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A luz de uma vela quando está apagada

A desmemória que abateu Suárez simboliza a disputa que destrói a época que ele inaugurou

Juan Cruz
O Rei passeia com o ex-presidente Adolfo Suárez.
O Rei passeia com o ex-presidente Adolfo Suárez.ADOLFO SUÁREZ ILLANA

Disse Lewis Carroll: “E tentou imaginar como era a luz de uma vela quando está apagada”. Ele, Adolfo Suárez, pôde ver como se apagava. Por exemplo, ao misturar na memória o que deveria dizer sobre seu filho Adolfo quando este quis se aventurar na política ativa. Viu essa luz antes de mais nada num dia em que lhe coube presidir, já como ex-presidente de Governo, uma reunião da Associação da Luta contra a Dependência de Drogas. Começou a falar, soube que entrava nos escorregões da incoerência e cedeu a palavra. Uma noite, após a entrega dos prêmios Mariano de Cavia, quando ainda era muito cedo para que fossem detectados os sintomas, encontrou certos olhares de estupor quando, de repente, soltou uma frase que tinha pouco a ver com o que estava sendo dito ao redor. Depois riu. Suárez era Suárez. Seu amigo Sancho Gracia assim dizia: “Suárez era Suárez”.

A luz foi se apagando até que já não havia nada a fazer, ele não sabia o que havia acontecido, o que estava acontecendo, quem eram aqueles que o cercavam, como se chamavam, por que gostavam dele. O rei ia vê-lo de vez em quando, e também iam vê-lo políticos (uma vez foi Alfonso Guerra, um encontro muito especial), inclusive gente que, enquanto houve luz, não gostava tanto dele; mas Suárez (“Suárez era Suárez”) não teve rancor em vida, de modo que não iria levar rancor para a desmemória.

Nessas visitas era afetuoso e cordial, devia saber que esses vínculos existiram, ou devia intuir (alguns enfermos da desmemória se comportam assim) que as visitas merecem sempre a distinção da amizade. A visita mais famosa, além do mais por haver testemunho gráfico dela, foi a que lhe fez o rei, seu amigo. Seu filho Adolfo tirou deles, caminhando rumo à nebulosa do jardim, um retrato de costas. Naquele Adolfo Suárez que se alimentava como um passarinho – omelete, café com leite, cigarro – se notava a idade nos quadris e no andar, e quem sabe como seria seu semblante; o rei o segurava pelo ombro, dava-lhe afeto. Quem o via então sabia que ele já não sabia quem era o rei, nem o que aconteceu para que ele fosse o personagem audaz que colocou a Espanha no caminho de uma transição que depois o devorou, possivelmente para terminar devorando-se a si mesma.

A desmemória caiu sobre ele como uma nuvem que lhe turvou outros sofrimentos. A morte de sua mulher, Amparo Illana, ocorreu em 2001, dois anos antes de sua deterioração mental começar, mas a morte de Marian, sua filha, em março de 2004, já foi uma notícia que chegou a ele como um martelo sem som. Seu filho Adolfo se ocupou de todos os trâmites e quis simular tranquilidade, quietude e normalidade na visita habitual ao pai. Mas este, que foi (“Suárez era Suárez”) um dos espanhóis mais atilados do seu tempo, não havia perdido totalmente o seu poder de intuição, deteve o caminho do Adolfo mais jovem e o interpelou antes que o filho chegasse à sua altura. Você tem algo a me dizer. Claro que tinha algo a lhe dizer, “então me diga”. Marian morreu. Foi então que Adolfo Suárez, mergulhado na bruma da desmemória, perguntou quem era Marian.

O seguinte diálogo saiu em uma reportagem que eu mesmo publiquei aqui, em 14 de junho de 2009:

– Você a enterrou?

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– Sim.

– Fez muito bem.

Depois aconteceu o que acontecia todos os dias. O pai e o filho, com a mesma textura física, uma incrível semelhança nos gestos, no tom de voz, em certa picardia nos olhos, saíram para passear pela grama que seria anos depois cenário dessa fotografia em que o rei e o ex-premiê foram incapazes de falar de outra coisa senão aquilo que se diz entre desconhecidos.

Houve outro momento especial nessa etapa final da vida nublada do ex-presidente de Governo, cujo relato devo ao seu filho Adolfo, exemplar no tratamento do pai e exemplar no trato que mereceu essa tragédia familiar. Em um momento determinado, Suárez Illana, católico como todos os Suárez Illana, considerou que o pai deveria receber um sacerdote para se despedir em paz desta terra quando chegasse o momento. Foi então que Adolfo filho convidou para um jantar em sua casa Antonio Cañizares,arcebispo que depois começaria a ascender na Igreja.

Este foi o diálogo que me contou Adolfo entre o padre e o ex-premiê:

– Deseja que eu lhe administre o perdão?

Suárez respondeu ao sacerdote:

– Eu sempre estou disposto a dar e pedir o perdão.

A confissão prosseguiu, sem a presença do filho. O que o sacerdote disse a este, quando depois se abriram as portas do confessionário doméstico, foi o seguinte: “Pode ficar muito tranquilo”. Então, quando me contou estas coisas, Adolfo Suárez Illana me disse que via seu pai em paz. “Ele não é responsável por nada; sua perda me doerá, mas me dá alegria vê-lo alegre e em paz. Está vivo, e isso o transforma em um símbolo.” Acrescentou algo que ressalta como reflexão e como recriminação, consequência, talvez, daquilo que Suárez viveu quando era presidente do Governo e sofreu embates desumanos dos seus e dos contrários: “Se estivesse morto já o teriam esquecido; é uma chamada permanente; sua ausência se torna presente. Se estivesse bem não se calaria, e uma opinião dele, com o que sabe, certamente seria muito incômoda”.

Quando sobreveio sua desmemória, sua figura alheia, diluída, parecia um símbolo do tempo que se estava vivendo, em meio a uma disputa política que ia limitando cada vez mais o espírito do tempo que ele inaugurou. Sua morte parece certificar agora que aquela luz que foi se tornando uma brasa tênue, como a própria luz da transição, acabou também, foi embora para sempre, ou está oculta nas nuvens que ele também já não poderá ver nunca mais.

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