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O que os epidemiologistas aprenderam com o coronavírus após um ano e meio de pandemia

Mais de 600 especialistas em saúde pública participaram da reunião anual da Sociedade Espanhola de Epidemiologia, cujo eixo principal foi o aprendizado sobre a covid-19

Funcionária desinfeta supermercado, em março de 2020.
Funcionária desinfeta supermercado, em março de 2020.Juan Diego Quesada
Pablo Linde

Durante os primeiros anos da pandemia de Aids, quem era contaminado morria sem saber muito bem o por quê. O que chegou a ser conhecido como “câncer gay” afetou sobretudo essa comunidade, sem que ninguém soubesse como se transmitia ou se curava: o diagnóstico era uma sentença de morte. Foi uma época de medo, estigma e perplexidade. Na atual pandemia de covid-19, os cientistas identificaram o vírus que causava a doença antes mesmo que ela tivesse um nome, antes até que a grande maioria da população tivesse sequer ouvido falar dele. Passaram-se alguns meses de dúvidas, de andar às cegas e “matando moscas com canhões”, nas palavras de Fernando Simón, principal autoridade epidemiológica da Espanha, que tem sido o protagonista da resposta à epidemia no país. Ainda há muito a aprender, mas já se sabe bastante sobre o que é fundamental. Apesar dos receios de parte da população por supostas mudanças de critério nas medidas, elas foram de fato o reflexo do avanço da ciência nos 40 anos que separam o início das duas pandemias.

Simón fez referência a isso na reunião anual da Sociedade Espanhola de Epidemiologia (SEE), realizada na semana passada em León. Foi presencial. Depois de um ano e meio de videoconferências, muitos dos especialistas voltavam a se ver, ou o faziam pela primeira vez. Identificavam por trás das máscaras os colegas e jornalistas com quem mantiveram longas conversas ou troca de pareceres nas redes sociais. Porque essa foi justamente uma das lições aprendidas desde que em 11 de março de 2020, há apenas um ano e meio, a Organização Mundial da Saúde classificou a covid-19 como uma pandemia: apesar de o contato social ser o que espalha o vírus, o evento pode transcorrer com bastante segurança se forem adotadas certas medidas.

Essas são algumas das lições que os epidemiologistas compartilharam em um congresso que contou com a presença de mais de 600 especialistas e a apresentação de mais de 800 trabalhos:

Encontros presenciais são seguros (em certas circunstâncias)

A primeira coisa que Elena Vanessa Martínez, presidenta da SEE, pediu à comissão organizadora do congresso é que fosse, na medida do possível, presencial. “Descobrimos que muitas coisas podem ser feitas remotamente, mas a maneira de compartilhar o conhecimento e as experiências em um encontro pessoal é muito mais rica”, diz. Num contexto de incidência decrescente, com praticamente todos os participantes vacinados, foi aplicado um protocolo rigoroso de segurança: lotação limitada nas salas das palestras, com pelo menos dois lugares de separação entre os participantes, ventilação cruzada, gel para as mãos e, claro, máscaras. “Havia um plano de contingência caso os dados fossem muito ruins, para poder fazer tudo eletronicamente, mas não foi necessário”, diz Martínez. A presidente da comissão organizadora, Tania Fernández Villa, argumenta que as medidas se baseiam nas que já tiveram sucesso no evento do ano passado na Universidade de León, que foi em sua maioria presencial. As escolas também conseguiram. Como lembrou Simón, “a Espanha foi o único país da Europa e um dos poucos do mundo” a manter a frequência de quase 100% em salas de aula sem que os casos disparassem.

Um restaurante no Parc Vallès, de Terrassa, em novembro de 2020.
Um restaurante no Parc Vallès, de Terrassa, em novembro de 2020. Cristóbal Castro

O vírus está no ar, e o maior perigo são os ambientes fechados

Certamente, a maior mudança de paradigma desde o início da pandemia foi saber como o coronavírus pode ser transmitido. A princípio se acreditava que o contágio era produzido quase exclusivamente por pequenas gotículas de saliva que permanecem nas superfícies e que, se vierem de uma pessoa infectada, podem levar o vírus a outras pessoas se elas entrarem em contato com as gotículas e depois levar a mão às mucosidades (boca, nariz, olhos). “Nenhum contágio como esse foi comprovado”, diz José Luis Jiménez, um dos pesquisadores que insistia na época que o vírus poderia ser transmitido pelo ar. Hoje isso está claro e as imagens que se viam durante o confinamento, de supermercados onde as pessoas andavam com luvas e sem máscara, parecem agora um tanto grotescas. A presidenta da SEE acredita que, por isso, devemos insistir em ter mais cautela onde “se sabe que há mais transmissão do vírus”: em ambientes internos onde as pessoas costumam ficar sem máscaras, como locais fechados onde se come e bebe.

Confinamentos domiciliares foram úteis, já o isolamento de áreas não está claro

O confinamento no segundo trimestre de 2020 em praticamente todo o mundo foi uma medida muito drástica, mas também útil para reduzir a transmissão de um vírus naquela época muito mais desconhecido e circulando de forma descontrolada. É a medida não farmacológica que mais clara e radicalmente reduz as infecções, mas ao mesmo tempo a menos pragmática e a que mais afeta a vida da sociedade e a sua economia. Para não ter que recorrer a uma decisão tão draconiana, com o passar dos meses as autoridades sanitárias adotaram isolamentos de áreas mais específicas. E a utilidade disso é menos clara.

Adrián Hugo Aginagalde, que coordenou uma mesa redonda sobre medidas não farmacológicas contra a covid-19, explica que muitas delas foram aplicadas com evidências “muito limitadas” e que há “enormes dificuldades” para sua avaliação. “Algumas das restrições que prejudicam a mobilidade nem sempre surtem os resultados esperados. Houve experiências aparentemente bem-sucedidas e outras em que é muito difícil calcular os efeitos.” Um exemplo é o confinamento na Comunidade de Madri, que teve como referência as áreas básicas de saúde em que a região é dividida. Dois estudos foram apresentados a esse respeito. Um, iniciado em setembro de 2020, mostra que essa medida não teve impacto na redução da transmissão, que já se iniciava antes de sua adoção. O outro, sobre os confinamentos posteriores, com resultados muito mais ambíguos, em que algumas restrições em áreas de incidência muito alta parecem surtir algum efeito e em outras sem muita transmissão, muito menos. Carlos Fernández, autor de um desses estudos, avalia que a utilidade desta medida é “muito limitada” e acredita que não é a ideal.

Um dos problemas, argumenta Aginagalde, é que em locais onde se permite a mobilidade da mão de obra, quando se trata de áreas onde este é justamente o motivo do deslocamento, os fechamentos por zonas perdem quase toda a eficácia. Também não há evidências para afirmar, diz este especialista em saúde pública, que é útil bloquear a passagem entre comunidades autônomas, como foi feito durante meses na Espanha.

As máscaras servem para frear o contágio, mas não se sabe quanto

É muito difícil avaliar a quantidade de infecções que as máscaras são capazes de impedir. Como em todas as intervenções não farmacológicas, são tantos os fatores que influenciam as relações sociais que é praticamente impossível isolar cada um para saber qual o papel que desempenha. Em um dos maiores estudos feitos até hoje (ainda preliminar), realizado com centenas de milhares de pessoas em Bangladesh, ficou demonstrado que em populações onde o uso de máscaras aumentou, o risco de contágio caía de 8,6% para 7,6 %. Mas a pesquisa está repleta de limitações: não foi avaliado se o uso era correto, não foram medidos dois grupos em que um não usava máscara e o outro, sim. Só foram contabilizados os casos sintomáticos... Entre os idosos, a redução do risco foi maior, 34,7%, em comparação com 9,3% na população em geral. Provavelmente porque foram detectados mais casos por haver mais sintomas. Em última análise, sabe-se que as máscaras são úteis, mas é muito difícil definir quanto.

A idade é o maior fator de risco

Uma das conclusões que ficaram claras desde os primeiros casos de covid-19 é que os idosos são os mais vulneráveis. A idade é o fator que mais se correlaciona com o risco de morrer pelo coronavírus, com muita diferença dos demais. Mas, quando se aprofunda nos dados, descobre-se que, mais do que a idade, o problema parece ser a fragilidade (embora com muita frequência andem de mãos dadas). Um estudo preliminar realizado na Catalunha e apresentado no congresso da SEE aponta que, em pessoas com mais de 65 anos, o risco de morrer é quatro vezes maior (40% dos infectados) entre pessoas com fragilidade grave do que em pessoas cuja saúde é considerada robusta, segundo um índice baseado em déficits registrados no histórico clínico de atendimento básico.

Coronavirus Spain
Vacinação contra covid-19 na casa de repouso DomusVi, em Leganés (Madri), em janeiro. Olmo Calvo

A probabilidade de contágio é determinada por condicionantes sociais

Se o risco de morrer por covid-19 é determinado pela idade, o de contágio é mediado por fatores sociais que “não foram suficientemente estudados”, na opinião de Carmen Vives, professora de Saúde Pública da Universidade de Alicante. É o que os especialistas chamam de sindemia: as pessoas que precisam sair para trabalhar, pois não podem fazer isso em casa, as que moram mais aglomeradas e as que estão em situação de maior vulnerabilidade correm muito mais risco do que as que têm melhores condições socioeconômicas. Outro estudo preliminar também realizado na Catalunha constatou que, na medida em que as casas de repouso eram para pessoas com maior poder aquisitivo, o risco de morrer diminuía. Em epidemiologia, há décadas se sabe que o código postal influencia mais a saúde do que o genético. E isso continua em vigor com a covid-19.

É preciso melhorar os sistemas públicos de saúde

Se há uma unanimidade entre os membros da SEE é que os sistemas públicos de saúde precisam ser melhorados. Manuel Franco, porta-voz da Sociedade Espanhola de Saúde Pública (Sespas), olha sem esperanças para o esgotamento das equipes dos hospitais com esse foco: “Não aumentaram o pessoal, as tecnologias não foram suficientemente melhoradas. Tivemos a maior crise de saúde em um século e não vemos dinheiro sendo investido nisso. Parece incrível”, lamenta.

Na palestra de abertura do congresso da SEE, Miguel Hernán, professor de epidemiologia da Universidade de Harvard, fez uma revisão das deficiências e virtudes que a Espanha teve durante a pandemia. Um dos maiores déficits que ele apontou é a falta de uma grande agência de saúde pública, que o Governo se comprometeu a criar. “É o modelo de outros países, como Alemanha e Estados Unidos, uma instituição líder dirigida por cientistas conceituados e que contribui de forma independente com recomendações ao poder político. Eles são os tomadores de decisão, mas se não seguirem os conselhos [dos especialistas] terão que explicar seus motivos.” Na opinião de Hernán, a Espanha tem uma grande infraestrutura na coleta de dados, mas é incapaz de pôr em prática um sistema que os utilize, os valorize e os transforme em recomendações para os políticos.

É preciso continuar aprendendo, e para isso é necessário avaliar

Os participantes do congresso esperaram por uma mesa realizada na quinta-feira. Ali estavam sentados Fernando Simón e Helena Legido, signatária com outros 19 cientistas de uma carta na revista The Lancet que pedia a revisão independente da gestão da pandemia na Espanha, e membro de um painel de especialistas que avaliou a resposta internacional à covid-19. Um formato um tanto rígido não permitiu o confronto de ideias, para decepção de parte do público. Mas Legido continuou defendendo a necessidade de avaliar tudo o que aconteceu para que o país possa tomar melhores decisões no futuro. “Apesar de todas as lições que tínhamos aprendido com as crises de saúde anteriores, o mundo não estava preparado para lidar com esta. E na Espanha não temos uma cultura crítica da avaliação. Já aconteceu comigo quando estudei o impacto das medidas de austeridade, é muito complicado que os governantes escutem e reajam”, disse ela. Simón, evitando entrar em confronto, se defendeu: “É difícil que pudesse haver uma revisão independente porque todos aqueles que melhor sabem o que se passou estão trabalhando incessantemente para enfrentar a pandemia”.

E, sem uma avaliação rigorosa e independente, será difícil tomar medidas para mitigar os efeitos de uma futura pandemia. Que chegará.

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