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Governo Bolsonaro
Coluna
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Metade não come e a outra metade não dorme no Brasil de Bolsoguedes

Nos 75 anos do clássico “Geografia da Fome”, a voz de Josué de Castro puxa o coro dos desvalidos na cidade mais rica do país

Rio de Janeiro
Voluntários entregam marmitas para pessoas em situação de rua, no Rio de Janeiro.André Coelho (EFE)

Assim como a morte era representada pela Velha da Foice, a fome, no imaginário das vidas secas, sempre foi a Velha do Chapelão. As duas criaturas se acostumaram a andar de parelha, sertões e subúrbios adentro. Do golpe de 2016 para o bolsoguedismo brabo de 2021, avista-se —como em um filme de terror expressionista— a sombra da dupla a cada beco ou encruzilhada.

Não precisa ir ao semiárido nordestino ou ao fundão da ZS, zona sul de SP, basta entrar em um supermercado da área central paulistana para sentir como o sombreiro persegue legiões de famílias. Os famintos, crianças na linha de frente, pedem comida a cada gôndola. Há um cerco. Ainda pacífico. E um milhão de nutrientes longe do alcance. No que salta o médico, escritor e cientista pernambucano Josué de Castro (1908-1973), com o megafone sempre em punho: “Metade da humanidade não come; e a outra metade não dorme, com medo da que não come.”

Pão de Açúcar, avenida Alfonso Bovero, quase esquina com a Pompeia, reduto de classe média, outubro de 2021. Tente ignorar que existe um cinturão de necessitados que intima para a urgência urgentíssima. Impossível, mesmo sob efeito de anestesia geral e completa. Com ou sem culpa por ter ajudado a trazer o país a esta bagaceira, a Velha do Chapelão ri do teu privilégio amarelo. Não adianta se declarar apenas como um limpinho e meritocrata eleitor de Amoedo (Novo). Ela te manja nessa coreografia entre o medo e a torneira de Pilatos.

Josué avisou ainda no “Geografia da Fome”, livro que completa 75 anos de lançamento: não adianta culpar Deus, a chuva, o destino ou o acaso, só existe faminto por causa da buraqueira social e a falta de um governo de sustança. E olhe que ele nem sabia ainda que o Brasil se tornaria o país do agro é pop, tampouco imaginaria que teríamos a fila do osso justamente em uma época de recorde nos índices de produção de alimentos.

Agora na vitrola, pela milésima vez peço bis, a pedagogia do vinil mangue bit: “Ó Josué eu nunca vi tamanha desgraça/ quanto mais miséria tem/ mais urubu ameaça”. Repete, ao infinito, Nação Zumbi & Chico Science. Até furar o disco com o free jazz do ronco denunciador das tripas.

Dos últimos dias de Pompeia vamos ao centro, na babilônica cidade mais estribada do país. Bom e didático enxergar a fome não apenas na viciadíssima pauta jornalística do calango do Nordeste. De cara, fico com a imagem repetida pelo padre Júlio Lancelotti, meu candidato ao Nobel da Paz. Ele sempre legenda o cenário sem arrodeios ou amaciantes sociológicos: isso é crise humanitária. O resto é chilique chique de madame palaciana ou dos mimados edipianos da extrema-direita.

O centrão babilônico virou um campo de refugiados do seu próprio país. Os punks sabem disso e tampouco esquecem os “crucificados pelo sistema”. Lá está o casal Vivi Torrico e João Gordo (Ratos de Porão) distribuindo marmitas na maloca. Punks não morrem, punks not dead.

Agora dobre mais um quarteirão nas imediações da Cracolândia, entre no Museu da Língua Portuguesa e veja que Miró da Muribeca —esse tem a verve dos lixões e dos morros Guararapes— havia previsto o cardápio do osso e a carestia até de um copo d´água. O museu ecoa, mas não guarda língua de poeta beatnik arruaceiro, Miró sai do totem e segue soprando tabus nos ouvidos dos passantes e das putas crepusculares da Estação da Luz.

À sombra do Minhocão, os desviventes de Futurama não aplaudem o sol, como no Arpoador carioca. Eles fedem à vera, são paulistanos ou novos baianos na contramão da locomotiva, abalroados por um condutor da Terceira Via bandeirante que berra “Non Ducor Duco” —sai do meio bando de peste desmerecida. Para seguir nessa viagem, favor fazer baldeação no livro “O riso dos ratos”, de Joca Reiners Terron. Próxima estação: Desesperança. Até os bilheteiros sumiram.

E lá vem de novo aquela sombra do chapelão expressionista nos seguindo como um vira-lata mordido pelo afeto. Quando olhamos para trás, o sol ilumina a ferrugem nos dentes de uma criança. Ela ainda não comeu hoje.

Xico Sá, escritor e jornalista, é autor de “Big Jato” (editora Companhia das Letras), entre outros livros.

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