O relato de uma brasileira confinada com a família em Madri: “O pesadelo para o imigrante é duplo”

Família vive isolada desde que a Espanha impôs quarentena. “Parece ficção científica. As ruas desertas, a aflição das crianças chutando bola dentro de um miniapartamento”

Cartaz onde estudantes oferecem ajuda aos vizinhos para cuidar das crianças, publicado no Twitter por Camila Pinheyro. TWITTER / 11/03/2020Europa Press

Estou vivendo a maior crise de saúde pública da história recente da humanidade em um dos principais focos de contaminação: Madri. Vivi quase sete anos na Espanha, depois passei seis no Brasil e, agora, estou há seis meses na Espanha de novo. Volta e meia não lembro mais porque vim, mas em uma situação como essa estar em um país economicamente e democraticamente estável dá muita tranquilidade.

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Na semana que passou todas as escolas da comunidade e da cidade de Madri foram fechadas, além das creches e universidades. Tenho filhos em duas dessas instituições: o mais velho em um colégio público e uma pequena em uma creche privada. No mesmo dia em que o Governo anunciou o fechamento dos centros educativos, a creche particular enviou um e-mail para os pais confirmando a interrupção das atividades e acalmando os ânimos com relação ao impacto econômico da situação. Ainda no primeiro parágrafo: “De momento, não sabemos como vamos poder administrar do ponto de vista econômico essa contingência, embora suponhamos que vão nos posicionar sobre isso. Iremos informando de todas as notícias que recebermos.” Ou seja: não vai ser do meu bolso.

No caso do meu filho mais velho, apesar de a escola dele ser pública, temos um custo mensal de 100 euros de almoço (559 reais) e 23 euros (cerca de 128 reais) das aulas de futebol. Também recebemos comunicados afirmando que esses valores nos serão reembolsados o mais breve possível.

Meu marido, espanhol, agiu com naturalidade. Eu fiquei tão em choque que quis escrever esse texto porque como mãe brasileira ,de classe média, sei que o custo de tudo-e-de-qualquer-coisa-que-acontecer-no-mundo sempre vai parar no nosso bolso. A maior crise de saúde pública que o mundo viveu nas últimas décadas não deveria ser assumida pelo cidadão, independentemente de ele ser rico ou pobre. Mas no Brasil ele acaba sendo. Por todos, pelos mais pobres principalmente.

Há bastante tempo estávamos pensando em como o tecido social poderia ajudar o cidadão a diminuir o impacto que a crise do coronavírus vem gerando na rotina das pessoas. Sabíamos que isso seria palpável quando as escolas fechassem e mais de um milhão e meio de estudantes passassem a ter que ficar em suas casas. Isso impacta todo o sistema: como o modelo presencialista-quase-anos-90 da Espanha se adaptaria ao “teletrabajo” (trabalho remoto)? Teriam em conta a conciliação, tão debatida e reclamada pelas mães e famílias espanholas? Haveria impacto nos salários dos trabalhadores não CLT?

Agora já se vão 1.149 dias de confinamento. Na verdade, foram apenas 4, mas parecem eternos. Oficialmente estamos em quarentena desde sábado, quando o presidente declarou estado de alarme, o segundo desde a redemocratização da Espanha. Mas para nós, mães trabalhadoras, desde o aviso do fechamento das escolas, o pânico chegou na quarta, através de uma notícia no celular.

Isabela Sperandio com os filhosArquivo pessoal

Quem vai ficar com meus filhos? Como eu vou trabalhar? Como vou manter essas crianças dentro de casa por 2 semanas? E o aniversario de 7 anos do menino? Ainda vai dar para gente comemorar no parque?

Ansiedade. Um pouco de pânico. A solidão da imigrante. E logo a sensação de que as coisas se ajeitam. No fim, ia trabalhar só de manhã, de tarde ficaria com as crianças, seria até bom. No dia seguinte, fomos ao parque depois do almoço. Aí meu marido teve febre, avisei minha chefa, cumpri o protocolo, não fui mais trabalhar. A febre foi só um susto, ele foi ao médico e não era nada. Mas a gente foi vendo a água subir, como todo mundo.

No dia seguinte, fomos ao parque de Berlim, um espaço grande que temos aqui no bairro. “Vou correr”, pensei, lembrando das recomendações do meu psicólogo de São Paulo, que insistia em tentar me dopar com endorfina em vez de aprovar minha ideia de ir a um psiquiatra tomar ansiolítico. Demos uma volta completa, algumas pessoas treinavam, outras corriam, todas mantendo a tal da distância de segurança. No dia seguinte, já sob estado de alerta, todos parques foram fechados. Eu desci com a bebê para comprar fralda e vi um cidadão saltando a faixa que impedia a circulação no parque. Também vi a polícia nacional ligando a sirene e falando com ele por megafone. As multas para quem sair para passear são de pelo menos 150 euros (cerca de 838 reais).

Hoje é segunda-feira. Na sede do EL PAÍS, onde trabalho, o maior jornal do país, menos de uma dezena de pessoas está trabalhando fisicamente, todos os demais estão (estamos) “teletrabajando”. Todos os bares, restaurantes e cafeterias, que são a alma do país, também estão fechados. Fui ao mercado aqui embaixo de casa comprar chorizo paras lentilhas e a fila não é mais para pagar, é pra fora, na rua. Só entra uma pessoa por vez.

De vez em quando a gente ainda acha que isso é um sonho, um pesadelo de ficção científica. As ruas absolutamente desertas, o silêncio, a aflição das crianças chutando bola dentro de um miniapartamento-de-classe-média-europeu, a bebê nervosa. Os deveres de casa que o mais velho precisa fazer. O café da manhã, almoço, lanche da tarde e jantar para 4 pessoas todos os dias. A falta de previsão, o home office, a tentativa de conciliar tudo sem ter para onde ir.

As aulas, que em princípio estavam canceladas por 2 semanas, devem seguir suspensas até a Semana Santa, que é de férias nos colégios. Mas isso ninguém falou, é só uma sensação.

Um ano perdido. Processos de seleção de trabalho paralisados, frilas, encontros com a família, comemorações de aniversário, tudo suspenso.

E a gente sabe que isso não é nada. Tem gente morrendo, já são mais de 300 mortos. Muita gente perdendo entes queridos sem poder se despedir, se consolar. Outro dia vi no Twitter o relato de uma pessoa cuja avó faleceu: “Vocês imaginam como é não poder se despedir? Minha avó faleceu e não pude ir ao velório, porque não teve. Minha mãe, que perdeu a mãe dela, mora a dez minutos da minha casa e eu não posso visitá-la para dar um abraço”.

São muitos mortos e a perda humana ainda não é contabilizada, não é discutida porque tudo vai muito rápido. As vítimas são pessoas que trabalharam a vida inteira, colaboraram para criar um sistema de bem-estar social potente e estável que é justamente o que dá a capacidade para a Espanha enfrentar essa crise de saúde pública, social e econômica de pé, garantindo a manutenção da maioria dos nossos direitos mais básicos. Essas pessoas, que construíram tudo isso, estão morrendo numa velocidade maior do que podemos acompanhar. E é por isso que estamos confinados, para cuidar deles.

Eu sei que se eu, meu marido ou meus filhos nos contaminássemos com o coronavírus, não teríamos problemas. A maioria dos casos entre jovens é assintomático e a recuperação, apesar de demorada, é relativamente simples. Mas sabemos que acabaríamos contagiando alguém, que poderia morrer. Sabemos que o sistema de saúde público espanhol, que é exemplar, está saturado e que a falta de leitos, de equipamentos e de profissionais será fatal para muitíssimas pessoas. É por isso que a maioria das pessoas começou a mover a campanha #YoMeQuedoEnCasa antes mesmo do presidente declarar o estado de alarme.

O #QuédateEnCasa ou #YoMeQuedoEnCasa é, na verdade, um grande suspiro de esperança. A Espanha está mostrando que, com um tecido social forte, informação, consciência e altruísmo, a crise de saúde pública pode ser superada. Estamos pagando um preço alto pela demora na toma de decisões por parte dos políticos, o custo para a economia do país ainda é incalculável, o impacto social de assistir a parte de uma geração sendo exterminada por um vírus desconhecido não pode ser descrita, mas as pessoas estão solidárias e fortes, se ajudando.

Agora, neste momento, recebemos o aviso de que as fronteiras espanholas foram fechadas. Só podem entrar espanhóis ou outros viajantes “por força maior”. Nossas crianças choram. As pessoas idosas da família nos telefonam preocupadas. O isolamento social é cada vez maior, ao mesmo tempo em que assistimos ao avanço da doença no Brasil, acompanhado do despreparo político para tratar e debater a situação. O desafio será grande, assim como o medo da desinformação, da fragilidade econômica ao colapso do SUS, que, com poucos recursos e limitada infraestrutura, não mostra sinais de conseguir absorver o tamanho do problema.

O pesadelo, pelo menos pro imigrante, é duplo. Quando acabar o meu, começa o daqueles que eu amo. Enquanto isso, peço, fiquem em casa, sozinhos. É o único que podemos fazer para preservar as pessoas de quem gostamos. E a história italiana, espanhola, coreana e chinesa ensinam. Quanto antes a gente fizer isso, melhor.

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