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Um sistema binário inventado na Polinésia séculos antes de Leibniz

Os nativos de Mangareva desenvolveram esse método para contar peixes, frutas, cocos, polvos e outros bens de diferente valor

Javier Sampedro

O genial matemático Gottfried Leibniz (1646-1716) não foi o primeiro a inventar o sistema binário atualmente utilizado por nossos computadores e telefones. Os nativos da Mangareva, uma pequena ilha da Polinésia, se anteciparam a ele em vários séculos. Os mangarevenses não tinham a menor intenção de inventar a informática, mas se deram conta de que o sistema decimal herdado de seus ancestrais – como o nosso – acabava sendo muito inconveniente para fazer os cálculos no mercado, e a ele acrescentaram um sistema binário que facilita muito as operações aritméticas mais comuns. Também Leibniz argumentou que seu sistema binário servia para simplificar as contas, mas ninguém lhe deu ouvidos.

Não se trata do primeiro sistema binário conhecido da era pré-Leibniz – os próprios hexagramas do I-Ching que inspiraram o grande matemático alemão constituem um sistema binário e têm quase 3.000 anos –, mas Andrea Bender e Sieghard Beller, do departamento de ciência psicossocial da Universidade de Bergen, na Noruega, mostram agora como os habitantes da Mangareva não só inventaram o sistema para contar peixes, frutas, cocos, polvos e outros bens de diferente valor em suas transações comerciais, como também que isso conduziu a uma aritmética binária que teria merecido a aprovação do Leibniz por sua simplicidade e naturalidade. Os autores acreditam que seu trabalho revele que o cérebro humano está naturalmente capacitado para a matemática avançada. Os resultados foram publicados na revista Proceedings of the National Academy of Science.

Entender a descoberta exige um repasse superficial da álgebra elementar. O sistema decimal ao qual estamos habituados – o mais comum em todo tipo de cultura humana, por se basear nos dez dedos das mãos – traz implícitas as potências de dez conforme a posição dos algarismos: no número 3.725, entende-se que o 5 está multiplicado por 1 (10 elevado a zero), que o 2 está multiplicado por 10 (10 elevado a 1), que o 7 está multiplicado por 100 (10 elevado a 2), e o 3 foi multiplicado por 1.000 (10 elevado a 3).

Num sistema binário, só há dois símbolos (convencionalmente 0 e 1, mas também podem ser dois estados de magnetização, como nos computadores), e as potências implícitas pela posição não são de base 10, e sim de 2. Por exemplo, no número binário 111, entende-se que o último 1 vai multiplicado por 1 (2 elevado a zero), o segundo por 2 (2 elevado a 1) e o primeiro por 4 (2 elevado a 2); equivale ao sete do sistema decimal.

Bender e Beller não descobriram nada semelhante a um pergaminho polinésio densamente coberto de zeros e uns, muito menos uma fita perfurada. O que eles fizeram foi analisar o idioma de Mangareva – uma das centenas de línguas da família austronésia faladas nas ilhas do Pacífico – no contexto do seu modo de vida tradicional, das características dos seus bens de consumo mais apreciados e das suas transações comerciais, oferendas, festas e outras atividades. Essa forma de vida está em acelerado processo de extinção, e com ela o sistema aritmético e a própria língua dos mangarevenses, da qual restam atualmente 600 falantes na ilha.

Um indício do uso das potências de 2 – ou seja, do sistema binário – no comércio tradicional de Mangareva são os valores (ou taugas) associados aos bens mais valorizados na ilha: tartaruga (1 tauga), peixe (2), coco (4) e polvo (8). Outro produto valioso é a fruta-pão (Artocarpus altilis). As frutas-pães de qualidade inferior valiam o mesmo que um coco (4), mas as melhores se igualavam ao polvo (8). Recorde que 1, 2, 4, 8… são as potências de 2.

Outro ângulo pelo qual aparecem essas mesmas potências, embora mais indireto – e combinado com o sistema decimal ao qual os mangarevenses nunca renunciaram totalmente – são as palavras (numerais) de uso mais comum na categoria das dezenas: takau (10), paua (20), tataua (40) e varu (80). Voltam a aparecer as potências de dois (1, 2, 4, 8), embora desta vez multiplicadas por 10, para cobrir outro leque de grandezas. As demais dezenas não são palavras novas, e sim combinações gramaticais das anteriores.

A vantagem desse sistema é que ele facilita muito as operações aritméticas fundamentais. Enquanto para somar de cabeça (sem contar) no sistema decimal é preciso decorar mais de 50 combinações de tabuada (como 4+7=11), no sistema de Mangareva basta saber que varu é o dobro de tataua, que por sua vez é o dobro de paua, que por sua vez é o dobro de takau. O resto emerge de um modo muito natural e fácil de utilizar.

Em outras palavras, trata-se essencialmente do mesmo argumento que o grande Leibniz usou. Nós, o resto, continuamos contando com os dedos.

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