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MARCO CIENTÍFICO

Sequenciado na Espanha o DNA humano mais antigo

Descobertos genes de hominídeos de 400.000 anos atrás. O fóssil os distancia dos neandertais e os vincula a uma linhagem siberiana

Ilustração de um grupo de hominídeos da Sima dos Ossos.
Ilustração de um grupo de hominídeos da Sima dos Ossos.KENNIS&KENNIS (SCIENTIFIC FILMS)

Os fósseis da serra de Atapuerca, na Espanha, voltam a pulverizar as fronteiras da ciência. E desta vez pelas mãos das mais avançadas técnicas genéticas. Uma equipe internacional formada por paleontólogos de Atapuerca e pelos maiores especialistas mundiais em DNA antigo, na Alemanha, conseguiu obter o DNA de um fóssil humano do sítio arqueológico da Sima de Los Huesos, de 400.000 anos atrás (do Pleistoceno Médio), e determinar o sequenciamento quase completo dos seus genes.

Trata-se do DNA mitocondrial, um orgânulo da célula que se herda só por via materna, com um único cromossomo. Ele proporcionou uma grande surpresa aos pesquisadores porque, ao compará-lo com os genomas de humanos modernos, neandertais, chimpanzés e bonobos, descobriu-se que os indivíduos da Sima estão aparentados não com os neandertais, como se esperava por causa dos traços que compartilham, e sim com uma obscura população dos montes Altai, na Sibéria, de cerca de 40.000 anos atrás, os denisovanos, dos quais foram encontrados pouquíssimos fósseis. Tão desconcertante é o resultado que os cientistas propõem outra hipótese para explicar essa relação genética entre populações tão distantes, os humanos da Sima e os denisovanos, uma linhagem aparentada com os neandertais, mas do leste eurasiático.

Essa descoberta implica antecipar em mais de 200.000 anos a sequência genética humana mais antiga, afirma a revista Nature, em cuja edição desta semana os cientistas apresentam os resultados do seu trabalho. Até agora, só se havia sequenciado um DNA tão antigo em animais, especificamente um cavalo de 700.000 anos atrás, conservado no solo congelado canadense. “Só há progresso no conhecimento quando se encontra o inesperado. Tudo aponta para uma maior complexidade no Pleistoceno Médio do que se supunha. Esperemos que futuras pesquisas esclareçam as relações entre os fósseis da Sima, os neandertais e os denisovanos”, afirma Juan Luis Arsuaga, codiretor de Atapuerca e responsável pelas escavações da Sima de Los Huesos [ou “fossa dos ossos”]. “Esse trabalho mostra que agora podemos estudar o DNA de fósseis com várias centenas de milhares de anos de antiguidade, abrindo a possibilidade de conhecer genes dos antepassados de neandertais e denisovanos. É tremendamente emocionante”, afirma Svante Pääbo, diretor do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva. Ignacio Martínez, professor da Universidade de Alcalá de Henares e um dos cientistas de Atapuerca, resume: “Com essa pesquisa, unimos a grandiosa coleção de fósseis da Sima, a melhor do mundo da paleontologia, com a equipe de Svante Pääbo, o melhor do mundo em DNA antigo”.

Uma pesquisa desse tipo vai se forjando pouco a pouco, avançando com muita cautela quando o que se tem em mãos são fósseis muito valiosos e frágeis, com 400.000 anos de idade. Os pesquisadores primeiro fizeram testes com ossos de urso, cujos fósseis aparecem misturados aos dos hominídeos na Sima de Los Huesos. E a chave estava em aplicar uma nova técnica de sequenciamento do DNA, desenvolvida por Matthias Meyer no prestigioso laboratório de Pääbo, que obteve, entre outros, o genoma do neandertal e dos indivíduos de Denisova. O sucesso com o urso, relatado neste mesmo ano na revista Proceedings da Academia Nacional de Ciências dos EUA, já apontava claramente qual seria o passo seguinte: os humanos da Sima. Mas é muito mais difícil fazer o sequenciamento genético dos humanos, salienta Martínez, porque é maior o risco de contaminação com DNA atual. Os cientistas colheram várias amostras de um fêmur da Sima, um total de 1,98 grama, fazendo microscópicas perfurações no fóssil, explicam os pesquisadores na Nature. E depois, uma vez obtido o DNA mitocondrial, aplicaram a avançada técnica aperfeiçoada por Meyer, que permite obter bons resultados com DNA antigo deteriorado.

Os cientistas, desconcertados, manuseiam quatro hipóteses

A equipe de Arsuaga desenterrou até agora mais de 6.500 fósseis na Sima, pertencentes a pelo menos 28 indivíduos, com todas as peças esqueléticas representadas, de distintas idades e ambos os sexos. É uma coleção única, que permite, aponta Martínez, aplicar as técnicas mais refinadas ao seu estudo, agora e no futuro.

Em meio à perplexidade pelo triunfo com o DNA, os pesquisadores de Atapuerca mal tiveram tempo de elaborar uma explicação científica dos resultados, e esboçam várias hipóteses no seu compacto artigo de três páginas e meia, incluindo notas. O problema é que os humanos da Sima de los Huesos, classificados oficialmente como Homo heidebergensis, uma espécie talvez ampla demais para ser eficaz, mostram traços distintivos iguais aos dos neandertais, como nos dentes, nas mandíbulas e na morfologia do crânio, apesar de serem muito anteriores.

Assim, considerou-se durante muitos anos que eles eram antepassados dos neandertais, essa população típica europeia que desapareceu há 30.000 anos, sem que se tenha encontrado uma explicação definitiva e contundente desse beco sem saída evolutivo, a partir do qual espécie humana atual dominou o continente.

Entretanto, o sequenciamento do DNA mitocondrial indica que o humano da Sima “está muito relacionado com a linhagem do genoma dos denisovanos, um grupo irmão dos neandertais no leste eurasiático”, escrevem os pesquisadores. E aqui eles lançam as quatro hipóteses para explicar essa estranha relação, aparentemente tão longínqua no espaço (da Europa Ocidental para o sul da Sibéria) e no tempo (os escassos restos denisovanos recuperados têm 40.000 anos, diante dos 400.000 da Sima).

A primeira ideia é que os ancestrais dos humanos da Sima poderiam estar relacionados com os dos denisovanos, mas Meyer, Arsuaga, Pääbo, Martínez e seus colegas consideram essa hipótese pouco provável, porque implicaria uma sobreposição espacial na Europa Ocidental dos antepassados dos siberianos e dos neandertais, e então seria preciso explicar (dificilmente) a divergência genética posterior das duas espécies compartilhando território. Além disso, os humanos da Sima certamente são anteriores à separação evolutiva entre denisovanos e seus primos neandertais.

O segundo cenário considera que o povo da Sima seria um grupo distinto dos outros dois, e que posteriormente ele transmitiu de alguma maneira seu DNA mitocondrial aos denisovanos. Mas isso pressuporia a aparição de vários grupos independentes com traços neandertais em espécies não neandertais. Parece difícil.

A terceira hipótese “é plausível”, dizem os pesquisadores: os homens da Sima podem estar relacionados com os ancestrais comuns de denisovanos e neandertais, mas então será preciso explicar por que há semelhança do genoma mitocondrial com os primeiros, mas não com os segundos. A quarta ideia sugere que o fluxo de genes de outra população levou o DNA mitocondrial aos denisovanos e à Sima de los Huesos ou a seus ancestrais... Então, mais de uma linhagem evolutiva humana andaria pela Europa em torno de 400.000 anos atrás.

As respostas devem ser dadas por novas pesquisas. Na frente genética, estão claros os seguintes passos daqui por diante: os pesquisadores querem analisar mais DNA mitocondrial para estudar sua variabilidade em diferentes indivíduos, e tentar dar o salto para o DNA do núcleo da célula, muito mais escasso nos fósseis. E, por que não, atrever-se com outros fósseis. “Embora a conservação do DNA de tanto tempo atrás possa estar favorecida pelas condições de conservação únicas da Sima de los Huesos, estes resultados mostram que as técnicas de sequenciamento de DNA antigo já se tornaram suficientemente sensíveis para que se façam futuras pesquisas com o DNA remanescente em sítios nos quais se encontram hominídeos do Pleistoceno Médio”, concluem Meyer e seus colegas.

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