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RADIOGRAFIA DE UM PAÍS: OS DIREITOS DOS HOMOSSEXUAIS

“Até sermos casados, não fomos ninguém para o Estado”

Uma doença grave demonstrou a um casal homossexual a discriminação que sofrem diante da lei

María Martín
Philip e Alexandre, na casa deles.
Philip e Alexandre, na casa deles.M. M.

A certidão de casamento de Philip e Alexandre é motivo de brincadeira com os cinco sobrinhos. “Vocês terão que guardá-la como um documento histórico, é como se fôssemos escravos livres antes da abolição”, dizem a eles.

O roteirista, de 35 anos, e o designer, de 43, juntos há dez anos, se casaram em abril de 2013. A união aconteceu um mês depois de a Justiça de São Paulo obrigar os cartórios a registrarem os casamentos gays em condições semelhantes a dos heterossexuais. E um mês antes da norma se tornar efetiva em todo o país por ordem do Conselho Nacional de Justiça. Até então, a autorização dependia exclusivamente da interpretação do juiz, fazendo com que muitos pedidos fossem negados e os gays tivessem seus direitos relegados à união civil, reconhecida a eles em maio de 2011, mas que não contempla direitos como a escolha do regime de bens ou a mudança de nome.

O grande dia de Philip e Alexandre não foi fruto de um sonho romântico de conto de fadas. Não houve festança, nem banquete, nem trajes sociais. Eles chegaram ao altar depois de uma grave doença de Alexandre demonstrar com toda sua crueldade como eles não eram iguais a um casal de heterossexuais aos olhos do Estado.

Em 2012 Alexandre percebeu que perdeu o olfato. “Eu sempre fui uma pessoa muito alérgica, sofri a vida inteira com isso. Depois de seis meses de reforma em casa não conseguia distinguir os cheiros. Fui ao médico e me deram antibióticos sem nenhum resultado, até que em uma tomografia encontraram vários tumores desenvolvidos que tinham estourado a base do crânio”, explica na casa de sua mãe, de onde preparam uma viagem de estudos de um ano para a França.

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Alguns dados

• No Brasil há 60.000 casais homoafetivos vivendo juntos, sendo 47,4% deles católicos, segundo o IBGE

• Em 2012 houve 338 assassinatos homofóbicos ou transfóbicos. Em 2013, segundo o Grupo Gay da Bahia (GGB), o mais antigo do país, foram 312

• O Brasil, desde 2008, concentra quase a metade do total de homicídios de transexuais, de acordo com o relatório da organização europeia Transgender Europe.

• O projeto de lei que pretende criminalizar a homofobia no país, assim como já acontece com o racismo, está parado no Congresso desde 2001

• O kit anti-discriminação LGBT, material multimídia para repartir nas escolas foi barrado pela bancada evangélica em 2012

Os dois tinham plano de saúde, mas o de Alexandre não cobria nenhum dos hospitais que a médica havia indicado para a delicada cirurgia. O plano de Philip, que cobria apenas um dos locais indicados, servia pouco, dado que para o Estado ele não era mais do que um amigo de seu parceiro. “Foi um momento delicadíssimo. Passamos os meses sem saber o que ia acontecer, se ele ia perder a visão, se iam abrir a cara dele para extirpar os tumores, foi um desespero profundo. Mas, além da preocupação sobre a gravidade de Alex, tínhamos que pensar em como pagaríamos a cirurgia, o material hospitalar, a UTI... Passamos muitos meses sem saber se teríamos que vender nossa casa”, relata Philip. Alexandre completa: “Phil não era ninguém para o hospital”. Philip confirma: “Eu só consegui assinar os prontuários médicos para o alta do meu marido porque podia demonstrar que fui eu quem pagou a operação. Eu não estava registrado como parente, não era nada dele”.

“Afortunados na desgraça” a cirurgia foi mais simples que o esperado e Alexandre, embora não tenha recuperado o olfato, está bem. O episódio custou 10.000 reais. “Conseguimos assumir as despesas, tivemos muita sorte, mas se na época tivéssemos sido casados ou se vivêssemos em uma sociedade igualitária, não teríamos passado por todo esse período de incerteza que acabou sendo bem pior do que o processo final da operação”, lamenta Philip.

As dificuldades do casal, que se negou a estabelecer uma união estável por considerá-la um paliativo para o 'gueto', ressuscitaram nesses dias de campanha eleitoral. A candidata do PSB, Marina Silva, os surpreendeu apresentando um programa com as principais reivindicações do coletivo LGBT, porém, depois de severas críticas de líderes evangélicos, demorou menos de 24 horas para retificá-lo e falar em “erro da equipe de campanha” na revisão. “Não se trata de uma questão local, são direitos universais, o mundo inteiro discute isto, é inevitável tratar do assunto na campanha”, reclama Philip, que realça a importância de que o casamento homossexual vire lei.

“Se nosso direito aparece na Constituição, tirá-lo é algo muito mais difícil. Nós estamos casados apenas pela determinação de um tribunal, o fato de existir uma lei clara que nos dê esse direito, nos iguala as outras pessoas. Isso é importante porque o Estado estaria dizendo para todos os brasileiros que não há diferença e que o preconceito não deve imperar”, afirma o casal. “Se todas as minorias tem proteção da lei porque nós não temos? No caso de um crime motivado pelo preconceito, no julgamento dessa pessoa tem que haver um agravante, necessário para que a sociedade pare de aceitar isso”, argumenta Philip em defesa da criminalização da homofobia, pauta retirada por Marina e que Dilma aproveitou para defender depois do último debate eleitoral.

Em janeiro deste ano, uma doença grave afetou Philip, desta vez já casado. “Não tivemos nenhuma das preocupações anteriores, já temos um plano de saúde comum e ninguém questionou a presença do Alex no hospital”.

O que os candidatos prometem?

  • PT

Nas diretrizes do programa de Dilma Rousseff, de 42 páginas, só na 32 se fala de direitos humanos. A única referência aos homossexuais é genérica: [..]a luta pelos direitos humanos se mantém, sempre como prioridade, até que não existam mais brasileiros tratados de forma vil ou degradante, ou discriminados por raça, cor, credo, orientação sexual ou identidade de gênero”. A presidenta, porém, concretizou algo a mais sobre esse ponto na segunda-feira, ao declarar que era favorável à criminalização da homofobia.

  • PSB

O programa apresentado por Marina Silva trazia reivindicações históricas de gays e transexuais como a lei de identidade de gênero que permite mudar o sexo e o nome, apoio ao casamento homossexual, criminalização da homofobia, distribuição de material didático nas escolas para educar sobre a diversidade e a eliminação de obstáculos na adoção por parte de casais homoafetivos. Todas elas saíram da pauta da candidata.

  • PSDB

No programa de Aécio Neves de 76 páginas, só duas estão dedicadas aos direitos humanos. O coletivo LGBT é mencionado como “setor vulnerável”, junto a mulheres, idosos, crianças, afrodescendentes, quilombolas e indígenas. Não são mencionadas ações específicas para o coletivo.

  • PSOL

A candidata Luciana Genro construiu sua campanha com base nas críticas dos interesses financeiros e na defesa da comunidade LGBT. O programa propõe a aprovação da lei de identidade de gênero, o casamento civil igualitário, o acesso igualitário à adoção e à reprodução humana assistida, a criminalização da homofobia, material educativo nas escolas contra a homofobia, garantia do direito de travestis e transexuais à saúde integral.

  • PV

O Partido Verde de Eduardo Jorge concretiza algumas das demandas do coletivo. Assim, defende a igualdade de direitos, a criminalização da homofobia, aprovação da lei de identidade de gênero, ampliar os espaços de gestão do coletivo LGBT, políticas de segurança pública para combater os crimes de ódio, promover uma educação inclusiva e com políticas contra o bullying.

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