Brasil para poucos, veneno para todos
Em meio a uma das piores crises de saúde já vividas pela humanidade, o Congresso julgou ser um bom momento para ressuscitar o projeto de lei que pretende mudar as regras de aprovação e uso dos agrotóxicos
Todos os seres humanos têm direito a uma alimentação saudável e adequada. Mas, a cada refeição, esse direito básico e universal vem sendo arrancado do nosso prato.
Em meio a uma das piores crises de saúde já vividas pela humanidade, o Congresso Nacional julgou ser um bom momento para ressuscitar o projeto de lei que pretende mudar as regras de aprovação e uso dos agrotóxicos no país. Em outras palavras: permitir mais e mais veneno na mesa da população brasileira.
A boiada está passando e parece não ter limites. Depois que a Câmara atropelou a opinião pública e aprovou a lei do (não) Licenciamento e o PL da Grilagem, agora chega a vez do pacote do veneno. O PL n.º 6.299/2002 está prestes a ser votado no plenário da Câmara e depois seguirá rapidamente para o Senado.
Mais uma vez, os parlamentares ignoram quem entende do assunto: mais de 20 órgãos como a Fiocruz, o Instituto Nacional do Câncer (INCA), Abrasco, o Ministério Público Federal e até a ONU já emitiram um consenso técnico-científico rechaçando o projeto. Além disso, mais de 1,7 milhão de pessoas se manifestaram em um abaixo-assinado contra a proposta.
O Brasil hoje já está encharcado de agrotóxicos. A cada ano, cerca de 500.000 toneladas de veneno são despejadas em território nacional, contaminando o alimento de nossas famílias, solos, água e ar por todas as regiões do país.
Mas não parece suficiente. Desde 2019, o Governo Bolsonaro conseguiu uma marca histórica: autorizou mais de 25% de todos os registros de agrotóxicos feitos nos últimos 20 anos no Brasil. Isso significa que, em apenas dois anos de mandato, foram liberados mais de mil novos produtos considerados perigosos para a saúde humana e ambiental: agronegócio acima de tudo, agrotóxicos para cima de todos.
O resultado dessa chuva química já é conhecido, mas pouquíssimo falado. Apesar do negacionismo do Governo e dos parlamentares ligados ao agronegócio, inúmeros trabalhos científicos associam o uso desses produtos a problemas gastrointestinais, respiratórios, malformação congênita de fetos, câncer e outras doenças.
Em 2017, o Ministério da Saúde fez um levantamento em 2.600 municípios brasileiros para detectar a presença de agrotóxicos na água distribuída à população: foram encontrados resíduos de veneno em 92% das cidades monitoradas. Entre 2010 e 2019 no Brasil, cerca de 30.000 pessoas foram intoxicadas —uma média de oito a cada dia.
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Clique aquiA realidade poderia ser outra. Em 2016, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) apresentou ao Congresso a Política Nacional de Redução de Agrotóxicos —Pnara. Ao contrário do Pacote do Veneno, a Pnara propõe uma redução gradual no uso e na produção de agrotóxicos, apontando caminhos mais saudáveis, justos e sustentáveis para os seres humanos, para a agricultura brasileira e para o meio ambiente.
Desde que foi apresentada, a Pnara passou por inúmeras audiências públicas e foi exaustivamente debatida por diversos setores da sociedade, até ser aprovada em 2018 dentro de comissão especial. De lá para cá, no entanto, não foi mais colocada em pauta, perdendo espaço para a pressão ruralista que tenta a todo custo impor um futuro tóxico para o Brasil inteiro, à revelia da vontade da população.
Injustiças, doenças e mortes
Estamos reféns de um sistema alimentar que semeia doenças, cultiva desigualdades e produz mortes. Além da altíssima dependência dos agrotóxicos, o agronegócio brasileiro encarna um modelo de produção e comercialização de alimentos que é um dos principais motores das mudanças climáticas. É também o maior vetor de desmatamento e destruição da nossa biodiversidade.
Há décadas sustentado por incentivos públicos inesgotáveis, o agronegócio vai passando sua boiada sobre os territórios de povos tradicionais e famílias de pequenos agricultores, trocando nossa riquíssima diversidade cultural, alimentar e biológica por imensos desertos de commodities agrícolas que ganham o mercado internacional.
Entre os anos de 2000 e 2019, as áreas plantadas de arroz e feijão no Brasil encolheram 53% e 37%, respectivamente, ao mesmo tempo em que as monoculturas de soja expandiram suas lavouras em 162%. Enquanto o Brasil desaba em crises sucessivas, o agro é pop celebra safras recordes e exportações bilionárias.
“Nosso agronegócio continua pujante. Nunca exportamos tanto”, celebrou Jair Bolsonaro nos últimos meses de 2020, em uma fala na Assembleia Geral da ONU. O discurso veio na mesma semana em que o IBGE alertava: o Brasil está de volta ao mapa da fome. Metade da população brasileira vive hoje algum nível de insegurança alimentar. E mais de 19 milhões de pessoas literalmente passam fome.
Quem ainda tem o privilégio de se alimentar nem sempre come com qualidade. Enquanto a comida de verdade vai perdendo espaço nas áreas agrícolas, as grandes corporações alimentícias —que andam de mãos dadas com o agronegócio— entopem as prateleiras dos supermercados com produtos baratos e de baixíssima qualidade.
Carregados de açúcar, sal, gorduras e muitos produtos químicos que imitam o sabor, cheiro e textura dos alimentos, os chamados ultraprocessados já representam atualmente um dos principais baques na saúde humana. As doenças que mais matam hoje no mundo —como diabetes, câncer e doenças cardiovasculares— estão ligadas à alimentação. Não por acaso, são essas mesmíssimas doenças que deixam a população mais vulnerável no enfrentamento da covid-19.
Transição de sistemas alimentares
A pandemia escancarou o que muitos cientistas e organizações da sociedade civil já apontam há anos: o atual modelo de produção de alimentos é insustentável. Para conseguir se reerguer da crise humanitária a que chegamos, o Brasil precisa iniciar uma transição para sistemas alimentares mais saudáveis, justos e sustentáveis. Sistemas alimentares que existam para alimentar pessoas, não empresas. Que respeitem e valorizem a diversidade e a cultura alimentar de cada região. Que gerem saúde no campo e nas cidades. E que seja feito em parceria com a natureza.
A boa notícia é que esse sistema já existe. E é colocado em prática não há 50, nem 60 anos, mas há milhares de anos. Os princípios e a lógica que tradicionalmente movem a agricultura familiar de base ecológica são outros: em vez de mercadoria, o alimento e o ambiente em que ele é cultivado são considerados direitos. No lugar da competição, entram em campo a solidariedade e a cooperação em rede. E no centro de suas práticas não está o lucro, mas a vida, a saúde e a dignidade humana.
A agricultura agroecológica é revolucionária pois rompe com um sistema que, em vez de acabar com a fome, vem engolindo e acabando com as terras e com a saúde da população. A agroecologia não é operada por pessoas jurídicas, mas por milhões de famílias que se baseiam na biodiversidade local e nos princípios da economia solidária para produzir alimentos que vão abastecer outras famílias e a si mesmas, garantindo a segurança e a soberania alimentar da população. Ela é democrática - e depende da democracia viva para avançar sobre os territórios.
Não é à toa que a ONU —cujo Programa Mundial de Alimentação recebeu o Prêmio Nobel da Paz— já aponta há mais de uma década em seus relatórios científicos e políticos que a agroecologia é um caminho indispensável na redução das desigualdades sociais e para a promoção da saúde coletiva e ambiental no mundo.
Colocada em movimento e prática principalmente pelas mãos da agricultura familiar e de povos tradicionais, seus valores, sua vitalidade e sua força social ficaram evidentes durante a pandemia. Para qualquer região do país que você olhe, há movimentos populares do campo e das cidades criando e espalhando redes de solidariedade e de comercialização justa para driblar a fome e garantir comida de verdade na mesa da população brasileira —especialmente entre os grupos mais vulneráveis.
Somente o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) já doou mais de 5.000 toneladas de alimentos sem veneno e quase 1 milhão de marmitas para as periferias urbanas de todo o Brasil, numa sinalização nítida de que a vida, a saúde e o bem-estar individual e coletivo são prioridades do movimento camponês e agroecológico.
Ocupando apenas 24% das terras onde o latifúndio não chegou e acessando cerca de 15% dos recursos públicos destinados ao setor agrário, a agricultura familiar ainda assim é responsável por produzir 70% da mandioca, 42% do feijão preto, 49% da banana e 67% do abacaxi que abastecem o Brasil, para ficar em apenas alguns exemplos. É por conta dela também que o país é hoje o maior produtor de arroz agroecológico da América Latina.
Sem holofotes, sem horário nobre na TV e com pouquíssimo investimento público, a agricultura familiar há décadas fura obstáculos estruturais e o atual desmonte de políticas públicas para seguir produzindo comida sem veneno, regenerando solos degradados e gerando saúde para o povo.
Agroecologia é Brasil. E o Brasil precisa mais do que nunca da agroecologia.
Marina Lacôrte é porta-voz da campanha de Agricultura e Alimentação do Greenpeace Brasil.
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