aceitar a subjetividade dele.
P. Foi a primeira vez que você trabalhou com o seu pai?
R. Foi. Eu sempre evitei, por razões óbvias, de construção, de como é ser filho de um cara famosão, pra quem as pessoas pagam o maior pau. Eu também queria existir sozinho, sem a sombra, então esperei ter pelo menos 35. Hoje eu tenho 40.
P. E como foi a reação do seu pai, quando viu o filme pronto pela primeira vez?
R. Ele tem muito pudor em relação a isso. Ele a Lélia, né, porque o filme é sobre os dois. Eles têm muito pudor, acham que é maior do que a realidade, que não é eles, que não é possível… Mas é. Eles se emocionaram muito. Uma coisa engraçada é que, fazendo esse filme, eu entendi muitas coisas. E foi de repente. Em um segundo que a gente se viu, depois que eu passei uma temporada editando o filme em Berlim, ele já estava diferente. O problema era eu.
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