Antônio Nóbrega só quer ficar pra brincar
O reconhecido artista e especialista em cultura popular brasileira tenta evitar que o Instituto Brincante, criado por ele e por sua esposa, feche as portas em São Paulo
Se tem alguém que vibra e faz vibrar a mais autêntica cultura popular brasileira, e a difunde em palcos de grandes centros do país, é Antônio Nóbrega. Um dos mais importantes pesquisadores das tradições culturais brasileiras, esse músico, dançarino e ator recifense de 62 anos percorreu todo o Brasil vivenciando as diferentes manifestações artísticas regionais e aprendendo com elas para então devolvê-las à sua origem, que são... As pessoas.
Quem o vê íntimo de instrumentos de percussão que a maioria dos brasileiros mal sabe identificar e dançando e cantando frevo ao ponto de ter se tornado um dos maiores representantes desse ritmo autenticamente pernambucano, não imagina que a sua primeira formação é a de um artista erudito. Filho de médico, aluno da Escola de Belas Artes do Recife e violinista e cantor lírico formado, Nóbrega participou de orquestras sinfônicas. Para equilibrar sua vertente clássica, chegou, no máximo, um criar um conjunto de música pop com as irmãs nos anos 60.
O encontro com Ariano Suassuna em 1971 e o convite desse dramaturgo e romancista brasileiro para integrar como violinista o grupo de música instrumental Quinteto Armorial (conhecido por sintetizar música erudita e tradições populares do Nordeste brasileiro) foram sua introdução no folclore nacional – em seu sentido mais puro e sem preconceitos. De aí em diante, seu peculiar talento para unir arte popular e sofisticação tornou-se evidente em espetáculos que o tornaram famoso, como Figural (1990) e Brincante (1992).
Foi nos anos 90, com o sucesso dessas apresentações, que ele e sua esposa, a atriz e dançarina curitibana Rosane Almeida, se fixaram em São Paulo. Apesar das críticas positivas do trabalho realizado por ambos no resto do país, quase nenhum palco cedeu espaço à dupla, que se viu obrigada a fundar seu próprio Teatro Brincante. O sucesso foi imediato e ultrapassou os limites da cena. O teatro virou um instituto, no qual crianças de todas as idades reconhecem e experimentam a cultura popular brasileira de um modo especial, autenticamente brincante – que é como os artistas populares se autodenominam, já que, ao realizar um espetáculo, dizem que vão brincar.
Por 22 anos, o espaço serviu de casa lúdica e ajudou a despertar as sensibilidades de mais de 20.000 alunos inscritos nos cursos que ele oferece e 57 mil pessoas que compareceram aos seus eventos. Mas, há 15 dias, o Brincante recebeu a notícia de que terá que fechar suas portas. O motivo: a especulação imobiliária que está pressionando os habitantes de grandes cidades brasileiras, como São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e outras mais. Sem ter sido consultado pelo proprietário do imóvel que ocupa, o casal de locatários (que tem a prioridade de compra) foi notificado por uma incorporadora que pretende construir ali um prédio comercial de oito andares, derrubando algumas casinhas da área.
O problema suscitou o debate sobre o lugar do espírito lúdico em nossa sociedade, cada vez mais racionalista e tecnicista e que vive em cidades de crescimento desorientado, com raros espaços dedicados à brincadeira – e à cultura popular, que, no fim das contas, é o brincar de um povo. Brincar, explica Nóbrega, significa manter vivo o universo lúdico que habita cada um dos seres humanos, sem distinção de origem ou idade. Um chamado primordial, segundo ele: “Nascemos com a necessidade lúdica. Na fase em que somos mais inconscientes do mundo cotidiano, podemos organizá-la com mais plenitude. Mas as formas lúdicas estão dentro de nós até a morte. O que nos resta fazer é responder, de acordo com as diferentes idades, a isso”.
Sair não está – nem nunca esteve – nos planos nem dele, nem de sua esposa. “Se foi nesse lugar que vivenciamos essas experiências, buscando ir além das próprias manifestações culturais populares e tratando de resgatar o ‘estar bem na vida’ que elas trazem, existe alguma coisa que o próprio espaço e o próprio bairro acolheram. Sair daqui, tirar o Brincante nessas condições, é passar por cima dessas reflexões”, afirma Rosane Almeida. Nóbrega concorda, levantando um debate antigo, ainda que atual: o da visão ocidental versus os ensinamentos marginalizados por ela. “Não podemos negar que o patrimônio ocidental colocou ordem nas coisas. Mas, nesse afã, ele simetrizou excessivamente. Temos uma herança positiva que é fruto da nossa cultura marginal, principalmente graças aos negros. Temos que ser conscientes e compreender como utilizar isso. Organizar o que é desorganizado”.
O plano de Nóbrega e de Rosane, que são proprietários de duas casinhas próximas ao Brincante que já receberam também propostas de compra, é fazer justamente isso: organizar esforços para criar um centro cultural que mantenha viva nossa rica desorganização. Essa é a esperança, não só para eles, mas para que cidades como São Paulo não sejam cada vez mais emblemáticas do eminente fim da brincadeira. Não são poucas as vozes que engrossam esse coro, como mostra a campanha #ficabrincante, que já domina o Twitter e o Facebook.
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