_
_
_
_
_

Uma cratera, um hospício e uma mansão no passeio pelos 143 “lugares difíceis” de São Paulo

Alunos da Arquitetura da USP lançam guia que mostra as dificuldades urbanísticas e as marcas sociais e de resistência da maior metrópole do país e seu entorno

Ponte Octavio Frias de Oliveira, a ponte estaiada, um dos "lugares difíceis" de São Paulo. DANNY LEHMAN (CORBIS)
Ponte Octavio Frias de Oliveira, a ponte estaiada, um dos "lugares difíceis" de São Paulo. DANNY LEHMAN (CORBIS)
Marina Rossi

Há mais de 20 milhões de anos, um meteoro de 200 metros se chocou contra a Terra, mais exatamente onde está situada hoje a cidade de São Paulo. O impacto resultou em uma cratera de mais de 3,6 quilômetros de diâmetro e cerca de 400 metros de profundidade, descoberta como fenômeno geológico somente anos 1960, por meio de imagens de satélite. O imenso buraco está localizado na região de Parelheiros, no extremo sul da cidade e é uma das seis crateras do tipo existentes no Brasil —no mundo são 183. A chamada Cratera de Colônia, hoje abriga o bairro de Vargem Grande Paulista, e é um dos 143 locais escolhidos para formar o Guia dos lugares difíceis de São Paulo (editora Annablume).

Mais informações
SAO PAULO, SP, 2019: Emicida (Foto: Julia Rodrigues)
Emicida: “Minha leitura do país não vale porra nenhuma se eu não souber conversar com alguém desesperado”
Grupo de meditação na avenida Faria lima, em São Paulo.
Namastech, a febre zen no mundo do dinheiro
Paraisópolis en la madrugada del domingo, una semana después de la masacre.
Documento não menciona ataques de jovens de baile funk contra PMs

Diferentemente de qualquer outro guia turístico de qualquer outra cidade do mundo, esse não é dividido em restaurantes, bares, cinemas ou parques. Não que o leitor não vá encontrar parques ou cinemas ao longo das 213 páginas que o compõem, lançado no final do ano passado. Mas os roteiros que traz talvez não sejam necessariamente o destino favorito de alguém que busca um blockbuster.

Os lugares do guia são testemunhas de uma história que envolve menos as atrações turísticas da cidade e mais representantes de segregações, resistências, invisibilidades, morte, moradia, violências de Estado, difíceis lugares fáceis, urbanismos difíceis e outros lugares difíceis, como são as nove categorias que classificam as localidades.

Da mansão ao cemitério

Cada lugar é um convite a um passeio histórico e geográfico da cidade e suas adjacências. Como, por exemplo, o Hospital Psiquiátrico do Juquery, em Franco da Rocha a 40 km de São Paulo. Idealizado pelo psiquiatra Francisco da Rocha e projetado por Ramos de Azevedo, foi inaugurado em 1898, sendo o primeiro hospital psiquiátrico de São Paulo e o maior da América Latina. Classificado na categoria segregações, o conjunto de prédios, depois de desativado o hospital, foi tombado em 2011 por seu valor histórico e arquitetônico e hoje abriga um Centro de Atenção Integral à Saúde Mental e um Centro de Atendimento à Mulher.

Produzido por alunos da graduação e pós-graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, sob coordenação do professor da FAU-USP e do programa de mestrado em Cidades Sustentáveis e Inteligentes da Uninove, Renato Cymbalista, o Guia dos Lugares difíceis é uma enciclopédia urbanística de São Paulo. Além de classificados nas categorias listadas, os lugares são apontados em um mapa que facilita o entendimento do espaço geográfico em que as dificuldades da cidade se encontram. “As categorias foram aparecendo para dar ritmo ao trabalho”, explica Cymbalista. Ele afirma que, após a concepção das categorias, os alunos perceberam que era preciso acrescentar alguns lugares antes não pensados como difíceis, mas que eram imprescindíveis como representantes daquelas categorias.

Além disso, houve o caso de categorias criadas e que depois desapareceram. “Por exemplo, a categoria fogo, que fala sobre os grandes incêndios na cidade de São Paulo”, diz Cymbalista. “Achamos que ela estava pequena, então esses lugares foram recategorizados. A maior parte deles foi parar em morte, mas é uma categoria que ainda pode reaparecer numa próxima edição”. A previsão, segundo o professor, é que uma nova edição do guia seja lançada daqui a uns dois anos. “Quando eu estava fechando o guia houve aquele grande incêndio no Largo do Payissandu, onde morreram muitas pessoas, e ele não aparece porque não dava mais tempo. Esse é um dos lugares que eu gostaria que ganhasse uma ficha na próxima edição do guia”, diz Cymbalista.

Seja como for, um incêndio marco não ficou de fora: o edifício Joelma, que pegou fogo em 1974 deixando 188 pessoas mortas. Outros lugares também se impuseram no apanhado, como a Mansão Matarazzo, alvo de uma disputa de família que pode ter sido responsável pelo desabamento de parte da construção que hoje dá lugar a um shopping e uma torre comercial na avenida Paulista.

Mas o guia não fica somente no âmbito de prédios arquitetônicos. Em Osasco, o Bar do Juvenal, onde oito pessoas morreram em uma sangrenta vingança conhecida como a chacina de Osasco, lembra que a história da cidade é feita também de conflitos e violência e que se espraia para a região metropolitana. Assim como, em outra ponta do mapa, o nobre shopping Morumbi é um dos únicos da cidade a não ter salas de cinema, depois que um atirador abriu fogo contra 28 espectadores que assistiam ao Clube da Luta, em 1999.

Há espaço também para histórias mais amenas e com finais felizes, embora póstumas. Trata-se das Polacas, prostitutas que vieram a São Paulo trazidas por uma rede internacional de tráfico de mulheres que se estabeleceu em várias cidades. Excluídas e estigmatizadas pela comunidade judaica em geral, em cada cidade em que se fixaram elas criaram sociedades de ajuda mútua, que garantiram a preservação de suas identidades e rituais judaicos, construindo estruturas como sinagogas, asilos e cemitérios. Em São Paulo, as polacas fundaram seu cemitério original na década de 1920, no bairro de Santana, na zona Norte. Caindo em desuso com o envelhecimento do grupo e a morte da maior parte delas, o cemitério foi desapropriado nos anos de 1970, para a ampliação do cemitério público. Foi aí que todas as sepulturas das Polacas foram transferidas para o cemitério principal da comunidade judaica, o Cemitério Israelita do Butantã. Mas, com a mudança, a lista que nomeava os mortos desapareceu e os corpos ficaram sem identificação.

No ano 2000, os arquivos foram enfim recuperados e os nomes recolocados em cada uma das 213 lápides, durante uma cerimônia. A história é contatada na seção de segregações, embora pudesse muito bem estar classificada em resistências.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_