Criação do juiz de garantias indispõe Bolsonaro e base e abre debate sobre implementação

Presidente sanciona texto com emenda criticada por Moro. Ex-ministro do Supremo vê inconstitucionalidade enquanto professor da USP aponta avanço na proteção de direitos

São Paulo -
Adriano Machado (Reuters)

A decisão do presidente Jair Bolsonaro de sancionar, no dia 24, a versão do Congresso do pacote anticrime, de autoria do ministro Sergio Moro, mantendo algumas das alterações propostas pelos parlamentares provocou uma série de críticas ao Governo por parte de sua própria base. A celeuma gira em torno da criação da figura do juiz de garantias, magistrado que irá acompanhar a fase de investigação e coleta de provas do processo para se assegurar de que os direitos dos investigados não estão sendo atropelados durante o inquérito. As etapas de julgamento e sentença ficarão, segundo o novo desenho do Judiciário sancionado, a cargo de um outro juiz. Havia a expectativa de que Bolsonaro vetasse este ponto, que foi incluído no pacote via emenda do deputado federal Marcelo Freixo (PSOL-RJ) e era criticado por Moro. Para além do tremor político no mundo bolsonarista, a lei também abriu um debate imediato entre especialistas e acadêmicos sobre a constitucionalidade da medida e sua viabilidade econômica.

A mudança foi, na prática, uma derrota para Sergio Moro, especialmente porque o presidente barrou outras 25 alterações consideradas sensíveis, mas deixou esta passar. A proposta de criar um juiz de garantias vem na esteira das críticas ao próprio Moro quando à frente da Operação Lava Jato. O então juiz sempre foi acusado de agir em dobradinha com a acusação, rompendo a figura do juiz imparcial no direito brasileiro. A situação mudou de patamar com a revelação de conversas privadas entre o magistrado e os integrantes da força-tarefa de procuradores publicadas pelo The Intercept em parceria com outros veículos, como o EL PAÍS. Se a regra já tivesse valendo na Lava Jato, por exemplo, Moro, que decidiu a controversa condução coercitiva do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, não teria ditado a sentença contra o petista no mesmo caso.

Nesta quarta, o agora ministro da Justiça se manifestou no Twitter de forma comedida sobre o assunto: “Não é o projeto dos sonhos, mas contém avanços. Sempre me posicionei contra algumas inserções feitas pela Câmara no texto originário, como o juiz de garantias. Apesar disso, vamos em frente”.

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O próprio presidente considerou o saldo do pacote anticrime “extremamente positivo”. Ele fez questão de destacar o aumento da pena máxima de prisão, de 30 para 40 anos, e o fim da saída temporária para condenados por crime hediondo que resultou em morte. Sobre o juiz de garantias, nenhuma palavra, enquanto até aliados o chamavam de “traidor”. Coube aos filhos de Bolsonaro saírem em sua defesa neste ponto. Carlos Bolsonaro retuitou comentários que apontariam para uma estratégia “de mestre” do pai. Segundo a visão propagada nas redes sociais, o Judiciário não conseguiria arcar com o custo de contratação de centenas de novos juízes —uma vez que supostamente os quadros atuais não dariam conta de acumular funções—, o que faria com que este ponto do pacote anticrime seja derrubado posteriormente via uma Ação Direta de Incostitucionalidade (Adin). A jogada do presidente teria sido não vetar o juiz de garantias para não “indispor” o Governo com o Legislativo, tendo em vista uma série de reformas que o Planalto irá propor no ano que vem e que precisam de apoio do Congresso para serem aprovadas.

Apesar de ter ido contra o desejo de Moro sobre a criação de um juiz de garantias, Bolsonaro afirmou, nesta quinta-feira, que o Brasil estará em boas mãos se o ex-juiz e atual ministro da Justiça for candidato à sua sucessão em 2022.

Debate sobre a implementação

Em um cenário de arrocho nas contas públicas e com um teto de gastos que deve apertar ainda mais o orçamento —reportagem do O Estado de São Paulo aponta que Judiciário deve cortar até estagiários em 2020— esta leitura tem sua lógica, ainda mais quando se leva em conta que quase a metade dos municípios não tem sequer um juiz. Simone Tebet (MDB-MS), presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado, classificou a criação do cargo de juiz de garantias “inconstitucional (...) ou ilegal, por inobservância da Lei de Responsabilidade Fiscal”. Ela também destacou o déficit já existente de magistrados em várias comarcas.


Esta tese da possível inconstitucionalidade da medida é defendida também pelo ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal Carlos Ayres Britto. “Separar as coisas como diz a lei é conferir à jurisdição penal uma estrutura diversa da veiculada pela Constituição, uma vez que nela não existe esse salto da unitariedade para a binariedade jurisdicional [ter atribuições diversas ao juiz]”, afirma. “Logo, só a Carta Magna pode dispor sobre o assunto”, diz. Britto destaca ainda que existe a possibilidade desta questão ser cláusula pétrea da nossa lei maior: “Neste caso nem por emenda à Constituição seria possível haver mexida no tema. Por tudo isso já se prevê a ida do assunto ao STF para impugnar tal passagem da nova lei”.

Quanto ao custo da alteração, que seria um impeditivo à sua execução, Gustavo Badaró, professor de Direito Penal da Universidade de São Paulo, acredita que o impacto econômico não seria tão grande quanto está sendo alardeado. “Será necessária a contratação de menos juízes do que se afirma, basta que se crie um sistema eficiente no qual os magistrados atuem em pares, com o juiz de uma vara atuando como garantista de um colega da segunda vara, e vice-versa”. No entanto haveria um empecilho: “É claro que os juízes nunca irão querer ter mais trabalho ganhando o mesmo salário”. Badaró, que considera a medida um avanço que fortalece a imparcialidade do processo penal, também minimiza o discurso de que essa mudança tem como objetivo cercear a atuação da Lava Jato. “Existia um projeto de lei de 2009 que já previa a criação desta figura, cinco anos antes da operação começar”, afirma. Ele destaca também que o juiz de garantias é comum em vários países e órgãos internacionais, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Apesar das dificuldades apontadas pelos críticos da medida, já existem experiências positivas neste sentido no Brasil. É o caso do Departamento de Inquéritos Policiais (Dipo) na capital em São Paulo, que conta com juízes que atuam justamente na concessão de medidas cautelares (tais como interceptações telefônicas, busca e apreensão, etc). “Com exceção de homicídios e casos mais leves, o Dipo funciona com uma estrutura semelhante à proposta pelo pacote anticrime”, explica Fábio Toffic, advogado criminalista e presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa. Ele destaca ainda que com o modelo de processos virtuais já vigente em várias varas do país, no qual os casos são organizados digitalmente e informatizados, também facilita a reorganização do Judiciário proposta. “Um juiz de Campinas pode ser juiz de garantias de um processo que corre em Jundiaí sem problema algum, porque na fase de investigação o magistrado quase que não precisa manter contato com as partes”.

Por parte dos magistrados, como era de se esperar a medida não foi recebida com louvor. O presidente da Associação de Juízes Federais, Fernando Mendes, destacou que sempre se posicionou de forma contrária à criação da figura do juiz de garantias. No entanto, ele afirmou que uma vez regulamentada, esta nova figura precisa atender a todo o Judiciário e não se limitar aos casos como o da Lava Jato, que envolvem crimes de colarinho branco. “Se o instituto é realmente importante, tem se ser aplicado para todos, seja nos processos da Lava Jato, seja nos processos de crimes comuns, que são milhares tramitando no interior do país e que precisam ter as mesmas garantias”, afirmou. Ele ainda apontou para o imbróglio estrutural que a medida traz: “A Justiça Federal terá de redesenhar a sua estrutura e redefinir a competência penal para tornar possível a implementação do juiz de garantias”.

O debate deve se alongar nas próximas semanas e caberá ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) orientar o Judiciário sobre a implementação, que, segundo a lei, tem de começar em 23 de janeiro. Nesta quinta, o presidente do CNJ e do Supremo Tribunal Federal (STF), Antonio Dias Toffoli, determinou a criação de um grupo de trabalho para avaliar a aplicação do mecanismo de juiz das garantias. A instância tem 15 dias para apresentar seu parecer.

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