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Vírus do ebola se esconde em alguns sobreviventes e pode causar surtos anos depois

Reaparição da doença em 2021, associada à reativação do vírus em um sobrevivente da epidemia de 2016, coloca o foco nas mais de 18.000 pessoas que superaram a peste

Uma sobrevivente do ebola se despede após alta em um hospital dos Médicos Sem Fronteira em Guekedou (Guiné), em 2014.
Uma sobrevivente do ebola se despede após alta em um hospital dos Médicos Sem Fronteira em Guekedou (Guiné), em 2014.Sylvain Cherkaoui / MSF
Manuel Ansede

O mortífero vírus do ebola pode se esconder em alguns sobreviventes e se reativar até mesmo cinco anos depois, como revela a análise de um enigmático surto detectado no começo de 2021 na Guiné, um país até então considerado livre da doença desde 2016. A descoberta obriga a refazer a estratégia contra esse assassino microscópico, um organismo de 0,001 milímetro de comprimento que até agora matou um em cada dois infectados. Os dois maiores surtos da história, registrados na última década na África ocidental e na República Democrática do Congo, acabaram com a vida de 13.000 pessoas, mas há mais de 18.000 sobreviventes. “Isso significa que o risco de reaparição é maior do que nunca”, alertou na revista Nature uma equipe internacional de cientistas, liderada pelo médico guineense Alpha Kabinet Keita.

A antropóloga espanhola Almudena Marí Sáez é uma dos especialistas que passaram dois meses na cidade guineense de Gouécké pesquisando a origem do último surto. A paciente zero foi uma mulher de 51 anos, parteira do hospital local, que foi internada em 21 de janeiro com dor de cabeça, náuseas e espasmos. Em um país livre de ebola, os médicos não suspeitaram do vírus e a mulher recebeu um diagnóstico de malária e salmonelose. Morreu poucos dias depois. E, depois dela, morreram os familiares que cuidaram dela: sua mãe e três de seus irmãos.

“O ebola é a doença do amor, porque só se contaminam as pessoas de quem você gosta”. Se uma pessoa está doente e com diarreia, será seu companheiro ou companheira, sua mãe e quem vive com ela que, por conta do apoio, se contaminará. E o mesmo com os vômitos e as hemorragias. É um contato estreito e afetivo”, diz Marí Sáez, do Instituto Robert Koch, em Berlim. A antropóloga pede para que não se estigmatizem as pessoas que superaram a doença. Os sobreviventes do ebola não são bombas-relógio capazes de desencadear uma epidemia após pegar o metrô em qualquer cidade do mundo. Até agora, os casos de reativação parecem “relativamente excepcionais” e, além disso, o vírus não se transmite tão facilmente.

A antropóloga espanhola Almudena Marí Sáez, durante um trabalho de campo, em abril.
A antropóloga espanhola Almudena Marí Sáez, durante um trabalho de campo, em abril. Colección personal

O ebola foi detectado pela primeira vez em 1976, perto do rio Ebola, na República Democrática do Congo, e desde então provocou pelo menos 30 surtos. O maior de todos começou na Guiné em dezembro de 2013 e se espalhou rapidamente pela Libéria e Serra Leoa, com casos isolados até mesmo na Espanha, onde a auxiliar de enfermagem Teresa Romero se infectou após atender dois missionários repatriados da África ocidental. O vírus matou 11.000 pessoas e aparentemente desapareceu em junho de 2016, deixando 17.000 sobreviventes. As análises genéticas mostram agora que a variante detectada neste ano, com mutações muito características, é a mesma que a do grande surto anterior, o que faz com que seja “muito improvável” que sua origem seja um salto recente de um morcego, um símio e outro reservatório animal do vírus.

A equipe da antropóloga espanhola entrevistou os familiares e colegas da parteira falecida, para tentar averiguar como se infectou. Não consta que a mulher tenha desenvolvido a doença no surto de 2013-2016, ainda que os cientistas não descartem que possa ter sofrido uma infecção leve, sem perceber. O vírus matou à época 20 de seus parentes distantes. Outra possibilidade é que tenha se infectado neste ano em seu hospital, ao entrar em contato com fluidos corporais de algum sobrevivente com o vírus reativado. E a terceira hipótese é a transmissão sexual, através do sêmen de um sobrevivente, mas também não consta que seu marido —polígamo, com outra esposa e uma amante— tenha se infectado na epidemia anterior. Ainda não existe solução ao enigma.

Quando o ebola apareceu na Guiné em 2013, a antropóloga Almudena Marí Sáez já estava lá pesquisando outro vírus hemorrágico, o causador da febre de Lassa. Sua equipe rastreou à época o surto de ebola e propôs a possibilidade de ter se iniciado por um garoto infectado após brincar com morcegos em uma árvore em Meliandou, uma aldeia no sul da Guiné. Marí Sáez lembra que os sobreviventes daquela epidemia “sofreram ostracismo em suas comunidades, perderam seus trabalhos, as pessoas não se aproximavam deles, tinham que ir aos bares com seus próprios copos, iam fazer compras e não vendiam comida a eles”. A antropóloga teme “uma nova estigmatização” de pessoas que “ao mesmo tempo foram vistas como heroínas”.

O virologista Rafael Delgado estuda fragmentos do vírus do ebola em seu laboratório do Hospital 12 de Outubro, em Madri. O especialista lembra que o surto de fevereiro de 2021 na República Democrática do Congo já foi vinculado a uma possível transmissão sexual do vírus por um sobrevivente da epidemia anterior no país, dada como finalizada em junho de 2020. “O novo estudo na Guiné é uma confirmação do que se esperava. O especial agora é o tempo: esses cinco anos”, afirma.

Delgado afirma que já está “absolutamente claro” que o vírus do ebola é capaz de permanecer em estado latente em “santuários imunológicos” do corpo humano, como os testículos e o olho, a salvo das defesas do organismo durante anos. Os números oficiais do surto de 2013-2016 falam de 28.000 infectados, mas Delgado acha que podem ser centenas de milhares. “Até agora, pelo que sabemos, [as reativações de vírus latentes] são casos excepcionais, mas podem existir e é preciso levá-los em consideração”, alerta o virologista, que não fez parte do novo estudo. Em sua opinião, o risco de que a doença apareça em um país como a Espanha é “extraordinariamente baixo”.

Delgado também lembra que já há duas vacinas contra o ebola, fabricadas pela Merck e a Janssen, e alguns tratamentos relativamente eficazes, como o Inmazeb, da empresa norte-americana Regeneron. “Seguramente é conveniente fazer uma campanha de vacinação extensa para evitar que o vírus possa voltar a circular nas regiões em que ocorreu transmissão muito ativa”, diz o pesquisador.

O médico Alpha Kabinet Keita, diretor-adjunto do Centro de Pesquisa e Formação em Infectologia da Guiné, e sua equipe consideram que “se justifica a vigilância contínua dos sobreviventes do ebola” para evitar possíveis recaídas. A antropóloga Almudena Marí Sáez afirma que é preciso evitar a estigmatização das vítimas a qualquer custo. A sobrevivente espanhola Teresa Romero descreveu em 2017 o calvário que sofreu três anos antes. “Sentia que a morte me assombrava, um ente apoiado em meu ombro me esperava tranquilo. Algo que não se pode explicar com palavras. Até hoje não sei como consegui sair de lá”, relatou a auxiliar na revista Enfermería Clínica. “Ninguém pode imaginar o que eu vivi em outubro de 2014, com exceção dos sobreviventes do ebola”.

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