Ruanda, a reconciliação vigiada
O país que padeceu o genocídio mais rápido da história ressurge com uma pacificação controlada pelo Estado
Uma velha bicicleta sobe a colina em plena noite ruandesa com um saco de arroz bem amarrado. Os grilos acompanham a suave ascensão. Eric, professor de escola na região de Ntarama, arrasta o veículo pelo caminho de areia que se abre entre bananeiras com a memória tão bem atada ao presente como o saco à bicicleta. O professor, como milhares de pessoas, baixou correndo por estas mesmas colinas faz 20 anos para o vale de mangues. Tinha 6 anos e fugia com sua mãe para um lugar que serviria de túmulo e de refúgio. No meio da alta vegetação e semisubmersas na água, milhares de pessoas tentaram evitar ser alcançadas pelos militares e pela Interhamwe – a milícia de extremistas hutus – que elas viam descer pelas colinas. O país das mil colinas é também o do milhão de mortos em três meses, o do genocídio mais rápido da história. Ocorreu há apenas duas décadas.
Em Ruanda a população se divide agora entre sobreviventes e genocidas. E os que governam. Eric faz parte da primeira categoria, à qual, paradoxalmente, não têm acesso todos os que foram perseguidos. Ele recebeu ajuda e uma casa do Governo. É tutsi. E trabalha formando a geração que não viveu as matanças, mais de 60% da população, mas que cresce com suas lições.
Eric, um professor tutsi, recebeu uma casa como compensação. Na escola lembra que a paz é obra do Governo
Uma vez por semana, Eric e todos os professores da escola dedicam uma hora a um curso que chamam de “cultura”, onde explicam o que aconteceu durante o genocídio e assinalam que, “graças às atuais políticas do Governo, conseguiu-se a paz e a reconciliação”. Uma frase que é como um mantra. Tanto nas escolas como nos jornais se ignora a regra que proíbe falar de hutus e tutsis. Quando se fala do genocídio se acrescenta sempre “contra os tutsis”, embora também milhares de hutus tenham morrido a machetadas.
Kigali, a capital de Ruanda, converteu-se em um símbolo de superação e triunfo. Sua beleza natural se realça com ruas de asfalto impecável ladeadas por cuidados jardins, enquanto batalhões de operários perfuram, medem e constroem. Os arranha-céus já terminados e os edifícios que avançam rápido sob as gruas são a imagem de progresso que o Governo não deixa de proclamar. Com 8% de crescimento na última década, o minúsculo país de pouco mais de 26.000 quilômetros quadrados recebe ajudas de fundações e doadores que “sentem que assim reduzem a culpa por sua passividade durante o genocídio”, segundo um opositor no exílio sul-africano.
Enquanto isso, o Parlamento mais feminino do mundo – 64% das cadeiras estão ocupadas por deputadas, a única assembleia no mundo dominada por mulheres – permite às autoridades vender uma imagem de igualdade e democracia que consegue esconder as sombras. Dependente das ajudas e, oficialmente, das exportações de café e de chá, a economia de Ruanda segue manchada pela pobreza rural, sobretudo no sul, onde se concentra a população hutu, majoritária.
Na grande rotunda do centro de Kigali e na zona de ministérios – onde qualquer um que queira investir ou trabalhar está condenado a gastar paciência e formulários para poder conseguir uma coleção de autorizações –, os cidadãos caminham impolutos, sempre com o mesmo mantra: “Tudo é novo em Kigali, agora convivemos em paz”. Os comentários de líderes regionais, proprietários de cantinas e até de presos que cumprem condenação por ter planejado as matanças são similares.
O partido que governa hoje o país com maior densidade populacional da África – 11 milhões de habitantes, 437 por quilômetro quadrado – era um grupo rebelde tutsi antes do genocídio. Sua cúpula está formada por refugiados que cresceram na vizinha Uganda e no início dos anos 90 entraram pelo norte de Ruanda para derrubar o Governo hutu. O atual presidente do país, Paul Kagame, era então o líder desta rebelião, uma insurreição que também somou atrocidades em seu histórico, tanto antes como depois do genocídio, embora as tenha redimido com a vitimização exclusiva reservada aos tutsis. É difícil saber qual é a porcentagem de hutus e tutsis no Governo, a etnia já não aparece nas cédulas de identidade e as políticas de reconciliação incluem não ressaltar essa diferenciação. Mas cada um sabe quem é quem – e entre a população hutu, até mesmo entre a oposição forçada ao exílio, as pessoas reconhecem claramente que “o poder está nas mãos da minoria tutsi”.
Em um dos declives vertiginosos de terra vermelha, Sonia, de 6 anos, não pede dinheiro como outras crianças. Em um perfeito inglês, conta que vive no bairro e gosta da escola. Embora seja um país francófono, as novas gerações falam inglês. O Governo atual decidiu trocar o francês pelo inglês, por sua aversão à França, a quem considera cúmplice do genocídio, mas também porque os atuais líderes cresceram e se formaram como militares na anglófona Uganda.
A organização e a comunicação são sem dúvida duas matérias bem praticadas pelo Governo atual, que defende uma História na qual se culpa sutilmente uma etnia inteira, a hutu, enquanto se esmera em cuidar das relações públicas. Kagame é o presidente africano mais seguido no Twitter, uma rede muito utilizada pelas autoridades. Com sorrisos e postagens nas mídias sociais, esculpe-se a imagem de desenvolvimento que mantém a ajuda internacional fluindo.
Convertidos em atração turística, os macabros museus da tragédia, com as roupas dos mortos, os crânios e inclusive corpos embalsamados semidecompostos, deixam mudos os visitantes. Os mais visitados de Ruanda são os gorilas e os mortos. Ambos incapazes de falar.
Os detentos da prisão de Nyarugenge, a prisão central de Kigali, vestem uniformes de duas cores. O rosa é para os que esperam ser processados e o laranja, para os sentenciados. Valerie Bemeriki vai de laranja e caminha mancando, apoiada em uma muleta. Ela estava de plantão na Rádio das Mil Colinas, a chamada “radio do ódio”, na noite de 6 de abril em que foi abatido o avião presidencial. Esteve no ar durante as primeiras matanças. “Eu dizia às pessoas que deviam matar as baratas tutsis porque era isso que as autoridades me ordenavam, mas também porque acreditei que se não os matássemos, eles fariam isso antes.” Agora ela pede perdão e celebra a política de união nacional. “Eles [os tutsis] não são como nós [os hutus]. Não me mataram nem torturaram.”
Nyirandegeya Mwamini é outra mulher laranja. Condenada à prisão perpétua. Ela estava com os milicianos da Interhamwe nos controles que se instalaram por toda a cidade para eliminar aos tutsis. “Fui cúmplice.” Ela ia de um posto a outro vendendo cerveja e participando da seleção macabro que levava seres humanos a ser exterminados em fossas. “Crescemos com essa tensão na escola, com a história de que os tutsis eram os inimigos. Tudo foi uma questão política.” Após os massacres, assim como Valérie e milhares de ruandeses, tanto vítimas como verdugos, Mwamini fugiu para o Congo onde, de repente, refugiou-se uma nação rompida.
Bizimana também usa laranja. Como administrador de bairro, armou milícias. Foi julgado pelos tribunais criados em 2002 para realizar julgamentos coletivos que aliviassem a enorme carga judicial. “São minoritários os que professam a ideologia genocida. Ou, em todo caso, não podem proclamá-la”, conta ele. “Agora, aqueles que seguem pensando como há 20 anos, que é preciso eliminar os tutsis, são marginalizados.” E volta a fórmula: “Desde que o Governo implantou a política de reconciliação, entendemos que devíamos viver juntos.”
Os prisioneiros que fazem flexões, os que fazem fila para o exame de tuberculose e os que rondam com cadernos andam impolutos. “As celas não estão superlotadas”, explica com um inglês enrolado a tímida diretora-adjunta da prisão – outra mulher no comando. Embora haja informes que indiquem o contrário, e a prisão de Gitarama seja considerada uma das piores no mundo.
Mas de novo o que se vê – o que se deixa ver – parece impecável. A própria ministra da Saúde negou pessoalmente um pedido de visita ao hospital psiquiátrico de Ndera.
Entre os grupos de sigilosos ruandeses nos restaurantes caros do Kigali sempre há alguns que não vieram fazer turismo. Conhecem bem as curvas entre Kigali e Goma, do outro lado da fronteira, no Congo, a três horas de carro. Faz uns anos, um destes empresários sul-africanos contava como sua empresa certificava em Ruanda os minerais extraídos do Congo. Os dele não eram de sangue, dizia, embora não tenha demonstrado muito empenho em defender esse argumento.
O movimento entre Goma e Kigali faz esquecer frequentemente que haja uma fronteira. Os jovens de Goma que têm condições vão para a balada em Kigali e os empresários instalados em Kigali vão a Goma para fechar acordos. A estrada pela que agora circulam os micro-ônibus, surpreendentemente sem gritaria, é a que tomaram primeiro milhares de refugiados que fugiam das matanças, e depois milhares de genocidas quando viram vir as represálias na mudança de regime. Um dos viajantes, vestido com uma djellaba (traje tradicional islâmico), confessa pícaro que não é que seja muçulmano, mas a vestimenta lhe serve para traficar melhor as pedras que estava tirando do Congo. “Quem disse que não há corrupção em Ruanda? Há a mesma em ambos os lados, a diferença é que aqui se dissimula melhor.”
Congo sempre leva a Ruanda e Ruanda sempre leva ao Congo, que hoje paga a ressaca do genocídio. Os milhares de refugiados de um e outro lado concentrados ali geraram o pior conflito do planeta, com 5 milhões de mortos. Congo exporta minerais e Ruanda, as tensões que impede dentro de seu território com mão de ferro.
A oposição ruandesa viaja da África do Sul em um Range Rover negro sem placa e para em um posto de gasolina para, depois de umas voltas de precaução, chegar ao destino. As medidas não são um capricho. Um de suas líderes, Patrick Karegeya, apareceu estrangulado na noite de ano-novo em um dos melhores hotéis de Johanesburgo. E seu companheiro, o general Nyamwasa, escapou de três tentativas de assassinato. Ambos estavam muito próximos de Kagame durante a rebelião e depois, durante os primeiros anos de poder. Os familiares e o partido consideram que não há nenhuma dúvida sobre o braço executor. “Não acredito, sei. É o Governo ruandês que está por trás do assassinato de meu tio”, afirma David Batenga.
Só no exterior de Ruanda se podem escutar vozes com críticas ao regime. “Tudo aquele que indica que certas práticas não devem ser exercidas é declarado inimigo do Estado e é preso ou eliminado”, diz um opositor exilado. Frank Ntwali, presidente do Congresso Nacional Ruandês, olha sempre pelo retrovisor quando dirige. Está sempre alerta porque se sente ameaçado por dizer coisas como que “não há reconciliação nem justiça em Ruanda”. O que o mundo considera uma democracia exemplar é, para eles “um Estado de terror, uma ditadura”.
Estes dias o país se veste de púrpura, a cor do luto. A exumação de corpos segue ano após ano durante as datas em que se lembra o ocorrido e neste mês de abril, quando se completam 20 anos, as vigílias e atividades adotam um ar ainda mais trágico. Os jornais controlados pelo regime informam sobre o ritmo previsto para as cerimônias, enquanto este silêncio onipresente marca o débil equilíbrio que sucumbe na casa dos vizinhos congoleses.
O mundo observa o progresso de Ruanda ignorando a esteira que segue viva no Congo, enquanto a tensão não expressada ignora o estado de frustração interna. Desde seu exílio sul-africano, longe da colina que durante 90 dias se encheu de cadáveres, Frank Ntwali lança uma pergunta: pode-se falar de paz sem liberdade?
O genocídio ruandês: 800.000 mortes em cem dias
-6 de abril de 1994. O presidente ruandês, Juvenal Habyarimana, um hutu moderado, morre quando um míssil derruba seu avião. Uma comissão internacional independente responsabilizou em 2010 extremistas hutus. No dia seguinte começa a matança da minoria tutsi.
-9 de abril. Forma-se um Governo composto completamente por hutus, presidido por Jean Kambanda, que seria condenado à cadeia perpétua em 1998. França e Bélgica decidem tirar do país todos os seus soldados.
-21 de abril. O Conselho de Segurança da ONU aprova a retirada de suas tropas.
-Em abril se registra a primeira vítima espanhola, o missionário Joaquín Vallmajó, sequestrado após ser testemunha da morte de 2.500 pessoas.
-17 de maio. Uma resolução da ONU constata "atos de genocídio" e tenta enviar sem êxito 5.500 soldados.
-19 de julho. Paul Kagame, fundador da Frente Patriótica Ruandesa (FPR), formada por expatriados tutsis, toma o poder e expulsa os genocidas. Mas nas represálias morrem entre 25.000 e 100.000 hutus. O Governo hutu radical se refugia no Zaire junto a 2 milhões de hutus. Em Goma se forma o campo de refugiados maior da história.
-Em cem dias, entre abril e julho, 800.000 pessoas, em sua maioria tutsis, foram assassinadas, muitas a golpe de facão. Quase 500.000 eram mulheres violadas.
-Novembro de 1994. A ONU cria o Tribunal Penal Internacional para Ruanda. Ditou 61 condenações.
-Outubro de 1996. Quatro maristas são assassinados no Zaire por pedir uma intervenção internacional que evitasse o extermínio dos refugiados. A ONU denunciou em 2010 que Ruanda cometeu atos de genocídio ao invadir o Zaire em busca de soldados hutus refugiados ali.
-Em 1997, três voluntários dos Médicos do Mundo são metralhados porque dispunham de informação sobre os massacres da FPR.
-Setembro de 1998. Primeira condenação. É sentenciado à prisão perpétua Jean-Paul Akayesu, antigo prefeito da cidade ruandesa da Taba, por incitação direta e pública a cometer genocídio e crimes contra a humanidade.
-Junho de 2000. É assassinado Isidro Uzcudum, testemunha do assassinato de 1.325 pessoas pela FPR.
-Dezembro de 2008. O Tribunal especial da ONU para Ruanda condena o ex-coronel Theoneste Bagosora à prisão perpétua.
-Em 2011 foi condenada a primeira mulher, Pauline Nyiramasuhuko, antiga ministra ruandesa da Família. Ela foi acusada de ter organizado o sequestro e a violação de mulheres e meninas tutsis.
-Março de 2014. O Tribunal Penal de Paris condena o ex-capitão hutu Pascal Simbikangwa a 25 anos por cumplicidade no genocídio.
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