Eleição na França neste domingo determina o caminho da Europa
Macron e Marine Le Pen disputam o segundo turno com visões antagônicas sobre o futuro da UE
É o ponto culminante de uma campanha atípica, cheia de escândalos e guinadas inesperadas, uma eleição genuinamente francesa e ao mesmo tempo global, uma espécie de reedição do choque do Brexit e Donald Trump. A publicação de e-mails roubados do Em Marcha!, o partido do candidato Emmanuel Macron, contamina a votação deste domingo na França, onde o centrista disputa a presidência com Marine Le Pen, líder do partido de extrema direita Frente Nacional. Macron é o favorito. A operação é similar à que golpeou a candidata democrata Hillary Clinton nas eleições norte-americanas de novembro e pode ter contribuído para a vitória do republicano Donald Trump. Como nos EUA, os franceses escolhem entre dois programas antagônicos, que conduzem a França e seus parceiros europeus por caminhos opostos.
Se for necessário lembrar que as eleições francesas são globais, e que a que se disputa neste 7 de maio na França terá ecos além de suas fronteiras, aí está a “ação de pirataria maciça e coordenada” que o Em Marcha! denunciou na sexta-feira à noite. Pouco antes, tinham começado a ser divulgadas em fóruns da internet e nas redes sociais informações internas do partido em forma de e-mails, contratos e documentos contábeis.
Durante todos os meses de longa campanha a França temeu uma operação desse tipo. Como Clinton, Macron defende manter a política externa vigorosa diante da Rússia de Vladimir Putin. Como Trump – ou, pelo menos, o Trump da campanha –, Le Pen se declara próxima de Putin e defende uma guinada na política externa francesa para acomodar os interesses russos.
Não há prova da autoria do ciberataque que levou à difusão maciça de documentos a menos de 48 horas das eleições, mas tampouco é a primeira agressão que o Em Marcha! sofre. Alguns peritos apontaram para grupos russos – os mesmos que no ano passado roubaram e difundiram correios eletrônicos da campanha de Clinton – como responsáveis pela ação.
O Em marcha! dizia que esses ataques tinham sido infrutíferos, que as medidas preventivas haviam sido eficazes. Até agora. O ciberataque que o partido de Macron denunciou na sexta-feira, ocorrido semanas antes, permitiu aos hackers se apoderarem de e-mails privados e profissionais de militantes e dirigentes da campanha. Alguns documentos publicados são falsos e servem “para semear a dúvida e a desinformação”, segundo um comunicado, que fala de “uma desestabilização democrática, como se viu nos Estados Unidos durante a última campanha presidencial”. O presidente François Hollande prometeu que o ataque não ficaria sem resposta.
Que os documentos tenham sido publicados alguns minutos antes do fim oficial da campanha e do início do silêncio imposto pelo dia de eleição traz ainda mais confusão. Impede os candidatos de reagir – apesar de alguns de seus colaboradores terem feito isso – mas limita o impacto no resultado. Não há tempo hábil para examinar a veracidade dos arquivos nem o valor como informação.
“Não acredito nem um pouco que este fato [o chamado Macronleaks] tenha algum impacto”, disse no sábado, dia 6 de maio, Frédéric Dabi, do instituto de pesquisas Ifop. “Seja o que for que [Macron] tenha feito, ou que tenha escondido, não é a 24 horas das eleições que vai mudar alguma coisa”, disse Jean Messiha, coordenador da campanha de Le Pen, a um grupo de correspondentes.
A Comissão Nacional de Controle das Campanhas Eleitorais na França avisou sobre as possíveis consequências penais da divulgação de dados fraudulentos roubados. Os meios de comunicação franceses fizeram uma cobertura modesta da operação, o que dificulta sua repercussão na decisão dos eleitores.
O efeito pode ser outro. Primeiro, semear dúvidas sobre a honestidade de Macron se for eleito presidente. E, segundo, prejudicar a campanha para as eleições legislativas de junho, nas quais o novo chefe de Estado buscará maioria para governar.
Macron e Le Pen se classificaram para o segundo turno depois de serem os candidatos mais votados no primeiro, em 23 de abril. As pesquisas para o segundo turno são taxativas. Todos, unanimemente, preveem uma vitória completa de Macron sobre Le Pen. A vantagem varia entre os 18 e os 26 pontos percentuais, fora de qualquer margem de erro. Nos bastidores, responsáveis pela Frente Nacional de Le Pen admitem que a vitória é quase impossível e que o decisivo é saber se sua candidata poderá alcançar o limite de 40% dos votos. Em 2002, seu pai, Jean-Marie Le Pen, obteve 18% dos votos.
A eleição é feita como um referendo múltiplo. É um referendo sobre a Europa e o euro, e um segundo turno do referendo sobre a Constituição europeia de 2005, que ganhou o não. Le Pen propõe em seu programa a saída da UE e do euro para voltar ao franco, posição que suavizou na reta final da campanha. Macron promove uma maior integração europeia a partir de um relançamento da aliança franco-alemã, que foi o motor da construção da comunidade desde sua fundação depois da Segunda Guerra Mundial. Os franceses terão hoje duas opções muito contrastantes: UE e euro, sim ou não.
Mas não é tão simples. A este referendo, outro se sobrepõe: Frente Nacional, sim ou não. A Frente Nacional, apesar do processo de “desdemonização” dos últimos anos, sob a liderança de Marine Le Pen, continua sendo um partido pária para muitos franceses, de esquerda ou de direita. Seu nome – o do partido e o da própria Le Pen – carrega o estigma das tradições mais tenebrosas da direita europeia do século XX. Há eurocéticos que votariam em um candidato contrário à UE, mas nunca em Le Pen, por tudo que sua proposta representa.
Poucas vezes as opções são tão nítidas, tão diferentes. Na economia, um partidário de uma social-democracia com sotaque liberal, ao estilo da terceira via de Tony Blair ou de Gerhard Schröder, contra uma defensora do intervencionismo econômico do Estado, da redução da idade de aposentadoria e de deixar intacto o estado de bem-estar. Quanto à imigração, a defesa de uma França fechada ao estrangeiro e o fechamento de fronteiras a uma França diversa e aberta para o mundo. O nacionalismo diante do patriotismo, nas palavras de Macron. Ou, segundo a terminologia de Le Pen, o soberanismo frente ao globalismo.
Um dos dois governará a França – sexta economia do mundo, potência nuclear, membro do Conselho de Segurança da ONU – nos próximos cinco anos. Se têm algo em comum, é que fizeram voar pelos ares o velho bipartidarismo francês. Pela primeira vez na V República, neste domingo os franceses não terão nas cédulas nenhum dos dois grandes partidos – a centro-esquerda socialista e a direita de tradição gaullista – até agora hegemônicos.
Macron e Le Pen são candidatos com partidos fracos, construídos sob medida para eles. Ambos confirmam a ideia que o general De Gaulle, refundador da França moderna, tinha da eleição presidencial: “O encontro entre um homem e um povo”. A liturgia – apesar dos hackers, apesar das redes sociais, apesar da globalização – não mudou. A França se vê cara a cara consigo mesma, e diante do mundo.
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